19/04/2025

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Crítica do filme: 'Noel Rosa, um Espírito Circulante'


Quem nasce lá na Vila, nem sequer vacila! Exibido na Mostra Retratos da última edição do Festival do Rio, o documentário Noel Rosa, um Espírito Circulante busca decifrar curiosidades e histórias desse importante personagem da nossa cultura. Através da sua conhecida vida boêmia, da importância e relevância de muitas das suas mais de 200 canções até hoje e da forte ligação que tinha com um famoso bairro da zona norte do Rio de Janeiro, o trabalho da diretora e roteirista Joana Nin nos leva para um encontro animado entre o antes e o depois.

Fixando-se em um espaço querido por sambistas de todo o país - apresentando para muitos não cariocas o bairro de Vila Isabel – desfilando imagens por suas principais ruas e pontos de encontro, o projeto busca em algumas etapas reconstruir a vivência de outrora, a relação com o samba, e a força do legado que o famoso músico deixou para as futuras gerações. Para isso também conta com lindas interpretações de suas canções através do talento de nomes como: Edu Krieger, Dori Caymmi, Moacyr Luz e Mart'nália.

Um dos grandes acertos do projeto é transformar o bairro que nasceu Noel em um personagem, isso dá muito sentido a toda uma costura narrativa que apresenta seu olhar sem precisar se aprofundar, navegando a favor das memórias e das interpretações de quem seria esse célebre boêmio vindo de uma família de classe média, que estudou no prestigiado Colégio São Bento e frequentou a Faculdade de Medicina, na visão daquela época e no olhar do agora.

Conseguindo trilhar numa narrativa pulsante que ainda não foge do seu discurso em nenhum instante, guiada por animadas entrevistas de sambistas de vários períodos, além de canções marcantes do eterno cria de Vila Isabel, ao longo 71 minutos viajamos confortavelmente pela trajetória de um dos mais impactantes compositores da música brasileira - que faleceu de tuberculose aos 26 anos no final da década de 1930.

Noel Rosa, um Espírito Circulante estreia nos cinemas no dia 24 de abril. É um oportunidade de você conhecer melhor esse meteoro criativo que nos deixou muito cedo mas que nunca cairá no esquecimento.


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18/04/2025

Crítica do filme: 'A Influencer Divina'


As lições de ajudar ao próximo. Todos nós em algum momento da vida passaremos por uma autoavaliação sobre nossa vida até determinado instante. Isso é um fato concreto e qualquer situação que apresenta um espelho disso pode fisgar a atenção. Pegando esse gancho e mostrando a transformação de uma jovem acomodada e mimada em uma pessoa que consegue olhar com mais carinho para o próximo, A Influencer Divina tem a boa intenção de reunir exemplos de segundas chances em uma história simples, interligada com a fé, e repleta de clichês. Até aí tudo bem.

Vocês perceberão que não há muito o que decifrar na história que opta muitas vezes pelo sentir ao vez do refletir. Olivia Golden (Lara Silva) é uma influenciadora de uma boutique de artigo de luxo e vive sua rotina pendurada no telefone e na interação com seus milhares de seguidores. Quando comete alguns deslizes no trabalho e decepciona todos ao seu redor acaba chegando até um abrigo para moradores de rua, comandado por um antigo colega de escola, um lugar onde aprenderá reais significados de compaixão que antes nem imaginara.

A questão é que dentro de uma ingenuidade tamanha, com situações previsíveis e óbvias, vai se modelando um desinteressante ‘aulão de autoajuda’. O sinal de alerta começa quando o roteiro tem uma virada que busca afundar em camadas os conflitos da protagonista. De comédia água-com-açúcar se arrisca no apresentar um drama existencial convencional, se apoiando nas relações interpessoais, na troca de experiências, algo que funciona sem grande impacto, se perdendo no convencional.

Mas nem tudo é uma tragédia e longe de mim querer afastar você de ter a oportunidade de conferir e tirar suas próprias conclusões. Esse longa-metragem de 105 minutos traz um debate curioso e bastante eficaz dentro de um contexto sobre as lições de ajudar ao próximo. Coloca para seu epicentro o universo dos influencers com críticas e reflexões camufladas por um tom cômico que encosta no nonsense. A raiz do influenciar, algo que frequentemente gera conversas produtivas na realidade, ganha diversos sentidos nesse ponto.

