Trazendo um recorte maduro sobre dependências, relações e o
machismo, além do engolir sapos no sentido de situações desagradáveis, o longa-metragem
brasileiro Os Sapos, adaptação da
peça homônima escrita pela carioca Renata
Mizrahi mescla a tragédia do comportamento humano e da moral, com a
comédia. Com um roteiro inteligente, cirúrgico, e uma ótima direção brilham em
cena Thalita Carauta e o restante do
elenco.
Ao longo de um dia vamos conhecendo um pouco da chegada de
Paula (Thalita Carauta) a uma casa
isolada no interior que pertence ao amigo de infância Marcelo (Pierre Santos). Chegando nesse lugar,
se depara com as histórias de dois casais, além de sentir na pele o assédio e o
machismo descarado conforme o tempo passa.
Em apenas um cenário, um lugar distante de conexão com a natureza,
uma enriquecedora série de situações são provocadas a partir da visão da protagonista
em relação a tudo que presencia dos casais que aparecem. Paralelos com a
realidade podem ser sentidos para muitas pessoas que acompanharem esse filme. O
machismo, o depender, os lapsos do sentir a liberdade se amontoam em uma mostra
da sociedade.
Pelas entrelinhas - ou de forma descarada - o projeto
apresenta contextos que soltam reflexões para todos os lados. O clima bucólico
e intimista logo se torna uma bomba relógio passando pelos relacionamentos
tóxicos que também encosta nas dependências no campo emocional. É impressionante
o que se consegue trazer para debate com apenas 77 minutos de projeção.
Um recorte das dores de uma cidade marcada pela violência. Disponível
com exclusividade no Globoplay, o drama Vítimas
do Dia é mais uma obra audiovisual que traz a guerra imposta em muitos
cantos da cidade do Rio de Janeiro, sob o ponto de vista de dois personagens,
que representam de inúmeras formas o choque entre a expectativa da vida e a
possibilidade da morte em uma cidade marcada pela violência. Esse retrato
comovente que mostra através da tensão a realidade, atravessa também o amor, a
compaixão e o afeto através de um ótimo elenco.
O motorista de aplicativo Elder (Amaury Lorenzo) estava em uma noite comum na sua rotina. Chegando
em casa, no subúrbio do Rio de Janeiro, após trabalhar o dia todo, vai ao
supermercado comprar um item desejado pela esposa Daiane (Jéssica Ellen), grávida. Chegando no lugar, é atingido por uma bala
perdida. Em meio a um intenso tiroteio, precisa aguardar atendimento, sendo
amparado por frequentadores e funcionários do estabelecimento. Em paralelo, Daiane
sem saber notícias do marido, acaba entrando em trabalho de parto e tem
dificuldades de sair de casa pois a violência também bate em sua porta.
Com direção de Bruno
Safadi e roteiro de Dino Cantelli,
Vítimas do Dia apresenta de forma emocionante uma noite como tantas outras
já vividas por muitos moradores do Rio de Janeiro, uma amostra do reflexo do
cotidiano do carioca. Pelos jornais e até mesmo por histórias nem contadas,
sabemos o barril de pólvoras que marcam o cotidiano do carioca, uma cidade
dominada por guerra urbanas imparáveis, onde a pessoa sai de casa e não sabe se
volta. Tendo esse contexto bem amarrado, a narrativa apresenta através de um
intenso drama diversos olhares sobre a situação.
Em cerca de 80 minutos de projeção - nesse que é o terceiro
longa-metragem do Núcleo de Filmes dos Estúdios Globo - as dores da violência
acabam encontrando refúgio no campo da humanidade. O afeto e o amor abrem
espaço para ótimos personagens coadjuvantes darem sua contribuição e visão a
essa história. A fé representada por uma nova gerente que descobriu uma
gravidez, uma cliente do supermercado com marcas no passado, outra que fica de
frente na ajuda para Elder, uma policial que se solidariza com o momento de
Daiane, são alguns dos ótimos personagens que ajudam a contar essa história.
Drama urbano que percorre horas em uma noite, tendo apenas
dois cenários, Vítimas do Dia consegue
preencher as lacunas de seu discurso através do começo, meio e fim de situações
ligadas entre a vida e a morte sem deixar de plantar reflexões por todos os
lados através de críticas sociais certeiras.
Buscando apresentar retratos de uma trajetória com altos e
baixos de um dos mais bem sucedidos cantores brasileiros, o documentário Belo: Perto Demais da Luz ao longo de
quatro episódios – todos já disponíveis na Globoplay - joga para o público
reflexões sobre as polêmicas e o caminho trilhado pelo paulista Marcelo Pires
Vieira. Sem passar pano e jogando na tela versões de fatos que caíram na
curiosidade do povo, esse projeto nos mostra um pouco mais do Marcelo e
momentos importantes da carreira de Belo.
A narrativa proposta busca preencher seus espaços primeiro
com um pouco da história da infância e depois até sua entrada no grupo de
pagode Soweto, passando nos episódios finais para as prisões e as mais recentes
polêmicas que lotaram jornais e as redes sociais. Em todo esse processo, vemos
em grande parte a história contada pelo próprio Belo e pessoas que sempre
estiveram próximas a ele. Bastidores de turnês, imagens de arquivos, ilustram
os episódios.
Com criação de José Junior, numa parceira entre Globoplay e a
AfroReggae Audiovisual, não é esquecida a menção à ascensão do pagode no início
dos anos 1990, onde Belo e outros artistas ganharam oportunidades em programas
televisivos e um maior alcance de seus trabalhos. Art popular, Negritude
Junior, Exaltasamba e tantos outros apareceram ao Brasil nesse período, abrindo
espaço para futuros artistas. Para quem tem 30 anos ou mais lembra bem dessa
época!
A impressionante maneira de Belo se reinventar mesmo com os
quebra-molas que apareceram na sua frente parece ser um fio condutor do
projeto. Midiático desde que alcançou o sucesso e sem nunca perder a fidelidade
de seu enorme público, sua vida virou um livro aberto à interpretações. Essa
série, segue nessa linha. Com tanta exposição, polêmicas não faltaram ao longo
dos seus 50 anos, completados em 2024.
Desde os relacionamentos com outras personalidades
artísticas, a famosa dívida com um ex-jogador de futebol, até os problemas com
a justiça, são mencionadas com versões que algumas vezes se chocam deixando
para o público qualquer veredito. Há dois momentos que se tornam os pontos
altos, os bastidores das prisões de Belo e o forte depoimento de Gracyanne Barbosa, ex-esposa de
Belo.
Com direção artística de Jorge Espírito Santo, roteiro e direção de Gustavo Gomes, Belo: Perto
Demais da Luz é uma série documental que consegue fugir de ser chapa branca
apresentando fatos, versões, numa modelagem de uma quebra-cabeça de uma figura
por vezes enigmática que nunca deixou de ser amada por seu público.
