03/10/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #114 - Kleber Mendonça Filho


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo e um grande diretor de cinema. Kleber Mendonça Filho é diretor, produtor, roteirista e crítico de cinema. Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, já escreveu para veículos grandes como: o Jornal do Commercio, no Recife, CinemaScópio, Revistas Continente, Cinética e o jornal Folha de S.Paulo. Diretor de dois enormes sucessos na história recente do cinema brasileiro, Aquarius (2016) e Bacurau (2019), em 2020 foi escolhido para integrar o júri do Festival de Berlim. Com tantos compromissos na agenda, Kleber arranjou um tempo e carinhosamente nos respondeu. Estamos honrados em poder transmitir para vocês leitores esse papo feito à distância mas que parecia que estávamos tomando um café e falando sobre cinema.


Obs: Grande Kleber, já o vi diversas vezes pessoalmente mas falar com você é difícil pois todos querem rs. Queria muito poder ter conversado sobre cinema com você no Cine Joia, em Copacabana, um cinema antigo e que resiste até hoje e onde eu fui programador por alguns anos. De qualquer forma, sempre o acompanhei à distância e continuarei acompanhando. Continue lutando pelo bem do nosso cinema, precisamos de pessoas como você. Viva o Cinema!

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Tem três salas aqui no Recife que são uma mistura perfeita de ambiente com programação. Os dois cinemas da Fundação, onde é impossível eu ignorar pois eu trabalhei 18 anos lá e de uma certa forma coloquei muito da minha energia pessoal nessas salas e hoje continuam abertas e bem cuidadas pela administração que veio depois. Eu saí de lá em 2016 e fui trabalhar no IMS que tem duas salas, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A terceira sala no recife é uma sala assim acima de qualquer coisa que é o Cinema São Luiz. Abriu em 1952, é aquela sala que sobreviveu, é um grande palácio de cinema com balcão e plateia, mil cadeiras, totalmente equipado para a era digital e é um epicentro de cinefilia junto com os dois cinemas da Fundação. Os três, formam uma ideia de cinefilia fora dos multiplex mas também de toda uma movimentação em torno do cinema feito na cidade, do cinema pernambucano. Foi no São Luiz por exemplo que Bacurau tinha fila ao redor do quarteirão na quarta semana em cartaz. Dando 700 pessoas numa terça-feira à tarde, exatamente como era o São Luiz da minha infância.  É um lugar realmente que qualquer pessoa aqui no recife que gosta de cinema ama e muita gente que vem de fora as vezes vai visitar o São Luiz como um ponto turístico e vai lá para assistir e ter a experiência de ter visto um filme lá. A gente aqui no Recife é muito sortudo de ter o São Luiz. Não temos muitas salas em número, mas temos o São Luiz e os cinema da Fundação que respondem por muito do que acontece aqui em Pernambuco na área de cinema, o Janela também.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

De fato, foi no São Luiz, eu tinha 3 ou 4 anos de idade e minha mãe me levou para ver uma maratona Tom e Jerry, acho que no início dos anos 70. E inclusive ela lembrou durante muitos anos que quando a gente sentou para ver o filme eu perguntei para ela: “que canal é esse?”. Então, foi no São Luiz que eu entendi o que era essa coisa chamada cinema, onde a imagem era muito boa, muito grande, e um lugar totalmente escuro. E muito pernambucano tem a memória de ter ido à primeira vez no cinema no São Luiz ver um filme.  

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Eu realmente tenho muita dificuldade em responder. Não é nem dificuldade, eu acho impossível com 51 anos conseguir definir a diretora, o diretor, preferido. Porque você vai colecionando tantas experiências ao longo da vida de tanta gente que faz filme e com quem você compartilha visões de mundo e visões de cinema. Então, eu não consigo estabelecer um favorito. Eu não consigo responder a essa pergunta. Em algum momento da vida eu poderia ter apontado esse ou aquele, ou aquela, mas hoje eu não consigo mais. Prefiro juntar um grupo de artistas que eu gosto muito e que eu me sinto em casa vendo os filmes deles, num grande conjunto onde os filmes deles fazem parte da minha vida. Mas não seria justo definir um para tanta gente que eu amo. Essa é a melhor maneira de responder a essa pergunta.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Minha reação é parecida com a do meu diretor favorito. Porque o filme nacional favorito eu venho colecionando experiências no cinema brasileiro inclusive no cinema do qual eu faço parte, e é muito difícil pra mim declarar e isso virar um documento que o filme nacional preferido é esse ou aquele. Eu posso dizer que eu olho com enorme amor e carinho para os filmes do Nelson Pereira do Santos, do Hector Babenco, Glauber Rocha, do Edgard Navarro, olho com muito carinho também para filmes que Hugo Carvana fez. É muito difícil cravar dessa forma. Então eu prefiro também tentar explicar a resposta mas não dar uma. Eu gosto muito de filmes curtas-metragens, e de longas-metragens, então eu não conseguiria definir de maneira tão absoluta o meu filme brasileiro preferido.