Dirigido pela cineasta Shari Rigby e protagonizado pela atriz mineira Lara Silva, conhecida por interpretar a personagem Éden na série fenômeno mundial The Chosen, A Influencer Divina logo alcançou o Top 10 da Netflix na sua semana de estreia. O projeto bem produzido pode ser taxado por algumas pessoas como mais um filme que anda numa gangorra entre o convencional e as tentativas de impor reflexões.


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07/04/2025

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Pausa para uma série: 'Alvo Primário'


Intrigas no mundo da espionagem é algo de certa forma bastante corriqueiro quando pensamos em filmes e séries. Trazer algo novo e que chame a atenção dentro desse contexto não é uma missão fácil. Lançado nesse início de 2025 no ótimo streaming Apple TV+, Alvo Primário segue a cartilha dessas produções trazendo em sua primeira temporada um recheio considerável de clichês que se amontoam em oito episódios que flertam com o previsível. Criada por Steve Thompson, podemos bater o martelo de que essa é umas das grandes decepções do ano até aqui.

Edward Brooks (Leo Woodall) é um jovem matemático, orgulho do corpo docente da prestigiada Universidade de Cambridge, que está produzindo uma pesquisa para seu doutorado numa análise profunda e bastante complexa sobre teorias no padrão dos números primos. Quando seu trabalho é apresentado a um dos professores mais prestigiados da universidade, uma série de situações o colocam de frente para o perigo. Para ajudá-lo em busca de respostas, entra em sua vida a analista da NSA, Taylah Sanders (Quintessa Swindell).

Quando o foco é criar o terreno para eventuais reviravoltas, a qualquer custo, geralmente não sai conforme o pensado. Em sua tentativa de criar camadas para seu nada carismático protagonista, o roteiro esbarra na ingenuidade da superfície, não tirando o pé do acelerador em nenhum momento. O quebra-cabeça emocional que vive o personagem acaba sendo pouco explorado por uma narrativa se construindo de forma atabalhoada com subtramas desinteressantes que forçadamente ganham elos com a trama principal.

O matematiquês aqui fica em segundo plano, então calma você que odeia matemática! Os dramas pessoais buscam um respiro mas acabam confundindo mais do que adicionando. As relações interpessoais que se apresentam são cheias de lacunas, parece um abre alas para futuros desenrolares (algumas produções seriadas cismam em pensar numa segunda temporada), um deslize que transformam os cerca de 60 minutos por episódio em uma sequência de achismos por parte do público.

Na sua busca por conexões interessantes ao apresentar personificações (leia-se as já mencionadas relações interpessoais) em forma de paralelos para brincar de ficção com teorias que circulam sobre os mistérios ainda indecifráveis de números naturais que possuem somente dois divisores: 1 e eles mesmos, Alvo Primário e seu aulão de espionagem deixariam Pitágoras com uma enorme preguiça.


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Crítica do filme: 'Mário de Andrade, o Turista Aprendiz'


O encontro de desabafos, sensações e conclusões. Com um discurso criando seu oásis nas angústias dos relatos de uma viagem pela região amazônica de um dos maiores poetas da nossa literatura, Mário de Andrade, o Turista Aprendiz pode ser interpretado como uma peça filmada - bem definida por atos – caminhando com paradas no experimental, na ficção, no documental. Essa experiência dirigida e roteirizada por Murilo Salles faz valer o encontro das sensações, das emoções, com personagens ganhando força no imaginário.

O caminho traçado por essa obra vai de encontro a uma necessidade de preenchimento de lacunas das verdades do Brasil pouco visto, utilizando como trunfo a experimentação – e todo o alcance e possiblidades - da linguagem cinematográfica na narrativa. Seu ritmo lento parece criar as reflexões no pós instante, algo que ganha complementos ao longo dos 92 minutos de projeção. Imagens da época, fotografias, encenações, uma narração que não se desgruda, se tornam elementos que saltam na aleatoriedade dos movimentos.

Qualquer obra que nos leva na borda do decifrar uma personalidade através de um ofício que liga os tantos pontos de um país já tem seu mérito próprio quando pensamos em registro. Esse longa-metragem, que teve um circuito modesto no tão disputado circuito exibidor brasileiro, se arrisca também em buscar em alguns momentos traçar os paralelos da época com os tempos atuais, como nas imagens de um ambulatório lotado durante a Covid-19 embutido numa passagem por uma região sofrendo com a malária, uma luta naqueles tempos.