Uma história de amor em meio a um rico material de um
profissional exemplar que sempre colocou a cultura brasileira em suas pautas.
Assim podemos começar uma análise sobre esse cativante projeto. Exibido em
primeira mão na Mostra de Cinema de Gostoso 2024, Kubrusly – Mistérios Sempre há de pintar por aí reúne uma importante
pesquisa, que junta materiais de arquivo aos detalhes do cotidiano, para
registrar o começo, meio e as novas descobertas do viver de um homem
diagnosticado com uma doença cruel que continua a escrever a sua própria
história.
Diagnosticado com demência frontotemporal, o jornalista Maurício Kubrusly marcou a história do
rádio e da televisão brasileira. Desde a primeira matéria de repercussão – ainda
quando era estagiário – um furo de reportagem sobre a passagem da atriz
francesa Brigitte Bardot pelo Rio de
Janeiro décadas atrás, até as lendárias críticas musicais, passando também por
um quadro de sucesso no importante programa televisivo da Rede Globo,
Fantástico, que levou o olhar curioso de vários pontos do Brasil que poucos conheciam,
Kubrusly é um mestre na arte de como atrair a atenção dos espectadores -
inspiração para tantos outros profissionais da área.
Fugindo do convencional, o projeto vai do divertido ao
curioso, guiado por um olhar delicado, sensível, que navega pelo tempo sendo essa
uma variável com paralelos e trocas com a fabulosa carreira do personagem principal.
Com um rico material, em áudio e vídeo, ultrapassa os desafios dos arquivos
criando uma sintonia no discurso honesto e intimista que se propõe. Através de
retratos de uma história de amor, sua forte ligação com a esposa – que conheceu
anos atrás em um site de relacionamentos – logo chegamos na intimidade que
conversa com as lembranças e se juntam com a sua condição de hoje, na perda da
memória.
Sendo também importante para falar de uma condição de saúde (demência
frontotemporal (DFT) que invade tantos outros lares, que recentemente ganhou
holofotes por ser a mesma que passa o ator Bruce
Willis, Kubrusly – Mistérios Sempre
há de pintar por aí é um recorte também sobre os caminhos para lidar com
essa doença e pode servir de inspiração para tantas outras famílias que passam
pela questão com um alguém próximo.
Dirigido por Caio
Cavechini e Evelyn Kuriki esse
projeto que chega no início de dezembro na Globoplay se consolida como uma obra
atemporal, muito bem estruturada, comovente, que vai seguir como um importante
registro de um jornalista único, uma linda história de amor e a eterna arte de
novos olhares para o viver.
Rock and roll e cinema, tudo isso junto e misturado? Vamos
falar agora sobre Aumenta que é
Rock'n'Roll. Chegou aos cinemas nesse final e abril de 2024 um
longa-metragem brasileiro que usa a nostalgia à seu favor para contar uma
história que envolve sonhos, amores, política e muito rock and roll. Baseado no
livro autobiográfico "A Onda Maldita", de Luiz Antonio Mello, Aumenta
que é Rock'n'Roll navega pelas ambições e desejos de uma juventude fervilhando
por liberdade e desejos em meio ao processo de restauração da democracia.
Na trama, ambientada no início dos anos 80, conhecemos Luiz
Antonio (Johnny Massaro), um jovem
jornalista que desde os tempos de colégio, ao lado do amigo Samuca (George Sauma), sonha em trilhar
carreira pelas ondas do rádio. Luiz consegue a grande oportunidade da vida ao
ser colocado de frente de um novo projeto e assim criar a Fluminense Fm, mais
conhecida como ‘A Maldita’, que logo se torna uma das estações mais ouvidas,
lançando grandes nomes do rock nacional. Em meio ao caos de tentar manter seu
sonho, com desafios atrás de desafios, ele começa a se aproximar de uma das
locutoras do lugar, Alice.
Um tempo que não volta mais. Através dos sonhos de um
protagonista obstinado, contornamos um contexto borbulhante de um país, uma
ligação entre a cultura e as formas de expressão. A rádio é um dos meios de
comunicação que mais vem ficando para trás após a chegada da internet, por isso
histórias assim, de idealizações de sucesso de outros tempos são importantes
para mantermos a preservação da memória ativa. E não pensem que só quem viveu
esses tempos mostrados vai se interessar por esse filme, o leque é bem aberto.
Sob o foco de um protagonista, muito bem interpretado por
Johnny Massaro, chegamos aos dilemas que vão desde a estrutura de uma
oportunidade até sonolentos pontos românticos. Aliás, esse último ponto é
encaixado de forma um pouco forçada dentro de uma narrativa que se apoiam no
carisma de ótimos personagens. Ao longo de quase duas horas de projeção, mesmo
com algumas derrapadas, indo de encontro à clichês, a narrativa busca ser
pulsante, embalada por uma trilha sonora com canções conhecidas, se construindo
a partir de uma realização pessoal buscando assim alcançar reflexões mais
amplas que ligam a política ao espírito de uma geração marcada pela
redemocratização.
Aumenta que é
Rock'n'Roll cumpre seu objetivo, com a sacada de ter a nostalgia como base
do entretenimento, revive o espírito sonhador que está em todos nós. Não deixem
de conferir, em cartaz nos cinemas! Viva o cinema brasileiro!
Um caso que chocou o Brasil e até hoje com pontas soltas. Trazendo
para o público mais um olhar para uma história que completa 10 anos em 2023,
uma abordagem policial feita por membros da UPP da rocinha, no Rio de Janeiro e
o sumiço de um ajudante de pedreiro, o novo documentário da Globoplay Cadê o Amarildo? ao longo das quase
duas horas de projeção, busca encontrar mais respostas através de depoimentos
da família, das autoridades policiais da época, de testemunhas nunca ouvidas e
do julgamento de policiais envolvidos em uma ação que até hoje parece ter peças
que não se encaixam. A dor e o sofrimento dos familiares também é mostrada, uma
busca por justiça constante ao longo de todo esse tempo.
O contexto por aqui é muito importante para entendermos
melhor tudo que se passou. Implementada em 2008 no Estado do Rio de Janeiro, no
governo do ex-governador e depois condenado pela justiça Sergio Cabral, as Unidades
de Polícia Pacificadora, conhecidas por UPP, eram uma aposta das autoridades do
Rio de Janeiro para o combate ao tráfico de drogas nas favelas cariocas e uma
melhor relação entre os moradores e a polícia. Dentro desse cenário e uma
pressão por resultados da polícia na maior favela carioca desencadeou uma série
de ações que culminou na abordagem e sumiço de Amarildo.
