24/07/2024

, ,

Critica do filme: 'La Ilusión de la Abundancia'


Poucos filmes nos impactaram tanto esse ano como essa produção colombiana selecionada para a Mostra Competitiva do Bonito CineSur 2024. La Ilusión de la Abundancia, dirigido pela dupla Erika Gonzalez Ramirez e Matthieu Leitaert conta com um discurso afiado colocando na tela verdades sobre três regiões do mundo onde a ganância e os absurdos tomaram conta. Pelos olhares de três fortes figuras femininas latino-americanas, Bertha, Máxima e Carolina, somos imersos em uma narrativa que busca nas reflexões o complemento para absurdos das injustiças sociais e ambientais. Com uma narração que ajuda a costurar a forte mensagem contida em cada linha do roteiro, somos testemunhas de histórias que nunca esqueceremos.

Exibido em mais de 100 festivais em todo o mundo e vencedor de 12 prêmios internacionais, o projeto se divide em três partes mas que dialogam frequentemente transformando esse media-metragem em um projeto de força avassaladora. Com ganchos intercessores que dão dinamismo à narrativa, o espectador tende a ficar com os olhos grudados em tudo que é exibido. São relatos e mais relatos chocantes, que nos causam indignação, mas que geram perguntas diversas.

No Peru, chegamos até a história de Máxima Acuña, uma agricultora que frequentemente é intimidada de várias formas por uma empresa que busca os recursos da região onde ela mora  para benefícios. Essa sede pelos recursos naturais de empreendimentos gerenciados por quem tem dinheiro, encosta no conceito de ‘novos conquistadores’ reforçado pelos relatos marcantes, viscerais, sobre os absurdos contra moradores violentamente caminhando para o desabrigo. Além disso, o documentário joga uma luz num sistema judicial peruano trabalhando para quem tem o poder além de uma importante reflexão sobre a necessidade de um sopro de resistência, com os camponeses se juntando e ganhando voz mundial.

Em Honduras, a morte da ativista ambiental Berta Cáceres acende uma chama de luta e reflexão sobre a escassez pela privatização dos recursos naturais, as desapropriações de terra, a causa indígena. Sua filha Bertha se coloca à frente dessa luta, abrindo a todos os absurdos cometido em toda a região onde moram provocado pelo consumismo descontrolado que chegam rapidamente até a violência e um bico nos princípios morais.  

A última parada desses choques de realidade é o nosso país, mais precisamente no pós desastre de Brumadinho que colocou a mineração no centro de discussões. Através da ativista Carolina e numa batalha incansável para justiça ao mais de 200 mortos na tragédia, após  rompimento da barragem do córrego do feijão, uma série de ações são feitas na busca por transparência, visibilidade e justiça.

Com um discurso único que se transmite através dessas três histórias, chegamos ao desfecho com a sensação de perguntas não respondidas sobre os crimes de responsabilidade citados. A importância dessa obra audiovisual chega exatamente para isso: documentar os absurdos,  lutar por justiça e não deixar cair no esquecimento!

 

 

 

 

 

Continue lendo... Critica do filme: 'La Ilusión de la Abundancia'

23/07/2024

,

Crítica do filme: 'Los de Abajo' [Bonito CineSur 2024]


Um caminho sem volta pelos direitos da terra. Exibido na última edição do Festival do Rio de Cinema e selecionado para a mostra competitiva cine ambiental do Bonito CineSur 2024, Los de Abajo busca em seu discurso reflexões dentro do conflituosos contexto de uma região através do olhar de um homem, um pai de família, no limite pela sobrevivência. Escrito e dirigido pelo cineasta Alejandro Quiroga, o projeto mostra os passos da renúncia da felicidade, o caos emocional constante dentro de uma situação que sufoca, e um flerte sem volta com o sacrifício.