 

5) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Eu acho que em termos de cultura brasileira e sociedade brasileira, é seguro que muitos brasileiros não viram Cabra Marcado para Morrer do Eduardo Coutinho e eu acho que a perda é da sociedade brasileira e do brasileiro em geral. Acho um filme muito acessível e muito impressionante sobre o Brasil e sobre a história do Brasil. E acho que faria um bem muito grande esse filme ser exibido em escolas e universidades e ele virar uma referência que todo brasileiro diga ou saiba dizer: eu conheço Cabra Marcado para Morrer, vi esse filme, é muito bom. Na área de cinema muita gente viu mas digo em termos absolutos da sociedade brasileira.

 

6) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O cinema brasileiro atual, ele foi construído aos poucos com a chegada da tecnologia digital, com o desenvolvimento de políticas públicas inteligente, democráticas, inclusivas, diversas, ao longo dos últimos 15, 20 anos. Uma nova geração chegou para ter o que falar, ter o que filmar, ter o que mostrar. Eu faço parte dessa geração. Minha colaboração existe, junto com dezenas de homens e mulheres que fazem filmes como autores no Brasil e centenas, milhares de técnicos e artistas de todos os tipos que fazem cinema no Brasil. Nesse momento, essa construção está sendo colocada em risco por causa de perseguições ideológicas e de um tipo de demonstração muito forte de ignorância e estupidez que vai contra os próprios interesses do país. Eu acho que líderes políticos que são contra a cultura do próprio país não são líderes, são apenas políticos não muito inteligentes. Então, o cinema brasileiro hoje ele está sendo ameaçado exatamente no auge de um crescimento e desenvolvimento que foi fruto de muito trabalho. É exatamente isso que acho que está acontecendo nesse momento.  

 

7) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Sonia Braga.

 

8) Defina cinema com uma frase:

O cinema é a possibilidade que você tem de dançar com a realidade. Acho que é por aí.

 

9) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Eu escrevi sobre essa história no Cahiers du Cinéma que me pediram uma história de sala de cinema. Eu era criança e fui ver Jesus de Nazaré, acho que parte 2, de novo no cinema São Luiz, e o cinema tem umas pilastras em cada lado da tela, umas colunas. Aí tinha uma cena no filme, que Jesus está sendo interrogado pelo Pilatos, aí tem um enquadramento que também tinham colunas onde ele estava sendo interrogado e parecia que o filme continuava no cinema, a tela acabava na coluna do filme e continuava na coluna do cinema.

Mas também testemunhei, acho que em 1988, quando Rambo III foi lançado, usaram uma cópia para dois cinemas: o Art Palácio e o Trianon, no centro do Recife. Aí contrataram uns caras para ficarem levando os rolos de filme, com a diferença de horário entre o Art Palácio que ficava vizinho do Trianon mas que você tinha que descer as escadas e passar na frente do hall de entrada, sair na calçada, dobrar a esquina e entrar no outro cinema e ainda subir as escadas e levar para a sala de projeção onde o operador montava o filme. Aí eu estava em uma das sessões que esse sistema entrou em colapso. Quando entrou em colapso, o filme foi interrompido e aí começaram a quebrar o cinema.

 

 

10) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

É um kitsch brasileiro absoluto.

 

11) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Eu realmente acredito que você não precisa ser cinéfilo para dirigir filmes. Acho estranho alguém que faça filmes não tenha uma cultura de cinefilia e não tenha sido formado por outros filmes. Mas eu não descarto a possibilidade de uma pessoa que não gosta de filmes e não tenha uma cultura cinéfila faça mesmo assim filmes bons ou interessantes. Acho que a tendência é a pessoa fazer filmes que não são interessantes. Mas nada no cinema é muito lógico, então eu acho que tem de tudo no cinema, tem a cinefilia que gera grandes filmes e tem a cinefilia que gera filmes horríveis. E tem os não cinéfilos que podem fazer bons filmes.

 

12) Você é uma referência para uma legião de cinéfilos e amantes do cinema brasileiro. Que dica você daria para você mesmo, se você hoje encontrasse o você da época que começou a trabalhar com cinema?

Eu diria leia muito, veja muitos filmes, não tenha medo de se expressar, seja verbalmente, seja com uma câmera e mostre o que você faz para os seus amigos. Tenha bons amigos. Tenha grandes conversas com seus amigos, troque ideia, e é assim que você aos poucos vai tentando encontrar o seu pé do mundo e tentar se equilibrar. Porque o mundo te dá muitas referências e essas referências vão construindo sua visão de mundo. Então fico muito feliz de olhar e lembrar que muito do que eu fiz é o que eu falaria.