O documentário, produzido pelo Jornalismo da Globo, busca
recriar o passo a passo de Amarildo na noite do sumiço, contando também com uma
reconstituição com atores e um cenário virtual. Depoimentos na justiça de todos
os envolvidos e autoridades da época são mostrados, além dos pontos de vistas
de quem acompanhou o caso desde seu início. Alguns desses depoimentos são
impactantes, chocantes, até mesmo contraditórios. Dá pra sentirmos um pouco da
dor de uma família que perdeu um membro querido de forma tão violenta e até
hoje não foi indenizada pelo Estado.
Com direção de Rafael
Norton, direção de produção de Clarissa
Cavalcanti e roteiro de Andrey
Frasson e João Rocha, o documentário tem o mérito de conseguir criar uma
narrativa cinematográfica interessante, pulsante, com um trabalho de pesquisa e
investigação jornalística que se destacam, não deixando de mostrar detalhes importantes
desse caso que é uma emblemática crítica social e política em um país que se
pergunta há 10 anos: Cadê o Amarildo?
Os fatos que levam a contradição lógica. O que você faria se
estivesse em uma estrada dirigindo seu carro e encontrasse um lugar aparentemente
sem saída, com pessoas que nunca viu na vida e ainda por cima tendo que se
proteger de aterrorizantes seres quando anoitece? Criada por John Griffin e produzida pelos irmãos
Russo e Jack Bender que também
produziu e dirigiu a saudosa série Lost,
Origem, também conhecida como From, possui um roteiro inteligente,
repleto de proposições teóricas onde há um clima de tensão constante. Os
paralelos com um jogo de xadrez, impostos nos primeiros episódios retratam bem
o que é proposto dali pra frente, uma batalha contra o desconhecido, onde a paciência
e a combustão emocional se tornam elementos que se chocam. Disponível na
Globoplay, Origem é altamente
indicada para os amantes de mistérios e também aos órfãos de Lost, Fringe, até mesmo as subestimadas Wayward Pines e Jericho.
Na trama, conhecemos Jim (Eion Bailey), um engenheiro que constrói atrações de parques de
diversões e sua esposa Tabitha (Catalina
Sandino Moreno), um casal em crise, perto de assinarem o divórcio que
resolvem fazer uma última viagem juntos de trailer com os dois filhos após uma
tragédia. Durante o caminho, são surpreendidos por uma árvore que impede de
continuarem, regressando para uma outra parte da estrada onde se veem presos em
uma cidade, dividida em dois grupos, que tem como referência o ex-militar e
atual autoridade do lugar Boyd (Harold
Perrineau). Muitas perguntas aparecem: será que eles sobreviveram ao
acidente que sofreram? Aonde eles estão? O ótimo episódio piloto prende a
atenção sem deixar de esconder os principais mistérios e nos contextualizar de
boa parte do que seria a jornada dali pra frente.
Espíritos que manipulam? Pessoas presas em um pedaço de uma
cidade? Lançada em fevereiro de 2022 no streaming MGM+ (antiga EPIX), e ainda
pouco falada aqui no Brasil, Origem explora
lacunas herméticas, adota o paralelo e teorias de paradoxo como fonte de
reflexão. Pra quem curte ir mais profundo no pensar, teorias complexas reforçadas
pelo evidente paradoxo, como o experimento ‘O Gato de Schrödinger’, criado pelo
físico e vencedor do Nobel Erwin
Schrödinger, são amplamente debatidas abrindo um enorme campo de interesse
no espectador mais atento.
Os paralelos entre o estado caótico e a esperança (aqui
revertida de fé) dominam as ações e consequências dos personagens, esses intrigantes,
cada qual com sua forma de enxergar a situação em que não conseguem sair. A
chegada dos novos membros na cidade acaba desencadeando conflitos no pensar,
deixando muitos deles em dilemas profundos. Tem os que enlouquecem, os que
pensam em como ajudar a comunidade como um todo deixando qualquer tipo de
egoísmo para trás, os que enxergam o sonho de um lugar mais alto do que o
pesadelo. Batendo na tecla do princípio darwiniano, de que quem consegue se
adaptar vai ter chances de sobreviver, acompanhamos o cotidiano dessas pessoas,
dentro de um liquidificador de sentimentos, que chegaram naquele lugar por
cidades e estradas diferentes.
A organização da cidade nos leva para a reflexão de que uma
sociedade só sobrevive quando há uma certa cadeia de comando e aqui tudo isso é
colocado em prova na trajetória do ótimo personagem Boyd. Intitulado xerife da
cidade, o homem que precisa tomar as decisões que precisam serem tomadas, por
mais difícil que sejam, se vê em grandes conflitos procurando a fé, passando
pela raiva, ainda buscando entender o que houve com a esposa logo depois que
chegaram naquele lugar.
As histórias e embates dentro da trama nos guiam como se
fosse uma mapa de personalidade. Os traumas vividos, as experiência
compartilhadas, a chegada de muitos deles até ali, a forma como reagem quando
são instigados pelas criaturas noturnas que fazem de tudo para entrar nas suas
casas. Bebendo da fonte da premissa da ótima Wayward Pines, Origem é
interpretativa sem deixar de ser inteligente seja qual o entendimento que você
tiver sobre os surpreendentes acontecimentos da ótima primeira temporada. Que
chegue logo a segunda!
A angústia do desejo. Tema de várias obras ao longo do
desenvolvimento da humanidade, a traição, o desejo, o amor proibido se chocam
em conflitos quase sempre amargurados onde os pontos de vistas se tornam a
estradas para reflexões. O Rio do Desejo,
do ótimo cineasta Sérgio Machado,
nos leva para esse paralelo, uma jornada muito bem construída, objetiva, que
busca criar um recorte dentro do universo abstrato do desejo na visão de um
quadrado amoroso. Baseada em um conto chamado O Adeus do Comandante da obra A
Cidade Ilhada do escritor amazonense Milton
Hatoum, o filme consegue dar vida, movimento, a sentimentos conflitantes.
Na trama, conhecemos o capitão da polícia Dalberto (Daniel Oliveira) um homem sério que
resolve abandonar a corporação e comprar um barco depois de se apaixonar
perdidamente pela bela e alegre Anaíra (Sophie
Charlotte). Ainda em fase de mudança de vida, Dalberto resolve levar a
amada para morar por um tempo na casa onde vive com os dois irmãos, Dalmo (Rômulo Braga) e Armando (Gabriel Leone), o primeiro um fotógrafo
que tem um pequeno empreendimento na cidade, o outro um amante do universo
musical que faz apresentações com sua banda. Mas a aparente harmonia é colocada
à prova quando Dalberto precisa fazer uma viagem de quase dois meses e Anaíra começa
a se aproximar de Dalmo e principalmente Armando.
Os pontos de vista dos ótimos personagens criam recortes instigantes
no quadrado amoroso estabelecido. Os laços dos irmãos são rompidos com a
presença de Anaíra, esse é o estopim que navega durante todo o clímax. O ciúmes,
o proibido, tornam-se elementos constantes na trajetória de cada um deles.