Na trama, ambientada no bairro de Rosillas, na Bolívia, conhecemos a dura história de Gregório (Fernando Arze Echalar), um homem que se vê perdido em dilemas, problemas com bebida, abraçado a uma amargura constante, desesperado, desde que busca com toda sua força o reestabelecimento do açude de sua família que caíram nas mãos da elite local. Abandonado por todos que pede ajuda, e na sabendo como lidar com os que estão ao seu redor, ruma em passos largos ao precipício de uma ideia sem volta.

Esse é um projeto rico em reflexões por mais que a narrativa não consiga alcançar um clímax propriamente dito, fato esse que nos leva direto até as representações dos sentimentos sem muito respiro. As desilusões após inúmeras tentativas de ajuda vão minando até mesmo a sanidade do protagonista dentro de uma construção já reforçada pelo todo, que vai desde a injustiça social até as causas ligados pela ganância e egoísmo de quem tem poder sobre tudo. Esse complexo de Deus, aqui representado pela figura do implacável fazendeiro que usa e abusa da corrupção, através de seu poder econômico, impedem Gregório de alcançar novas maneiras de enxergar o mundo. Essa parte e todo seu desenrolar é um dos méritos do roteiro.

Ainda dentro desse emaranhado, o roteiro desse filme boliviano, se projeta pra construir uma barreira nos sentimentos, afastando o personagem principal de qualquer lapso de felicidade. A construção para isso é feito de maneira distante, prefere-se as entrelinhas, um ponto que o espectador precisa de atenção aos detalhes principalmente ao de uma fotografia que conversa bastante com o discurso.

Los de Abajo não é uma jornada feliz, longe disso. Instiga o espectador a todo instante. Sem pretensões, alcança o refletir com o esforço de uma solidão dolorosa que é jogada, através de seus sofridos personagens, na tela.

 

 

Continue lendo... Crítica do filme: 'Los de Abajo' [Bonito CineSur 2024]
, , ,

Crítica do filme: 'Luiz Melodia – No Coração do Brasil' [Bonito CineSur]


Um observador do próprio cotidiano sem deixar de ampliar os olhares para o coletivo. Escolhido como filme de encerramento do 'Festival É Tudo Verdade' 2024 e selecionado para o Bonito CineSur do mesmo ano, Luiz Melodia - No Coração do Brasil nos leva para um tour objetivo sobre a carreira gloriosa, com altos e baixos, de um dos maiores artistas que o Brasil já viu. Chegando até o sucesso e o inusitado de ir ao seu desencontro, ao longo de 85 minutos de projeção, pelas ruas da alegria e com o violão debaixo do braço, acompanhamos um meteoro de carisma e genialidade que saiu do morro e conquistou plateias de todo o país.

Com o auxílio do próprio protagonista contando sua história através de imagens e vídeos, o documentário passa pelo toque de sonhar sozinho que levou o grande melodia a uma direção de sucesso atrás de sucesso. Sem fronteiras quanto ao gosto musical, seus embates com o próprio mercado fonográfico, a primeira canetada de sucesso, as parcerias musicais, são algumas das passagens desse belo trabalho assinado por Alessandra Dorgan que venceu o prêmio de Melhor Filme na 16ª edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical.

Passando rapidamente também pelos seus primeiros passos na música, sua relação carinhosa e muito próxima com o lugar onde foi criado, o Morro Do Estácio, a chegada ao mundo da fama, num primeiro momento logo reconhecido como talentoso compositor, depois seu desabrochar como um intérprete de apresentações únicas, vemos ao longo de 85 minutos a caminhada até seu brilhantismo que conquistou a atenção de Gal Costa e outras lendas da Música Brasileira.

Com o rico auxílio de imagens de outrora, numa fabulosa montagem, passeando no estácio, um lugar que sempre lhe quis, ou num momento pelos palcos da vida, Luiz Melodia - No Coração do Brasil costura o encontro entre as observações do cotidiano e as emoções, na visão do próprio centro das atenções, chegando até um recorte interessante sobre sua carreira, o homem e o artista de forma empolgante. Melodia pode ter ido por aí mas jamais saiu daqui...dos nossos corações.