Dando ênfase no seu traço mais marcante, o filme busca suas inspirações no Livro O Turista Aprendiz e fatos documentais, apresentando sua versão para o olhar do ávido observador, criador de crônicas que englobam a cultura, a política, a sociedade. Esse cantinho de personalidade que deixa rastros da complexidade de sua inquietude se junta a um se jogar na busca, no entender e interpretar tudo que vê com os próprios olhos durante uma viagem que mudaria sua visão de mundo.

Não há a necessidade de ser um grande conhecedor da história do cronista paulista - e um dos fundadores do modernismo - para chegar as tão variadas reflexões. O roteiro localiza o momento deixando nas entrelinhas uma breve biografia de Mario de Andrade, um homem de mente pulsante que viajou por alguns cantos de nosso extenso território em busca de uma identidade cultural para nosso país.


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27/03/2025

Crítica do filme: 'Pequena Sibéria'


O acreditar naquilo que querem. Um cobiçado objeto vindo do espaço se torna o estopim de uma série de situações fora da curva. Assim, podemos começar a definição do novo longa-metragem finlandês da Netflix – que logo alcançou o top 10 - Pequena Sibéria. Dirigido por Dome Karukoski, o projeto é um drama existencial camuflado de comédia de erros com subtramas inconsistentes em forma de fragmentos pouco convincentes. São 105 minutos de situações incongruentes que logo viram um verdadeiro teste de paciência.

Num vilarejo gelado, onde todos se conhecem, afetado por uma situação inusitada - quando um meteorito atinge o lugar – conhecemos esse curioso lugar e seus personagens através do olhar do pastor Joel (Eero Ritala), em crise conjugal. Com o valor estimado do objeto, olhos invejosos começam a bolar planos. Através desse homem de fé, em meio a um redemoinho de conflitos, a ganância e as dúvidas sobre a esposa Krista (Malla Malmivaara) logo começam a cruzar vários caminhos.

A premissa era muito interessante, falar sobre o fator humano (leia-se moral) quando uma situação que beira ao inacreditável acontece. A questão nessa produção europeia é que de um fato que sustenta o discurso abre-se camadas desenfreadas e nada inspiradas. Com pouca profundidade, em uma narrativa que se distancia de algo imersivo, o filme vai se tornando aos poucos uma série de micro episódios que não conseguem ter sentido no seu arco final.

O sugestivo nome da cidade, Hurmevaara (Encantópolis, na tradução), é mais um elemento que se soma a tantos outros para tentar dar liga a uma história que aos poucos vai se modelando sem pé nem cabeça. A comédia de erros – aplicada em outros projetos de sucesso – aqui se torna um calcanhar de aquiles, muito, por girar totalmente em torno de um protagonista sem carisma que fica tão perdido quanto nós meros espectadores.

Pequena Sibéria pode até abrir o leque para algumas reflexões mas a paciência é testada do início ao fim.

 

 

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20/03/2025

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Crítica do filme: 'Eu e o Boi, o Boi e Eu' [7a Edição do Lanterna Mágica]


Trazendo para o centro dos holofotes um evento marcante em vários municípios de Minas Gerais, inclusive a cidade de Pedro Leopoldo - sua festa conhecida do Boi da Manta - o criativo filme Eu e o Boi, o Boi e Eu nos apresenta o contraste entre a admiração e o receio através de um jovem personagem e seus primeiros passos rumo à percepção cultural de seu estado. Dirigido e escrito por Jane Carmen Oliveira, essa animação foi selecionada para a Mostra Competitiva Nacional da 7ª edição do Lanterna Mágica – Festival de Animação Internacional e Nacional que ocorre todo ano em Goiânia.

Em cinco interessantes minutos acompanhamos um pequeno recorte na vida de uma criança que paralisa seus olhos para as histórias que escuta da mãe sobre um tal boi da manta que é uma figura representativa de uma festa popular conhecida em sua cidade, Pedro Leopoldo. Com o passar do tempo a criança embarca em jornada de onde vai do extremo de um medo incessante até um fascínio pelas descobertas.

Compondo sua narrativa com a base na relação inicial de uma jovem com as descobertas culturais e folclóricas, tendo todas as infinidades criativas que o universo do cinema e animação possibilitam, o projeto consegue seguir uma forte linha dentro de seu discurso transformando em camadas que giram em torno das emoções e tensões uma festa-ritual sempre realizada em períodos pré-carnaval.