Dalberto se vê completamente perdido em seu descontrole, o irmão do meio
embarca no desconhecido onde o perdoar não é uma opção. Dalmo, o mais velho se
vê no cárcere do voyeurismo buscando a razão, estando próximo do seu desejo mas
mantendo distância na realidade dura que chega na sua frente, prefere o sofrer.
Armando é o lado da imaturidade misturado com inocência do lado desbravador de
um primeiro intenso amor. Anaíra, o ponto de interseção dessa história, se vê
em enorme conflito, se sentindo abandonada, aflorando seus desejos a cada novo
pensamento de desilusão.
Essa reflexiva obra, que já foi até questão de vestibular em
2017 na UFN (Universidade Franciscana), teve uma carreira internacional consolidada
passando por alguns festivais, e inclusive já está vendida para muitos países
(terá exibições em cinemas, da Coreia do Sul, Japão, França, Itália, Portugal).
Com filmagens na bela Itacoatiara (AM), um pouco antes da
chegada da Pandemia da Covid-19, O Rio
do Desejo se constróiem torno
da iminência da tragédia, através dos conflitos, ações e consequências, de
personagens amargurados dentro de laços fortes que são quebrados. A narrativa,
muito bem construída, apresentação a situação sem esquecer de contextualizar
elementos para a história, acelera para seu competente clímax que perdura nas
linhas da melancolia deixando um profundo retrato que envolve essa família.
O desabrochar de um sonho. Vencedor do Prêmio de Melhor
Atriz e Melhor Longa-metragem da mostra competitiva da Première Brasil do
Festival do Rio de 2022, Paloma nos
leva para uma história, baseada em uma notícia de jornal, sobre uma mulher
transexual que tem o sonho de se casar na igreja. Dirigido pelo experiente
cineasta pernambucano Marcelo Gomes,
o projeto apresenta uma forte protagonista em uma jornada de conflitos,
incertezas, amores, traições, que fortalece a força da fé num recorte sensível
e profundo sobre os desenrolares do desabrochar de um sonho.
Na trama, conhecemos Paloma (Kika Sena), mãe da pequena Jenifer que mora com o companheiro Zé (Ridson Reis) em uma casa humilde em
Saloá, município de Pernambuco, uma pequena cidade nordestina com pouco mais de
15.000 habitantes. Paloma é transexual e trabalha diariamente como agricultora
(numa colheita de mamão) e de vez em quando faz bico como cabeleireira. Ela tem
um desejo dentro dela que acaba saltando em seu presente: ela quer se casar na
igreja de véu e grinalda. Em uma conversa com o padre da cidade, ela fica
sabendo que somente o papa poderia dar autorização para ela casar na Igreja.
Assim, resolve escrever uma carta para a maior autoridade católica do planeta.
A partir dessa iniciativa, conhecemos alguns conflitos que a protagonista atravessa na
caminhada para seus sonhos e sem nunca perder sua fé.
Também exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São
Paulo, Paloma contorna as linhas sempre dolorosas do preconceito mas aqui
combatidas com uma força impressionante de uma alegria genuína. De forma
contagiante parece convencer, até mesmo inspirar, a todos ao seu redor para
embarcar no seu sonho. Mas a estrada é cheia de obstáculos, a impunidade de uma
violência desumana está muito próxima. Essa filha de Deus como qualquer outra
pessoa busca uma aceitação dentro de um cenário conservador que muitas vezes
parece não enxergar que o amor está em toda e qualquer relação de duas almas
que se amam.
Sua relação com Zé também tem grande profundidade na
narrativa. Há muito amor nesse lar mas também conflitos sobre o principal sonho
de Paloma. Por exemplo: a mãe de Zé não aceita essa relação e isso vira um
outro conflito com o circo midiático que acaba se estabelecendo com o
casamento. Há também escolhas que a protagonista faz pelo caminho, como seu
relacionamento relâmpago com um terceiro, erros e acertos que aqui são empurrados
pela força dos seus desejos. Kika Sena se
doa completamente a sua personagemem uma
interpretação emocionante que ficará gravada para sempre na memória do cinema
brasileiro.
Quando a realização chega em paralelo ao seu sonho (o sacramento
sagrado do patrimônio), parece um momento de descobertas mais sombrias e
preconceituosas de um entorno conservador, preconceituoso, que dilacera sua
felicidade mas sem nunca deixar de seguir em frente como todos que sabem lutar
pela sua verdade. Paloma chega ao
circuito exibidor brasileiro em novembro, uma oportunidade para todos
assistirem mais uma impactante obra-prima do cinema brasileiro.
O Spielberg frustrado que virou um ícone da música
brasileira. Com exibição de dois episódios no Festival do Rio 2022, a série
documental Vale Tudo com Tim Maia, já
toda disponível na Globoplay,
consegue por meio de uma ótima edição e montagem contar a trajetória de um dos
artistas mais peculiares da história da música popular brasileira, por ele
mesmo. Dirigido por Nelson Motta e Renato Terra, com manchetes de jornais,
vídeos da vida pessoal, entrevistas na televisão, imagens inéditas, até mesmo
uma passagem de um curta-metragem da década de 80 do cineasta Flávio Ramos Tambellini, e também
gravações na antiga TV Tupi, o projeto nos mostra vários momentos do eterno
síndico.
Caçula de onze irmãos de uma família tijucana pobre dos anos
50, Tim Maia andava muito entre as famosas ruas do bairro da zona norte do Rio
de Janeiro, Haddock Lobo e Rua Matoso, por aí começou sua trajetória. Com uma
série de entrevistas e papos com amigos, histórias dos tempos que entregava
marmita (inclusive na casa do Erasmo
Carlos) estão presentes. Já perto dos 12 anos iniciou o fascínio pela
música com um violão de presente dado pelo pai, dali formou um conjunto ‘Os
Tijucanos do Ritmo’, na igreja onde frequentava. Depois os Sputniks, já com Roberto Carlos.
No final da década de 50 ele foi para os Estados Unidos com
um grupo de padres, após a decepção com o término dos Sputniks. Lá ele morou na
cidadezinha de Tarrytown, em Nova Iorque, onde trabalhou como enfermeiro,
mordomo, trabalhando cerca de 12 horas por dia mas sempre tendo a música em
paralelo. No final da década de 60, alguns artistas começaram a gravar suas
composições, como Elis Regina que
gravou ‘These are the Songs’. Logo começou a aparecer no cenário musical
chegando inclusive a ter música em trilha sonora de novela, com ‘João Coragem’
música de ‘Irmãos Coragem’, novela escrita por Janete Clair.
A relação de seu profissionalismo (que às vezes ficava de
lado, faltando muitos shows) e a irreverente genialidade musical, ele que não
sabia escrever música e tentava transmitir aos maestros o que precisa sair de
som para entrar sua voz, marcam presença no projeto. Há relatos curiosos sobre
composições marcantes, um deles: o dia que na parede de um lugar onde estava se
sentindo sozinho, viu um retrato de uma moça na parede e um mar por trás, assim
surgiu o sucesso ‘Azul da Cor do Mar’.