 

Continue lendo... Crítica do filme: 'Luiz Melodia – No Coração do Brasil' [Bonito CineSur]
, ,

Crítica do filme: 'Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo' [Bonito CineSur]


Selecionado para a Mostra Competitiva de Filmes Sul-Mato-Grossenses da segunda edição do Bonito CineSur, dirigido pela dupla Cid Nogueira e Silas Ismael, o longa-metragem documental Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo antes de qualquer coisa é um rico aulão de história e geografia, com belíssimas imagens e uma competente pesquisa. Dito esse mérito, precisamos apontar que parece estarmos assistindo a uma edição de programas educativos. Com uma óbvia forma definida como episódica, mas exibido como filme, o projeto busca apresentar a rica história de uma região através das expedições fluviais, mais precisamente no Rio Coxim que banha o estado do Mato Grosso do Sul.

Há uma estrutura narrativa que segue através do tempo a partir de recortes históricos explicados passando de forma objetiva pelos processos de expedições do século XVII até as consequências socioambientais da atualidade. Pode ser dividido em quatro partes: a história de uma região, os ribeirinhos, os pescadores e os garimpeiros. Os fios intercessores chegam por estudiosos e pesquisadores que, com grande conhecimento do tema, exploram seus olhares como se fossem professores em uma espécie de vídeo aula, que de forma didática, ajudam a construir caminhos para reflexões.

A questão é: como alocar tanta informação numa obra cinematográfica? Com um ritmo acelerado para contar uma história de séculos em 70 minutos (uma tarefa realmente bem difícil!), é preciso de muita atenção e concentração do espectador. Mesmo assim, corre-se o risco de necessitar do complemento de leituras futuras, ou outras obras audiovisuais, para preencher lacunas. Um ponto que poderia ser muito útil mas naufraga é o uso de legendas explicativas que em alguns momentos entram e saem rapidamente, evidenciando um mal uso do elemento.

Algumas críticas sociais, em relação à situações e ações que foram ganhando multiplicidade com o tempo e, em certos pontos, provocando um efeito dominó que impactaram toda a região mostrada, ganham espaço já quase no desfecho mas sem muita profundidade. A cultura ribeirinha, aos olhos de relatos pessoais de alguns personagens que tem um amplo conhecimento daquele espaço, buscando o resgate dessa história, se junta aos pontos positivos da obra.

Em complemento, as pesquisas culturais e o paralelo ao movimento monçoeiro, além das belíssimas imagens da região do Pantanal, um lugar onde convergem vários rios, podem se tornar um prato cheio para geógrafos, historiadores, Botânicos, orquidófilos. Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo se encaixaria melhor como uma obra seriada, dentro da sua estrutura vestido de documentário pode ter um discurso com méritos mas confuso.

 

Continue lendo... Crítica do filme: 'Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo' [Bonito CineSur]

22/07/2024

, ,

Crítica do filme: 'Ainda Somos os Mesmos' [Bonito CineSur]

Crédito Foto: Edson Filho

Marcas de um passado que nunca esqueceremos. Trazendo para reflexões situações vividas por alguns brasileiros que estavam no Chile durante o início da ditadura de Pinochet nos anos 70, o novo trabalho do cineasta gaúcho Paulo Nascimento, Ainda Somos os Mesmos, apresenta dilemas, embates geopolíticos fervorosos, chegando até uma luta pela sobrevivência, com lapsos de solidariedade, apontando dedos para hipocrisias. Baseado em fatos reais, adotando uma narrativa de forma linear usando flashbacks como apoio, o projeto parte de uma relação conflituosa entre pai e filho para se chegar até os horrores de uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul.

Na trama, com seus 91 minutos de projeção, ambientada no início da década de 1970 em meio ao caótico domínio de ditaduras em vários lugares, conhecemos Gabriel (Lucas Zaffari), um estudante de medicina, que após precisar fugir do Brasil por conta dos militares brasileiros, chega até o Chile ainda no governo de Salvador Allende, onde acreditava estar seguro. Mas pouco tempo depois, um golpe de estado liderado pelo chefe das forças armadas chilenas, o general Augusto Pinochet, acontece, levando Gabriel a buscar refúgio na Embaixada da Argentina. Em paralelo a isso, seu pai, Fernando (Edson Celulari), um empresário influente da indústria calçadista, com forte ligação com os militares brasileiros, busca soluções para resgatar o filho.