As mensagens se tornam objetivas, com o foco nas primeiras impressões, dentro de um arranjo contextual que transforma uma festa com seus simbolismos destacados através de um possível choque de imagens. Da imaginação da personagem, importante pilar por aqui, nasce uma pequena pérola que ganha vida na tela batendo na tecla do descobrir o Brasil e seus detalhes através da força cultural.


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Crítica do filme: 'Anacleto, o Balão' [7a Edição do Lanterna Mágica]


Baseado em livro de 48 páginas escrito por Carol Sakura e com ilustrações de Walkir Fernandes - que também é inspirado em um recorte familiar curioso da primeira – o divertido suspense infantil Anacleto, o Balão tem sua espinha dorsal no modo criativo de mostrar as percepções dos sentimentos aos olhos de uma criança. Esse foi um dos projetos selecionados para a mostra competitiva nacional da 7ª edição do Lanterna Mágica – Festival Internacional e Nacional de Animação.

Nesse curta-metragem do Paraná, acompanhamos a saga de um jovenzinho que um dia se vê de frente com um balão vermelho. Esse artefato de papel fino e com formatos variados passa a fazer parte da família, interagindo no café da manhã e até acompanhando jogos de futebol com toda a família. Após um tempo, algumas situações inusitadas começam a fazer parte das percepções do jovem e os sustos se tornam algo constante.

Do medo até a imaginação, em 12 minutinhos conseguimos absorver reflexões variadas sobre o universo ampliado a partir do livro. O balão, elemento fundamental dessa animação, encontra no seu vermelho o sentido de alerta e outros simbolismos ligados à sensações. As situações variadas vividas pelo núcleo familiar – acopladas em uma narrativa dinâmica e bem estruturada - ganham interpretações através do olhar infantil conseguindo uma ótima fórmula entre o suspense e o humor.

Produzido pelo estúdio Dogzilla e com direção da dupla que escreveu o livro, Carol Sakura e Walkir Fernandes, Anacleto, o Balão não se prende a ser um filme apenas para o público infantil, é um filme para toda família. Chamou muito a atenção em um set com ótimas obras no primeiro dia das mostras competitivas do Festival Goiano dedicado à animações, o Lanterna Mágica.  

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19/03/2025

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Crítica do filme: 'Rock Bottom' [7a Edição do Lanterna Mágica]


Trazendo uma imersão profunda pelas percepções de aspectos da mente que se misturam com inspirações entre a carreira musical e os dramas da vida de um conhecido músico da cena britânica de décadas atrás, o engenhoso drama musical com técnicas de animação Rock Bottom é uma verdadeira viagem existencial. Repleto de interpretações e caminhos para o público se jogar, o projeto, escrito e dirigido pela cineasta espanhola María Trénor, foi o filme de abertura da 7a edição do Lanterna Mágica – Festival Nacional e Internacional de Animação.

Durante uma festa, onde Bob reencontra amigos da cena musical ele é logo fisgado pelos excessos e na paixão relâmpago por uma fã. Só que ele não esperava que Alif, seu grande amor, aparecesse à sua procura desencadeando em uma queda que o deixa em estado crítico. Durante esse tempo em recuperação vamos conhecendo melhor a história dos dois, algo que se estende em alucinações e variações temporais.

Já com um deslize no seu arco inicial, uma explicação simples e ligeira apontando suas inspirações em um integrante de uma das bandas pioneiras do rock psicodélico na cena britânica na década de 1960 – Robert Wyatt da Soft Machine - Rock Bottom apresenta sua vida declamada em forma melódica cheia de imagens e movimentos tendo como plano de fundo o seu álbum: Rock Bottom. Confuso? Vocês não perdem por esperar!

Antes de mais nada é preciso falar: esse é um filme corajoso. Esse adjetivo se encaixa muito bem quando nos deparamos com 82 minutos que chamam a atenção mas com momentos de total dispersão. Tendo a cultura Hippie como elemento importante, que compõe o pensamento ideológico de uma geração, o roteiro se propõe ter suas inspirações entre a carreira musical e os dramas da vida de um músico que existiu de fato. Só que o discurso sai pela culatra, transformando algo que poderia ser passado com mais clareza em uma descontrolada deslocação de tempo e memória, completamente sem chão.

De interessante, uma das estradas onde a lógica parece realmente fazer mais sentido é nos obstáculos da relação. Quando o público se encontra de frente com os contornos de um amor autodestrutivo, passado e eventual futuro começam a ganhar formas mais consistentes através da rotina e do desencanto tendo o processo criativo como uma mola propulsora que ganha bons momentos dentro de um cenário movido ao melodramático. Mas para se chegar a reflexões sobre esse oásis dentro de um terremoto de informações desencontradas é preciso muita paciência.