Algumas polêmicas também não faltam por aqui, seu
envolvimento com uma curiosa seita, seus problemas com os vícios, com a lei. Ao
mesmo tempo, também conferimos trechos de apresentações arrepiantes de um dos
criadores do Soul brasileiro que chegam mais presente no desfecho, no último
episódio. Vale Tudo com Tim Maia ativa
nas nossas memórias sobre esse cantor especial, contador e protagonista de
muitas histórias.
O refletir e os choques entre os sonhos e a realidade. O
sonho de uma expedição até Marte em 2030 acaba sendo o pontapé de um lindo
filme, que detalha os sonhos dentro de um contexto mais amplo, de esperança.
Dirigido por Gabriel Martins, Marte Um nos mostra o cotidiano
agitado de uma família dentro de um olhar urbano que caminha pelos relatos de
uma sociedade que vive seus dias sem saber como será o amanhã. Há também um
olhar delicado para o conflito de gerações quando pensamos nas formas de
enxergar as mudanças, o sonhar.
Exibido no Festival de Sundance e no Festival de Gramado desse
ano, Marte Um, ambientado nos últimos
meses do último ano eleitoral (2018), conta a história de uma família que mora
na periferia de uma grande cidade mineira. Tem o pai, Wellinton (Carlos Francisco), que é porteiro em um
luxuoso condomínio e enfrenta com muita firmeza seus tempos de sobriedade após
problemas com a bebida. Temos a mãe, Tércia (Rejane Faria) super alegre e dançante que após uma pegadinha
traumática começa a ter sua rotina acompanhada por medos e aflições. Temos a
filha mais velha, Eunice (Camilla Damião),
uma jovem estudiosa que faz direito na Universidade Federal e está começando um
relacionamento com outra jovem e tem o desejo de se mudar mas ainda não tem coragem
de contar aos pais. Temos o filho mais novo, Deivid (Cícero Lucas) um jovem sonhador que gosta de futebol e adora
astronomia passando horas consumindo esse conteúdo pela internet. Assim, vamos
acompanhando a história de uma família batalhadora, que encontra suas respostas
entre erros e acertos, na esperança e no refletir.
Os sonhos de uns acabam sendo os sonhos dos outros. O filme
bate nessa tecla do sonhar. Deivid não quer ser jogador de futebol, sonho esse
de seu pai que acaba deixando o garoto em conflito. Ele quer ser astrofísico,
ser astronauta, embarcar em uma expedição de colonização de outro planeta anos à
frente do seu presente. Ao mesmo tempo Eunice tem suas dúvidas sobre como será
a reação dos pais quando souberem que namora uma outra jovem. O entendimento mais detalhado sobre esses
sonhos acabam passando no fortalecimento da relação dos dois irmãos.
Frustração e desilusão. Sorte e azar. Equilíbrio e
desequilíbrio. Cair e se levantar. Aqui nesses duelos acompanhamos sob a ótica
dos pais. Tércia parece viver em uma bolha de medo e apreensão provocada por um
trauma que ela não sabe quando será o fim, deixando o destino aprontar.
Wellinton luta pelo controle mas aos poucos percebe que o descontrole faz parte
das incontroláveis variáveis de todas as trajetórias. O alcoolismo, o desemprego,
o medo do preconceito, são outros temas que passam pelas linhas do ótimo
roteiro.
Como ficam nossos sonhos em um país polarizado politicamente,
ainda cheio de desigualdades sociais, transbordando ainda em preconceito? Os personagens
aqui estão à procurar o que todos estão buscando, a esperança. O resto...a gente dá
um jeito.
O acreditar nos sonhos de alguém que busca a felicidade. Em
seu quarto trabalho atrás das câmeras, o cineasta Ruben Alves (do ótimo A
Gaiola Dourada), de maneira leve e divertida, caminha em questões profundas
nos mostrando a saga de Alex, que tem o sonho de ser Miss França. O ator Alexandre
Wetter, modelo andrógino que se destacou no mundo da moda a trabalhar para
o estilista francês Jean-Paul Gaultier, foi indicado ao César, em 2021, como
revelação masculina mais promissora por seu papel nesse filme.
Na trama, conhecemos Alex (Alexandre Wetter) que desde adolescente tem um mesmo sonho. Após o
acidente com os pais quando era mais jovem, fora criado em orfanatos e hoje se
vê morando numa pensão, sem muitas pretensões profissionais. Mas Alex tem seu
sonho guardado com ele, ser Miss França, e a força de vontade de chegar até seu
objetivo transforma essa jornada colocando muitos obstáculos mas sempre indo em
frente. Assim, irá iniciar essa jornada contando com os próximos amigos que
moram com ele na pensão.
Um fórum para ideias políticas? Um símbolo do sexismo? De
maneira um pouco além do superficial, mas sem deixar de ser um tópico
importante, há um embate sobre a importância ou não do concurso de Miss, além
de seus critérios de seleção. Inclusive, um paralelo à realidade: no ano de
2021, o concurso Miss França foi processado por discriminação após selecionar
concorrentes com base nas suas aparências físicas, entre alguns outros critérios
considerados abusivos aos olhos da legislação trabalhista francesa.
Estimado em pouco menos de 5 milhões de euros, transitando
entre o drama e a comédia, Miss França
acende debates importante em um mundo ainda muito conservador. Explorando
também como uma pessoa se sente em relação ao próprio gênero (aqui exemplificado
na questão não-binário: pessoas que se identificam como homem e mulher, nenhum
dos dois, os dois ou nenhum gênero em especifico), navegamos por essa deliciosa
história, repleta de obstáculos para Alex e que ensina a cada nova chance de
levantar, erguer a cabeça a ir atrás dos sonhos.
A força e determinação de uma mãe de muitos. Livremente
inspirado em fatos reais, Pureza mete
o dedo na ferida em um grave problema que acontece não só no Brasil mas em
vários lugares do mundo: o trabalho escravo. Em um país onde a palavra não vale
nada, onde há corrupção por todos os lados, o projeto traz à luz feridas em
aberto de uma sociedade que tem muitas dificuldades em buscar seus direitos
pela lei. Dirigido pelo cineasta Renato
Barbieri o filme teve exibição no Festival do RJ em 2019 e só agora em 2022
consegue chegar aos cinemas brasileiros.
Na trama, ambientada ainda na época do cruzeiro real,
conhecemos Pureza (Dira Paes) uma
mulher batalhadora que vive uma vida simples com seu filho Abel (Matheus Abreu). Quando esse último
resolve ganhar a vida em uma região distante de onde mora, sua mãe logo fica
sem saber notícias sobre ele. Assim, a protagonista, durante meses, resolve ir
atrás do paradeiro de seu único filho e acaba caminhando pelos caminhos do
absurdo político, do trabalho escravo, em lugares onde a lei não existe. Essa
mãe que iniciou uma busca por seu filho acabou sendo uma intensa força
propulsora para denúncias contra o trabalho escravo no Brasil.