Para toda essa engrenagem audiovisual funcionar, do discurso até o que vemos em cena, através de todo o contexto dolorido vivido pelos angustiados personagens, há um foco na tensão constante que se sustenta e não estaciona no trivial da relação de pai e filho. Assim, amplia-se o contexto, parte desse ponto para se chegar em outros epicentros dramáticos. Uma questão de toda essa costura, é uma trilha sonora que se torna em certos momentos maçante, quebrando horizontes mais amplos, limitando o olhar do espectador para a construção narrativa.

A insanidade e o desespero é um fator bem explorado, muito por conta da personagem de Carol Castro, Clara, uma brilhante economista afetada de forma drástica pelos abalos emocionais que parecem nunca terem fim. Essa figura, que ganha destaque mesmo com pouco tempo em cena, dentro de uma Mise en Scène que segue o discurso, personifica as emoções conflituosas que o lugar onde estão apresenta. Com as regras zeradas, uma nova dinâmica do poder entre eles mesmos circula o ambiente caótico que virou a embaixada da argentina. A clareza dessas questões deixam mais fáceis as reflexões que se seguem.

Rodado no Chile (na Cordilheira dos Andes e em Santiago) e no Brasil (Porto Alegre e Novo Hamburgo), premiado como Melhor Filme Independente no Montreal Independent Film Festival 2023, e ainda selecionado para o Bonito CineSur 2024, Ainda Somos os Mesmos é mais um filme importante para a galeria de projetos que abordam os tempos sombrios de ditadura. Sempre vamos lembrar e nunca esqueceremos.

 

Continue lendo... Crítica do filme: 'Ainda Somos os Mesmos' [Bonito CineSur]

15/07/2024

,

Pausa para uma série: 'Debaixo da Ponte: A Verdadeira História do Assassinato de Reena Virk'


As marcas da maldade na busca por aceitação. Criado por Quinn Shephard, inspirado no livro Reena: A Father's Story escrito por Manjit Virk, o seriado Debaixo da Ponte: A Verdadeira História do Assassinato de Reena Virk busca uma ampla análise social, através de um assassinato ocorrido no final da década de 90 no Canadá, sobre um assunto que é vivo até os dias atuais: o bullying. Com o uso constante de flashbacks, percorrendo pedaços de décadas, o projeto usa os porquês para o seu alicerce narrativo gerando reflexões que vão desde a rebeldia indomável que se sobrepõe à inconsequência, até o abandono.

Na trama, conhecemos Rebeca (Riley Keough), uma mulher que volta para casa, na cidade de Vitória, capital da Colúmbia Britânica no Canadá, para escrever um livro. Logo após sua chegada, um terrível assassinato é cometido, uma jovem de 14 anos chamada Reena (Vritika Gupta) é encontrada sem vida levando a policial Cam (Lily Gladstone), uma velha conhecida de Rebeca, para uma complexa investigação, repleta de telefone sem fio, que foca em outros jovens que viram a vítima pela última vez.

Amizades ruins, crueldade, manipulação, mentiras, inveja. Partindo de uma protagonista com traumas no passado que vê no trágico ocorrido uma oportunidade para se libertar de algumas marcas, Debaixo da Ponte: A Verdadeira História do Assassinato de Reena Virk contorna o bullying para abrir outras portas com dois pontos que se destacam: a compaixão como elemento de análise com variantes intercessoras e o abandono. Esse último ponto, visto sob algumas perspectivas que se associam aos deslizes da imaturidade.

O contexto familiar da vítima ganha bastante espaço, principalmente em um dos episódios centrais. Filha de descendentes indianos, religiosos ligados à Testemunhas de Jeová, Reena se sentia em conflito pelas regras da fé imposta, chegando até um conturbado relacionamento com a mãe e uma desesperada busca pela aceitação, um elo definitivo para o encontro com outros jovens que nunca a receberam de braços abertos. 