Amigo dos integrantes da banda Pink Floyd – com quem colaborou em algumas canções – Robert Wyatt tem recortes de sua vida contada através desse drama musical movido à técnica de animação e onde parece que tudo precisa de uma explicação visual ou até mesmo musical. Às vezes as entrelinhas preenchem mais espaço do que algo que para muitos podem representar sem sentido. Rock Bottom ruma a longos passos para seus desencontros mal explicados entre ficção e possível realidade, transformando seu personagem homenageado em um nômade da própria história.    

 

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12/03/2025

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Pausa para uma série: 'Whiskey on the Rocks'


Pincelando as ironias da geopolítica com um episódio absurdo que aconteceu durante o período de guerra fria, a brilhante minissérie sueca Whiskey on the Rocks – pouquíssimo divulgada aqui no Brasil – usa sem abusar da sátira nos levando para um registro histórico que ficou perto de colocar em linhas de combate os Estados Unidos e a ex-União Soviética (URSS). Criada por Henrik Jansson-Schweizer e Björn Stein, Whiskey on the Rocks também é um show de desabafos que mostra através da comédia tensões em três pontos do mundo num momento caótico do planeta.

No ano de 1981, nos últimos anos de guerra fria, um fato curioso aconteceu em águas escandinavas. Um submarino russo classe Whiskey, U-137, em treinamento, após uma enorme bebedeira por parte de sua tripulação, acaba ficando encalhado no território sueco. Durante quase duas semanas uma série de situações políticas criou um verdadeiro alarde para os mandachuvas das duas maiores potências mundiais tendo no centro do tabuleiro o ex-primeiro ministro sueco Thorbjörn Fälldin (Rolf Lassgård) que fez de tudo para que a diplomacia vencesse quem tinha a pólvora nas mãos.

A polarização do bloco comunista e capitalista ao longo de mais de quatro décadas é uma página batida em livros de história, algo que aprendemos com certa ênfase por conta de seus desenrolares que só foram desfeitos com o declínio financeiro e político da ex-União Soviética (URSS) já nos anos 1990. Esse assunto, que ficara no imaginário de muitas pessoas, se desenvolveu com muitas histórias desse período que já foram adaptados para projetos audiovisuais.

Em Whiskey on the Rocks a fórmula encontrada para contar mais um capítulo desse embate é o humor. Com generalizações simplificadas dentro de estereótipos guiados pelo calor daqueles momentos, chegamos em personagens conhecidos da história mundial, como o ex-presidente norte-americano Ronald Reegan (Mark Noble) que logo no seu início de governo buscava frear a influência global da União Soviética. Também ganha o palco o Ex-secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Leonid Brejnev (Kestutis Stasys Jakstas). No meio disso tudo, não podemos esquecer a Suécia e sua política interna controlada, guiada por um criador de ovelhas, Thorbjörn Fälldin.

Com seus diálogos memoráveis e uma contextualização eficiente - até visualmente com o uso de um ‘tabuleiro de War’ a cada ping pong nas conexões - Whiskey on the Rocks coloca por entrelinhas o desespero por um estopim para se criar uma inconsequente guerra. Jogando para escanteio qualquer tipo de profundidade dramática, com a espionagem também ganhando seus contornos, essa ótima minissérie nos leva até um aulão bem-humorado que coloca em evidência a diplomacia, algo difícil por aqueles tempos.


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Pausa para uma série: 'Paradise'


Com uma forma criativa e concisa de apresentar sentimentos e dilemas em torno do fim do mundo – e também no declínio das relações sociais - chegou nesse início de 2025 na Disney Plus o surpreendente seriado Paradise. Criado pelo excelente roteirista Dan Fogelman, que já tinha deixado sua marca com a aclamada This is Us, esse seu novo projeto atrai o público com reviravoltas, mistérios e camadas que se abrem aos montes nos levando para uma jornada empolgante através de personagens enigmáticos.

Tudo ia bem numa comunidade perfeita de algumas milhares de pessoas até que um dia o presidente Cal (James Marsden) é brutalmente assinado no seu quarto. Logo, Xavier (Sterling K. Brown), o responsável chefe por sua segurança, começa a juntar as peças desse quebra-cabeça que nos leva até a exposição de fatos surpreendentes que vão de encontro aos interesses de Sinatra (Julianne Nicholson) uma influente nas relações políticas. Se você acha que a trama se prende a isso, não ande por esse caminho. Ao final do primeiro episódio entendemos um pouco do que é aquele lugar.