A forte protagonista acaba sendo nossos olhos nesse filme
denúncia que além de escancarar os absurdos do trabalho escravo, fala do
sentimento de uma mãe e toda coragem de uma mulher batalhadora que aprendeu a
ler aos 40 anos. A forte relação, maternal, que Pureza cria com os
trabalhadores nas fazendas da região amazônica que esteve nos levam a refletir
sobre a tristeza e solidão de muitos que precisam sobreviver sem auxílios,
lidando com condições de trabalho precárias, sem carteira de trabalho e todos
os direitos que a lei determina.
O projeto, que teve um mês de gravações com muitas cenas
realizadas em Marabá (no Pará) é inspirado na história real de Pureza Lopes
Loyola, cuja luta deu origem à criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel,
a primeira ação na História do Brasil destinada a combater o trabalho escravo
em todo o território nacional. Uma mulher guerreira com uma causa importante. Para
vocês terem ideia, em 2018, pode-se afirmar que cerca de 40 milhões de pessoas
foram submetidas a trabalhos escravo em todo o mundo.
Uma distopia que diz muito sobre nossa sociedade. Baseado na peça Namíbia, Não!, de
Aldri Anunciação, o longa-metragem
que marca a estreia de Lázaro Ramos
na direção, Medida Provisória, é um
dos mais impactantes projetos cinematográficos dos últimos anos. Metendo o dedo
em feridas de uma sociedade que enxerga o preconceito mas faz pouco para que
ocorra mudanças, o projeto debate sobre as questões sociais, econômicas,
políticas de um país que vive em constante condições de extrema opressão e
desespero. De maneira muito inteligente, vemos dentro de uma distopia muito do
que enxergamos pela janela todos os dias.
Na trama, em um futuro sem data definida mas longe de ser
muito diferente da nossa realidade, conhecemos o advogado Antônio (Alfred Enoch) que mora com Capitu, sua esposa
e médica (Taís Araújo) e o primo, o
jornalista André (Seu Jorge). Certo dia,
uma medida de reparação financeira pelos tempos de escravidão no Brasil é
proposta, e a mesma é golpeada por outra medida provisória criada pelo Governo
Brasileiro, que consiste em obrigar os cidadãos negros a ‘voltarem’ à África
como forma de reparar os tempos de escravidão. Assim os três personagens
enfrentarão absurdos, os primos trancados dentro de casa e Capitu fugindo pelas
ruas da cidade.
Quem nunca viu uma ação preconceituosa no seu cotidiano? E o
que você fez, sentiu, pensou quando enxergou tal situação? Exibido no Festival
do Rio, na edição que aconteceu no final de 2021, Medida Provisória busca suas reflexões dentro de situações que não
deixam de ser grandes paralelos com o que enxergamos em nossa sociedade. O uso
do tragicômico, reforçado pelo ótimo personagem André, fortalece o discurso da
narrativa colocando o espectador perto de situações próximas do nosso cotidiano.
A questão da resistência e a rede de apoio que acaba se
formando para ir de encontro à opressão é muito bem definida. Vivendo próximos
de outros que compartilham de mesmo valores, pensamentos e laços de identidade,
representados aqui pelos lugares de resistência denominados Afrobunkers e também
pela situação que se encontram Antônio e André, e todo o pensar sobre esse
momento em que vivem, os medos, as incertezas, mas também a necessidade de
lutar.
A questão política, e todo o preconceito embutido, é refletida
através das consequências dos absurdos da medida provisória que anula outra
medida que era uma reparação financeira pelos tempos de escravidão no Brasil. Um
peito aberto preconceituoso, sem medo de se mostrar, que representa que o preconceito
sempre esteve presente. Assim como a direção política que o Brasil tomou nesse
governo que estamos, repleto de ‘medidas provisórias’ que vão bem longe do
encontro de uma sociedade mais justa, unida e respeitosa com todos.
Medida Provisória é
um impactante projeto. Merece ser visto, revisto e debatido. É um grito, é
resistência, é uma demonstração de que a força para a luta dos seus direitos
pode e deve ter o seu valor. Bravo!
O grito de um poeta quase indecifrável da música popular
brasileira. Exibido no Festival é Tudo Verdade 2022, Belchior – Apenas um Coração Selvagem nos mostra por meio de
depoimentos do próprio ao longo de muitas entrevistas que concedeu ao longo de
sua carreira parte da trajetória desse compositor, cantor, letrista que usava
sua música para falar sobre a vida, a juventude, sobre o cidadão comum sujeito
a vida, não interessado em nenhuma teoria, com foco em ajudar a refletir. A
fama, o sucesso, o sumiço, também geram pensares, reflexões. O posicionamento
dos artistas sobre questões sociais também. Em um momento onde a cultura é
diariamente ferida por um governo que não enxerga o poder de transformação da
arte na vida das pessoas, sempre bom lembrarmos ou até mesmo conhecermos
pessoas que dentro do seu refletir reproduziram a essência existencial de um
Brasil atemporal.
Nascido no norte do Ceará, um dos filhos de 23 irmãos, o
mais bem sucedido deles, foi para São Paulo, viver de sua arte. Vivia o dia,
vivia a noite sem precisão na sua definição artística, que era uma soma de muitas
influências. Em cerca de uma hora e meia de projeção, acompanhamos sua
impactante chegada na música popular brasileira, seu modo de pensar caminhando
para a morte pensando em vencer na vida.
Pela dor e a incerteza há como descobrir o poder da alegria?
Dono de um pensar carismático sobre o que enxergava sobre a vida, refletia
sobre a vida do nordestino na cidade grande, principalmente quando chegou em
São Paulo para ganhar a vida no mundo das artes. Há um recorte do nordestino na
visão de um homem que refletia a todo instante sobre sua origem. A religião
como influência, o canto popular nas festas das cidades, o seu olhar sobre uma
região, um povo, tudo que viveu, viu, leu, da poesia para a música. Afirmação
de ideias e sentimentos dentro de um trabalho contemporâneo, atemporal e
nordestino ao mesmo tempo que era devoto de que os homens não tinham raízes
permanentes. Em alguns momentos do documentário poemas e letras do artista são
declamadas pelo ator cearense Silvero Pereira.
Uma aventura cheia de romantismo? Uma encarada como ofício? Emergindo
do underground, sua chegada na música como ofício é guiada por um forte
sentimento poético, além de referências como: Luiz Gonzaga, Joao do Valle, Jackson do Pandeiro, o movimento da Tropicália, Os Beatles, e mais da
música popular de sua época. Seus encontros com grandes nomes da música, como
com a cantora Elis Regina, que gravou
uma de suas composições mais conhecidas, Como
Nossos Pais, são mostrados rapidamente.