Cheio de bifurcações que adentram camadas poderosas associadas às subtramas, o início, o meio e o fim parecem se associar conforme os episódios passam, com o passado e presente apresentando fatos e trazendo respostas. Não esperem revelações surpreendentes, o objetivo por aqui é usar os porquês para o seu alicerce narrativo. Assim, passo a passo e com muitos detalhes espalhados de forma implícita, chegamos na maldade, na psicopatia, no fardo carregado que ninguém ajuda, na dor, no coração magoado, na necessidade de se sentir aceito.

Protagonizada pelas ótimas Riley Keough e a indicada ao Oscar Lily Gladstone, com um capítulo completando o outro, num total de oito episódios baseados em fatos reais, essa minissérie cheia de caminhos para nosso refletir está disponível na Disney Plus. Merece uma maratona!



 

Continue lendo... Pausa para uma série: 'Debaixo da Ponte: A Verdadeira História do Assassinato de Reena Virk'

13/07/2024

Crítica do filme: 'O Mal não Existe'


A natureza e suas possibilidades. Vencedor do Leão de Prata no Festival de Veneza do ano passado, o novo trabalho do excelente cineasta japonês Ryusuke Hamaguchi, bem longe de ser um filme comercial, opta por uma narrativa densa onde apresenta confrontos que envolvem o meio ambiente e seu equilíbrio. A partir de uma pequena aldeia, onde a água é muito importante, e os prováveis impactos de um empreendimento criado por gestores ignorantes sobre a região, O Mal não Existe apresenta fortes argumentos com inúmeros paralelos com a realidade construindo suas perspectivas através de olhares conflitantes.

Na trama, acompanhamos um homem que mora numa região gelada de apenas 6.000 habitantes no interior do Japão. Ele vive com sua filha e trabalha como uma espécie de faz tudo da região, além de ser um grande conhecedor do lugar. Quando uma empresa de Glamping (algo como um acampamento confortável) resolve criar um empreendimento no lugar, uma área para turistas vindos principalmente de Tóquio, o protagonista e moradores entram em desacordo com a empresa.

A relação dos seres humanos com a natureza é algo bem explorável nesse roteiro contemplativo. É preciso paciência, as peças vão se montando aos poucos e cada detalhe é fundamental. As pausas para o refletir se somam às reflexões em relação a ação do homem na natureza e os impactos disso em uma sociedade. Muitas variáveis dão a sensação de comporem um enorme tabuleiro, um jogo da vida onde o capitalismo sempre arranja força para derrubar o que sempre esteve presente. Mas aqui, a luz chega com a resistência.

De um lado famílias que vivem do que a natureza produz, do outro ações desenfreadas, no caso, atrás de subsídios do governo pós-pandemia. Mesmo num dos países mais desenvolvidos do planeta, a ação do homem abraçado à ganância tira da zona de conforto qualquer resolução trivial. Pensando como obra cinematográfica, há uma ponte que pode gerar reações diversas, que liga o certeiro discurso a concepção audiovisual. A mensagem está nítida mas a maneira como se entrega ela vai depender da paciência do espectador.

Com uma impactante trilha sonora composta pela artista Eiko Ishibashi, que já trabalhara com o diretor no sucesso mundial Drive my Car, o cinema como crítica social alcança sua força através do olhar sensível de um dos cineastas japoneses mais elogiados da atualidade.



Continue lendo... Crítica do filme: 'O Mal não Existe'

Crítica do filme: 'Goyo'


O caos do mundo lá fora. Abordando de forma madura e inteligente o universo das emoções, Goyo, recém lançado na Netflix, é um caminhar de personagens pelo aprender para entender. Escrito e dirigido pelo cineasta argentino Marcos Carnevale, imerso numa narrativa que contempla a arte e suas relações com as sensações, acompanhamos algumas fases do maior dos sentimentos sob dois pontos de vistas. Esse projeto busca abrir espaços de reflexões também para as formas como lidar com a rejeição através de dilemas que percorrem os caminhos dos ótimos personagens.