Trazer o fim do mundo e os dilemas que surgem a partir de decisões no calor do momento amplia os horizontes dessa obra-prima de oito episódios que trazem surpresas atrás de surpresas. Impressiona como são bem desenvolvidos os personagens – os principais e os coadjuvantes – fato fundamental para entendermos ações que se completam com um contexto que se mostra bem mais amplo que a premissa.

Indo mais a fundo, precisamos falar também de algumas atuações. O trio protagonista formado por James Marsden, Sterling K. Brown, Julianne Nicholson é impressionante, dominam nossos olhares. Muitas vezes taxados como heróis ou vilões alguns personagens tem um brilho que ultrapassa essa corrente simplista, esses três personagens se encaixam nesse ponto. Merecem estar na próxima temporada de premiações.

Do drama ao suspense tendo as verdades nas entrelinhas, as etapas da jornada do herói são complexas com o passado interligando o presente. Para isso o recurso narrativo de flashbacks se tornam uma mola propulsora e certeira. Com essa estrutura sólida, chegamos nos emaranhados dos campos políticos, nas relações familiares, nos traumas e consequências e nos deslizes da moral.

A fórmula encontrada por Fogelman encontra horizontes, caminhos que se cruzam, com as ótimas Fallout e Silo, mas tem sua própria identidade, segue por outros caminhos que elevam a qualidade do projeto. Um destacado mérito é conseguir amarrar as pontas soltas até seu season finale sem deixar de plantar dúvidas sobre o que virá pela frente. Alguns dos episódios, principalmente o penúltimo que se torna um enorme divisor de águas, podem pintar em listas futuras de melhores capítulos de uma série nos últimos anos.

Com a segunda temporada já garantida nos resta aguardar os novos desenrolares dessa que é até agora a melhor série do ano.


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Crítica do filme: 'É Tempo de Amar'


As sequelas do pós-guerra não é um assunto novo e já foram epicentros de produções audiovisuais ao longo dos anos. Mas como cada história traz um componente contado de sua forma, é sempre uma jornada interessante entender mais sobre esse período marcante da humanidade, principalmente quando o discurso apresenta segundas chances que batem de frente com traumas e nas relações sociais.

Em É Tempo de Amar, filme francês que entrou em circuito nos cinemas brasileiros nesse início de 2025, nos deparamos com um retrato baseado em uma história que ocorreu na família da diretora Katell Quillévéré. Envolvendo o público com as euforias de uma oportunidade no amor, misturando-se com segredos e fantasmas do passado, chegamos em dilemas e sacrifícios de duas almas destinadas a viver uma conflituosa relação.

A garçonete Madelaine (Anaïs Demoustier) vive seus dias de luta e tristeza em uma França em meados da década de 1950. Mãe solteira de um menino, fruto de um relacionamento com um soldado alemão durante a guerra, um dia conhece François (Vincent Lacoste) um estudante rico por quem logo se apaixona. Mas ao longo do tempo começa a perceber que ele também esconde alguns segredos.

Exibido no Festival de Cannes em 2023, esse longa-metragem costura sua narrativa numa linha que busca a tensão, percorrendo a amargura, onde personagens em contrapontos buscam sua identidade em meio a um ninho conturbado de variáveis que afetam a todos ao redor. A relação entre mãe e filho e as dificuldades do entendimento de culpa, o casal que descobre novas esferas para declarar seu amor, o julgamento social, são elementos que se tornam a base de um roteiro que coloca nos holofotes as segundas chances.

Podemos definir esse projeto como duas partes que buscam serem complementares, sendo que na primeira, com a ajuda de uma objetiva contextualização, uma narrativa sólida busca o antes para explicar o depois. No segundo momento, com a adição de um triângulo amoroso que abre as cortinas de segredos, o projeto ganha tons novelescos se concentrando de forma redundante nos poucos personagens e caindo nas armadilhas do melodrama.

Longe de ser empolgante, também foge do rótulo de descartável, apresentando com consistência a aceitação, o preconceito e as diferentes formas de amar em uma França movida por intensas emoções logo após um período de caos.