O filme atravessa alguns detalhes de seu álbum mais
consagrado, Alucinação, lançado em em
meados da década de 70 e que de alguma forma inaugura a distância da maçante
metáfora da época dentro de um discurso não claro, um trabalho de confronto com
a realidade onde não apenas os rapazes latino americanos sem dinheiro banco se
sentiam representados mas todos que de alguma forma enxergavam que para viver é
necessário a resistência de seus sonhos e no acredita.
Bocejos ou sonhos matinais? Delírio dentro de suas
experiências com coisas reais? Participante de movimentos democráticos, Belchior,
adepto do amar e o mudar, dava luz aos problemas da até então nova geração,
dentro de um quase paradigma do que seria a básica ação de suportar o dia a dia
sem comprometimento com o passado.
A fórmula de buscar decifrar o artista numa espécie de ‘Belchior
por Belchior’ é mais que certeira. Você pode terminar esse documentário e
querer sair correndo para conhecer as canções de Belchior, eternizadas no
universo constante e radiante da Música Popular Brasileira. Um belíssimo
trabalho dos diretores Natália Dias e Camilo Cavalcanti.
As realidades de um Brasil. No final do ano passado, depois
de uma carreira em festivais de cinema no Brasil e em outros países, chegou ao
circuito exibidor um dos filmes mais impactantes do cinema brasileiro dos
últimos anos, Cabeça de Nêgo.
Discutindo e fazendo refletindo sobre o preconceito, o racismo e muito sobre o
precário sistema de educação pública do nosso país, o longa-metragem dirigido
por Déo Cardoso é um soco no
estômago que escancara a realidade vivida por muitos em um país sem
oportunidades e preso a interesses. Disponível no catálogo da Globoplay.
Na trama, conhecemos Saulo (Lucas Limeira), um jovem muito inteligente que após uma discussão
em sala de aula e ser ofendido por um outro colega de classe, resolve protestar
não saindo das dependências da escola. O assunto ganha as redes sociais e junto
a outros colegas começa a divulgar as precárias condições do colégio onde
estuda que acabam provocando um grande embate com a direção do colégio,
políticos e poderosos da região.
Quando nada vai bem, é preciso reagir. Explorando a questão
da importância do protestar, o projeto coloca o dedo na ferida do sistema educacional
brasileiro que vem se deteriorando ao longo dos anos causando um descaso contra
muitos jovens de nosso país que estão matriculados na educação pública. Por
meio das ações do protagonista, vemos cenas muito parecidas que acompanhamos do
lado de cá da telona.
A questão do racismo é outro foco. A partir do insulto,
Saulo provoca reflexões, muitas dessas inspiradas por um livro dos Panteras Negras
(organização urbana socialista revolucionária fundada por Bobby Seale e Huey
Newton em outubro de 1966) a partir da sua ação em ficar no colégio.
As reflexões são inúmeras nesse belíssimo trabalho de Déo
Cardoso. É um filme que precisa ser mostrado em sala de aula, ter muitos
debates sobre os poderosos temas que aborda. É pra ver e rever! Filmaço
brasileiro!
Existe razão nas coisas feitas pelo coração? Com uma tarefa
árdua de transformar em filme uma das músicas mais emblemáticas da carreira da
inesquecível Legião Urbana, banda de
rock liderada pelo genial Renato Russo,
o cineasta René Sampaio (que em 2013
adaptou Faroeste Caboclo para o
cinema) consegue pegar uma estrada de emoções, escolhas, dentro de duas visões completamente
diferentes do viver e o resultado é um filme emocionante que transpira muitas
fases da vida. Gabriel Leone e Alice Braga estão em grande harmonia na
pele dos protagonistas.
Na trama, conhecemos Eduardo (Gabriel Leone) e Mônica (Alice
Braga). Eles não sabem mas vão se apaixonar perdidamente. Ele, um jovem
que está perto de prestar o vestibular, joga futebol de botão com seu avô (com
quem mora após o falecimento de sua mãe), tem o sonho de ser engenheiro, nunca
se apaixonou. Ela, uma jovem já na fase final da residência em medicina, que
faz experimentos visuais em festas e espaços, mora sozinha e anda de moto,
gosta do movimento Nouvelle Vague, está antenada em manifestações e na luta por
dias melhores para sua comunidade. Essas duas almas vão se encontrar em uma
festa e o destino deles estará entrelaçado para sempre.
Assim como em Faroeste
Caboclo, esse é mais um filme que dezenas de caminhos poderiam ser tomados
quando pensamos em narrativa para contar essa história. Procurando ser bastante
fiel aos ricos detalhes da letra de Renato
Russo, Sampaio e companhia navegam na construção crescente do sentimento,
sendo muito precisos nos conflitos que essa relação tende a enfrentar. A
questão da diferença de idade nunca foi um grande tabu, nem epicentro desse
amor, partimos então para as reflexões em torno de como já pensam sobre o mundo
e sobre um do outro. A partir disso, conflitos vem as montes misturados com
acréscimos em forma de crítica política. O maior exemplo desse acréscimo é o
fato do avô de Eduardo ser militar e consequentemente no emblemático embate que
acontece quando Mônica (que teve o pai exilado) vai conhecê-lo pela primeira
vez.
Mas para sentirmos o filme como ele deve, precisamos falar
sobre a construção do maior dos sentimentos. Para o amor, essa força pulsante
que nos guia, ser recriado em uma tela de cinema vários elementos precisam
estar em harmonia, não só os excelentes atores em cena. Há uma poesia de
background em cada cena que os dois sonham e declamam seus sentimentos, em
resumo podemos afirmar que a construção dos personagens é belíssima. Tudo faz
muito sentido nessa difícil adaptação de uma letra de música para formato
audiovisual.
Mesmo carente de um clímax, talvez falte aquela cena para
ficar guardada nos corações cinéfilos, Eduardo
e Mônica já pode ser considerado um dos ótimos filmes desse início de 2022.
Será que Sampaio já está pensando em outra adaptação de alguma letra de Renato
Russo? Ou ainda é cedo?
A malandragem de uma boa história. Divertido, empolgante,
com personagens inesquecíveis que aborda a cultura popular, a tradição
religiosa, o amor no mais puro sentido desse sentimento, O Auto da Compadecida foi lançado nos cinemas brasileiros em setembro
do ano 2000 dirigido por Guel Arraes.
Baseado em um clássico homônimo da cultura nordestina brasileira escrito por Ariano Suassuna, além de outros dois
contos do famoso escritor, O Santo e a
Porca e Torturas de um Coração,
todos de meados da década de 50, o filme foi um grande sucesso de público e
crítica levando mais de 2 milhões de pessoas às salas de cinema de todo o Brasil.