Na trama conhecemos Goyo (Nicolás Furtado), um homem inteligente que já tem um doutorado e trabalha como guia num museu de artes em Buenos Aires. Condicionado com Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista, vive com sua irmã pianista Saula (Soledad Villamil), uma mulher superprotetora, em um belíssimo apartamento. Ele também é muito próximo de seu outro meio irmão Matute (Pablo Rago), um empreendedor de sucesso, dono de restaurante. Com a chegada de Eva (Nancy Dupláa), a nova segurança do Museu, uma mulher mais velha, com um relacionamento destrutivo com o marido frustrado, Goyo encontrará depois de muito tempo o amor mas também tudo que esse sentimento provoca.

Pés no chão, explorando dilemas, fugindo de qualquer melancolia rasa, explorando os altos e baixos pelo olhar de um protagonista com Síndrome de Asperger e uma outra personagem num momento de total instabilidade familiar, essa obra busca construir caminhos para conexões que surgem sem deixar de abrir um leque de considerações maduras. A narrativa opta por personificar o abstrato dos sentimentos em imagens e paralelos, um transporte das aflições, da dor, até mesmo do sentimento de prazer, um caminho cheio de interpretações onde o contexto se torna importante.  

O olhar para a maternidade ganha alguns focos mesmo que pelas entrelinhas. A estrutura familiar que cerca o protagonista, com os meio irmãos presentes durante toda sua vida fazendo o papel de um pai falecido num acidente e uma madrasta que nunca aprendeu a atender, escolhendo o caminho mais distante na relação com o filho. Aliás, essa última, Magda (interpretada pela fabulosa Cecilia Roth), e sua história com o Goyo acaba sendo a representante em cena que mais se aproxima da mesa de reflexões que o discurso propõe. De forma menos profunda, Eva e as questões que envolvem seus filhos e o marido descontrolado também estão inseridos nesse contexto.

O lidar com a rejeição, outro ponto importante por aqui, chega aos personagens de várias formas, é uma questão que está muito presente nas linhas do roteiro. Mas mesmo escancarado ou escondido em todas suas formas de expressá-lo, o amor, essa variável incontrolável, que nos leva do céu ao inferno, acaba sendo o combustível, algo que alimenta as ações, dos 106 minutos de projeção. Goyo, é uma daquelas obras cirúrgicas que apresenta verdades sobre o caos do mundo lá fora mas sem deixar de tocar nossos corações.



Continue lendo... Crítica do filme: 'Goyo'

12/07/2024

Crítica do filme: 'A Filha do Pescador'


O desenrolar de conflitos familiares tendo o mar como testemunha. Escrito e dirigido pelo cineasta colombiano Edgar De Luque Jácome, em seu primeiro trabalho como diretor de longas-metragens, A Filha do Pescador de forma bem objetiva, contorna a aceitação e o perdão dentro de um contexto familiar, numa relação conturbada entre pai e filha tendo uma paisagem deslumbrante como testemunha. O preconceito, o assédio, o machismo também são elementos que estão inseridos nas linhas do competente roteiro.

Na trama, conhecemos Samuel (Roamir Pineda) um experiente pescador que mora em uma ilha e vive seus dias dedicado 100% ao seu trabalho. Amargurado com o passar do tempo, sem se livrar das desilusões, aprendeu a viver com a solidão. Certo dia, seu filho que não via faz mais de uma década, volta pra casa, agora como uma mulher trans chamada Priscila (Nathalia Rincón), que fugiu da cidade onde morava por conta de uma situação. Quando Samuel se machuca após uma ida ao mar e precisa de alguém para cuidá-lo, esse pode ser o momento que precisam para se entenderem.