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07/03/2025

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Pausa para uma série: 'A Dona da Bola'


Mesmo não apresentando nada de novo e seguindo a linha convencional de uma série de comédia que derrapa sem receios no ‘nonsense’, o projeto da Netflix A Dona da Bola é um passatempo que diverte nos levando até os desenrolares de conflitos dos muitos personagens tendo como foco uma família disfuncional e o mundo empresarial de um dos esportes mais lucrativos dos Estados Unidos em plano de fundo.

A vida da acomodada e milionária Isla Gordon (Kate Hudson) se resume a ser a chefe de um setor filantrópico da organização milionária da família, o time de basquete Los Angeles Waves. Quando seu irmão Cam (Justin Theroux) é internado em um clínica de reabilitação, a empresa precisa de um novo presidente e o cargo é oferecido para Isla. Grande entendedora de basquete, ela precisa agora, juntamente com sua equipe, decifrar os caminhos para o sucesso de um negócio dominado pelo patriarcado.

Muitas camadas de uma família cheia de problemas nas relações interpessoais, o machismo nas organizações, a guerra do marketing, o conflito de classes, traições, dopping, problemas com drogas, o tumultuado novo mundo do glamour e dinheiro, são alguns dos pontos que transbordam nesse projeto criado pelo trio Ike Barinholtz, Mindy Kaling e Elaine Ko.  

Trazer os bastidores dos esportes para uma série de televisão não é algo inovador. De formas diferentes, vimos isso na ótima Lakers: Hora de Vencer e também na aclamada série da Apple Tv Plus, Ted Lasso. Em relação a essa última, pode ser traçar alguns paralelos com essa série da Netflix, uma pessoa que não entende muito bem do novo cargo e descobre nas relações caminhos para o sucesso. Mas A Dona da Bola não encontra o brilhantismo do projeto estrelado por Jason Sudeikis, além de escorregadas ao tentar abraçar todos os embates de seus muitos personagens. Há alguns, como o irmão recém-descoberto Jackie (Fabrizio Guido) que são esquecidos ao longo dos episódios.

Parece bobinha mas a série tem suas questões apresentadas de forma reta e objetiva chegando em boas reflexões. Pode até mesmo – para o olhar mais atento – encostar na realidade: tem romance, drama, pontos que se interligam pelos tons cômicos e situações mirabolantes. Ao longo de 10 episódios de 30 minutos, e com uma enxurrada de subtramas, o seriado protagonizado pela indicada ao Oscar Kate Hudson tem um ritmo acelerado com acertos e erros em todos os seus capítulos dessa primeira temporada. 


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01/03/2025

Crítica do filme: 'O Reformatório Nickel'


Com uma narrativa que chama a atenção com sua criatividade e dinamismo, um dos indicados ao Oscar de Melhor filme em 2025, O Reformatório Nickel, mostra desde seu arco inicial a força que esse filme teria para trazer através de memórias dolorosas reflexões importantes para a sociedade. Esse é um daqueles filmes que você assiste e não esquece.

Ambientado em partes na década de 1960, acompanhamos Elwood (Ethan Herisse) um jovem negro, cheio de sonhos, que um dia após pegar uma carona acaba sendo enviado injustamente para um reformatório conhecido pelo tratamento abusivo. Nesse lugar, vive experiências marcantes numa época de separação racial e enorme preconceito, encontrando na amizade do colega Turner (Brandon Wilson) uma força para passar pelos obstáculos que o destino colocou em sua frente.

Baseado no livro homônimo ganhador do Prêmio Pulitzer de ficção em 2020, escrito pelo romancista norte-americano Colson Whitehead, o filme tem uma ótima sacada ao seguir com a câmera o ponto de vista dos protagonistas, provocando uma imersão fantástica que agrega imagens e movimentos para as intensas emoções dessa jornada de angústia, dor e preconceito. Essas trocas de perspectivas dão um fôlego interminável para a narrativa, com ângulos e imagens aleatórias completando uma experiência marcante e emocionante.

Com a surpresa de atravessar o tempo, num antes e depois, que vira uma única reta, contextualizando toda a experiência vivida num lugar cruel, acompanhamos a indignação, o preconceito descarado, em uma época triste da nossa história. Aos olhos de Elwood e Turner, um repleto de ideais e outro completamente cético ao futuro, exemplos entre tantos outros que sofreram a mesma dor, percorremos essas memórias doloridas que se mostram presentes, presos ao passado difícil de esquecer.

Com mais de 50 vitórias em premiações e com duas indicações ao Oscar 2025, O Reformatório Nickel entrou na Prime Video nesse início de 2025. Não deve ganhar o Oscar mas não deixa de ser um dos mais profundos filmes da seleção desse ano. Belo trabalho!