Na trama, ambientado na década de 30 no nordeste brasileiro,
conhecemos dois amigos inseparáveis que se metem em diversas confusões próximo
à região de Taperoá, na Paraíba. Chicó (Selton
Mello) e João Grilo (Matheus
Nachtergaele) são dois jovens, pobres, que fazem vários bicos em busca de
suas próprias sobrevivências. Conhecendo bem a região e seus moradores,
envolvem a maioria desses em diversas situações que mexem com a fé, com as
tradições, com a ambição, com o desejo. O
Auto da Compadecida é, sem dúvidas, um clássico do cinema brasileiro. Uma
parte do texto, antes virara peça de teatro, tendo sua primeira exibição sendo
feita em 1956 em Recife, em forma de auto, em três atos. Grandes artistas já
encenaram os saudosos personagens, Agildo
Ribeiro por exemplo foi um dos grandes intérpretes de João Grilo nos
palcos.
O elenco é fantástico. Temos Selton Mello e Matheus Nachtergaele, nos papeis principais, temos Luis Mello de Diabo, Fernanda Montenegro de Compadecida(a própria Nossa Senhora), Marco Nanini como Severino (o
perturbado Cangaceiro), Lima Duarte e Rogério Cardoso nos papéis religiosos,
Paulo Goulart como Major Antônio
Morais, pai de Rosinha, interpretada por Virginia
Cavendish. Tem também os ótimos Denise
Fraga e Diogo Vilela que fazem
um casal, ela uma assanhada dona de casa ele o padeiro da região.
Da cultura à boa história. Assistindo a esse belo filme nós
rimos, nos emocionamos, conhecemos melhor toda uma cultura de um nordeste
criativo, das origens do cordel, dos traços do barroco, da importância
religiosa e as devoções. Um dos méritos do roteiro, que teve surpervisão de
Suassuna, é encontrar uma forma alegre e descontraída de mostrar o retrato de
uma vida dura de muitos dentro de uma sugestiva magia e criatividade da cultura
brasileira. Mas não fica apenas em referências daqui, já que até há traços de Decamerão,
de Boccaccio, no filme.
As inconsequências sobre os limites da ética. Milagres de
natal ou irresponsabilidades médica? Passado praticamente durante uma noite
bastante alucinante, O Bom Doutor,
longa-metragem francês, nos mostradois
mundos completamente diferentes que se encontram de maneira inusitada, um
médico rabugento e já com preguiça da profissão que atende à domicílio e um
ingênuo jovem entregador de encomendas que quase nunca pensa sobre seu futuro. A
partir desse encontro, várias linhas reflexivas são geradas, dentro do ponto de
vista do não médico e das irresponsabilidades do que possui a licença para
medicar. Os contrapontos dos absurdos se mesclam entre o improvável e o
aceitável nessa comédia feita pra rir que tem no elenco o comediante e Youtuber
Hakim Jemili e o veterano ator Michel Blanc . Quem assina a direção é Tristan Séguéla.
Na trama, conhecemos o médico Serge Mamou-Mani (Michel Blanc), um homem que vive com o
luto da perda do filho presente em seu cotidiano. Ele é médico, com muita
experiência, que hoje em dia atende à emergências na casa dos próprios
pacientes. Certo dia, após seu destino cruzar com o de Malek (Hakim Jemili), um simpático entregador,
ele resolve pedir ajuda dele para cuidar do restante dos pacientes que faltam
no turno pois Serge está com uma dor aguda na coluna e não consegue mais se
movimentar. Assim, Malek se faz passar por médico e por meio de uma
escuta/headphone/telefone executa o que Serge lhe diz pelo ponto no ouvido. Febre,
diarreia, dor de garganta, prisão de ventre, dos mais simples aos mais
complexos casos aparecem durante essas intensas horas desse dia natalino.
Os limites da ética viram quase um background que envolve
todas as ações e inconsequência que testemunhamos, sem medir os riscos
possíveis a dupla vira cúmplice dos absurdos diagnósticos à distância feita
presencialmente por aquele que nunca exerceu a medicina. Há um ritmo acoplado
na comédia, deixando a história com leveza mesmo tendo um ponto de objetivo
cenários eminentes de caos em busca das consequências. Os artistas possuem uma
harmonia muito visível, ótimas cenas dentro do absurdo todo proposto.
Que bom seria ter seu amor mais uma vez. Um dos filmes mais
aclamados da última década quando pensamos em cinema brasileiro, O Céu de Suely, segundo longa-metragem
da carreira do cineasta cearense Karim
Ainouz, é um projeto que nos diz muito sobre desilusões e as escolhas que precisamos
tomar, mesmo dentro da inconsequência, quando nada mais faz sentido em nossas
vidas. Dentro de um contexto melancólico, desesperada, aflita, sem rumo, a
protagonista toma uma decisão no mínimo polêmica, sofrendo o preconceito e
travando uma batalha interna, gerando conflitos inclusive na casa onde está
hospedada. Um filme que gera muitas reflexões. Uma atuação impactante da atriz Hermila Guedes. Tem no catálogo da Globoplay.
Na trama, conhecemos Hermila (Hermila Guedes), uma jovem que chega de São Paulo com seu filho
pequeno de volta para o interior do Ceará, mais precisamente a cidade de Iguatu,
para morar um tempo na casa da avó e da tia mototáxi, na espera da chegada de
seu marido. Vive de bicos para conseguir sobreviver até o seu marido chegar de
São Paulo. Mas será que ele vem? Rodeada de incertezas e com uma certa
desconfiança nesse relacionamento aos olhos de sua família, ela reencontra João
(João Miguel), um antigo amor. Mas
conforme os dias passam, ela começa a ter mais certeza que está sozinha nesse
mundo, e assim, resolve tomar uma atitude desesperada e rifa a si mesmo gerando
um grande bafafá na cidade.
Desilusões. Solidão. Incertezas. Entre um cigarro e outro, a
protagonista vive conflitos internos bastante profundos, não se encaixando em
praticamente nenhum lugar. No lado do amor, vive a desilusão com a falsa
promessa do marido. Nas noites mal dormidas, reflete sobre sua solidão e o que
vai fazer da sua vida sozinha. A chegada (ou retorno, como preferir) de João em
sua vida, um trabalhador honesto que gosta muito dela faz muito tempo, gera a
incerteza pois dentro dela a certeza é de que ela não pertence aquele lugar.
Nos arcos conclusivos, refletimos sobre as questões das
promessas e nessa parte onde Hermila encarará a porta que deseja abrir. Se vai
deixar seu filho com a avó e a tia e partir para uma nova cidade para ganhar a
vida, se vai se deixar envolver por um novo antigo amor, se ainda dentro do seu
coração cabe a esperança de um dia seu marido ainda a encontrar. O Céu de Suely mostra através dos olhos
de uma forte protagonista feminina as dores de um mundo que muitas vezes não
lhe foi leal.