Há um paralelo importante do choque familiar com o mar e a força da natureza. Ambientado num lugar isolado mas com suas belezas, percebemos as dores de um passado já distante que ganham novos sentidos com um reencontro, mesmo que em meio a tempestades que logo podem virar dias bonitos. Mas até quando o perdão pode superar as inconsequências? A desconstrução de Samuel é a base para uma narrativa que ruma para a aceitação ao mesmo tempo que encontra a amargura envolvida por uma solidão. O vai e vem do mar e o olhar para a natureza são como uma mensagem indireta, uma parábola, para os desequilíbrios das relações.

Nessa co-produção Brasil, República Dominicana, Colômbia e Porto Rico, em menos de 80 minutos de projeção, com o passar dos conflitos que se seguem vamos vendo uma tentativa de reconexão surgindo, mais uma chance numa relação que insistiu em se perder com o tempo. O preconceito enraizado num machismo interminável nos leva até a dor de uma personagem sofrida, frequentemente assediada, que busca um oásis pro seu sofrimento exatamente num lugar onde as pedras chegam na frente de qualquer conforto.   

A Filha do Pescador dispara suas considerações a partir da melancolia de personagens no sentido de um sentimento que não se desprende da perda. A construção narrativa eficiente e com respiros para entendermos os conflitos dos protagonistas fortalecem o discurso, dentro de um contexto de aflições nos levando até um mar de reflexões.   


Continue lendo... Crítica do filme: 'A Filha do Pescador'

05/07/2024

Crítica do filme: 'Divertimento'


Uma caminhada exigente tendo a força do amor pela música. Contando com muita emoção e detalhes a história da brilhante maestrina Zahia Ziouani, Divertimento tem uma narrativa contemplativa, na linha do admirar e pensar, opta pelo desafio de conectar os sentidos aos confrontos de uma grande protagonista em forma audiovisual, transportando imagens e movimentos com paralelos entre os altos e baixos emocionais. Dirigido pela cineasta francesa Marie-Castille Mention-Schaar, o projeto não deixa de tocar em temas como o machismo e o preconceito, além de outras críticas sociais importantes.

Na trama, ambientada em meados dos anos 90, conhecemos Zahia (Oulaya Amamra) e Fettouma (Lina El Arabi), irmãs gêmeas que desde criança possuem um enorme amor pela música clássica. Vindas de um subúrbio francês, tem a chance de estudar em um conservatório prestigiado em Paris. A primeira com o sonho em ser uma maestrina, a segunda em seguir carreira como violoncelista. Ao longo do tempo, enfrentam vários tipos de preconceitos e impedimentos, até que um dia resolvem formar a própria orquestra. Assim surgiu a Divertimento.

Contornando, em uma espécie de novos olhares para um gênero da música clássica predominante no século XVIII que conta com alguns poucos instrumentos, o divertimento, esse longa-metragem liga a teoria à prática através de uma história de superação, uma busca por respeito. De mãos dadas e em harmonia, o roteiro e a narrativa transformam os palcos da vida, e seus paralelos com a disciplina, numa deslumbrante alegoria das emoções. Muitas vezes, ao longo das quase duas horas de projeção, nos sentimos num grande concerto, com atos poderosos, onde menções à Schubert, Beethoven, se mostram como convidados.

A não definição do que é música (uma verdade universal), esse campo abstrato e cultural, abre margens para inúmeras interpretações que se juntam à ficção. A maneira de sentir, de executar as notas rumo à perfeição, entram nos dilemas mundanos. A rigidez, a prática ganham forma e paralelos com a trajetória de vida que acompanhamos. Nesse ponto, um destaque é o ping pong entre mentor e a aprendiz, aqui com a impactante emoção de Oulaya Amamra (intérprete da protagonista) e Niels Arestrup (intérprete do experiente maestro Sérgio Celibidache) se mostra eficiência nos ótimos diálogos.

Lutando contra o machismo, a falta de reconhecimento das mulheres em um mundo dominado pelos homens, as irmãs Ziouani marcaram seu lugar no concorrido universo da música clássica. Essa inspiradora história pode abrir margens para muitos sonhares. É muito bonito quando uma obra cinematográfica consegue chegar nesse ponto, o de inspirar!


Continue lendo... Crítica do filme: 'Divertimento'