 

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Crítica do filme: 'O Caminho Errado'


Dirigido por Hallvar Witzø – que já concorreu ao Oscar com o curta-metragem Tuba Atlantic – o longa-metragem norueguês O Caminho Errado aborda o ‘virar a página’ dentro de uma constatação da ruína de uma vida desestruturada e sem direção. Essa questão nos é apresentada por meio de dois irmãos completamente diferentes e suas lutas com o cotidiano dentro de relacionamentos e os conflitos provocados. O filme entrou no catálogo da Netflix nesse início de 2025.

Emilie (Ada Eide) é uma mãe solteira, com péssima relação com o pai da filha, que está completamente perdida sobre o que fazer da vida. Certo dia, após se encontrar com o seu único irmão, Gjermund (Trond Fausa), resolve se inscrever numa famosa competição de esqui cross-country, um árduo evento com o objetivo de percorrer 54 km na neve. Ao longo de todo o processo de preparação começa a perceber novos olhares para o futuro.

O ‘virar a página’ é sempre um processo tido com árduo, os problemas continuam lá mas há formas de olhar de forma diferente para eles. Tendo isso na essência dessa obra, há um caminho interessante construído ao longo dos agradáveis 90 minutos de projeção batendo na tecla do destruir para reconstruir. Logo, um paralelo com o esporte como meio de disciplina, uma experiência que muda razões existenciais, se torna a força motora para se chegar ao clímax.

O sólido roteiro atinge o objetivo de seu discurso, trazendo reflexões sobre os temas abordados – principalmente sobre a crise existencial - mesmo numa narrativa convencional sem muitos momentos marcantes. As camadas trazidas por pinceladas de subtramas, de forma complementar, nos levam até questões sobre maternidade, casamentos e estradas nesse percorrer.

O Caminho Errado é um filme pés no chão, joga na tela problemas mundanos que podemos enxergar por aí, fato que logo aproxima o público. O protagonismo andando como um espelho que reflete os embates entre os dois personagens centrais é um ótimo caminho encontrado para crescer em contextos uma história basicamente sobre superação.   


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28/02/2025

Crítica do filme: 'História de Amor em Copenhague'


A poesia de um roteiro sensível e cheio de significados encontrando as verdades de muitas realidades é um pouco do que explica o surpreendente filme dinamarquês História de Amor em Copenhague. Ao longo de um recorte na vida de uma mulher vivendo as expectativas de realizar o sonho de ser mãe e os atritos de um relacionamento com altos e baixos, o longa-metragem dirigido por Ditte Hansen e Louise Mieritz consegue, em seus 105 minutos de projeção, emocionar do início ao fim.

Mia (Rosalinde Mynster) é um escritora de sucesso que vive seus dias em total descontrole, adepta das relações constantes e descartáveis. Tudo muda em sua vida quando conhece Emil (Joachim Fjelstrup), um solteiro, pai de dois filhos. Os dois logo se apaixonam e começam a viver o desejo de ter um filho juntos. Mas esse processo colocará à prova todo o amor que sentem um pelo outro.

É muito fácil dizer que o amor vence qualquer barreira, esse geralmente é o discurso de muitas produções que se acomodam numa narrativa simplória sem muitas pretensões. Mas nesse longa-metragem não é o ocorre. De corpo e alma, os personagens nos levam para uma gangorra de emoções com uma profundidade tocante que ainda por cima consegue passar bem longe de clichês. A direção opta por uma riqueza de detalhes buscando sentido na explosão de sentimentos, no íntimo de corações em conflito.

Partindo do início de uma história de amor chegamos num clímax bem construído onde um desejo acaba sendo a turbulência por conta de tudo que está envolvido. A razão e a emoção se chocam sob a ótica de uma protagonista que se encontra na vulnerabilidade do entender o momento em que vive com a consequência de lidar com o que estão ao seu redor. A liberdade e as responsabilidades encontram a crise existencial atingindo uma angústia vista até a última gota.  

Trazendo essas verdades para um contexto entre duas pessoas fadadas a andarem juntas – na lógica do grande amor - onde o cotidiano nos mostra que os quebra-molas são inúmeros e as barreiras aparecem quase sempre, História de Amor em Copenhague vai fisgar muitos olhares dentro de sua subjetividade e nas lições que deixa em todo seu caminho. Lindo filme!

 

 

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