17/10/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #135 - Rodrigo Torres


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nosso entrevistado de hoje é um grande cinéfilo, dono de um texto espetacular. Rodrigo Torres é formado em Letras pela UFRJ e ama dar aula, mas mudou de carreira em 2012, quando se tornou jornalista e começou a trabalhar com cinema. Hoje ele trampa com educação e marketing digital, diz que sua paixão por filmes e séries virou hobby, mas tem gente que discorda e garante que ele tem um novo projeto de cinema na manga.

 

Obs: querido amigo Rodrigão. Uma das pessoas mais inteligentes que conheço. Já até trabalhamos na mesma empresa durante um período. Seus textos são excelentes! Ele deveria escrever livros e livros. Flamenguista apaixonado, esse querido cinéfilo é um gentil cidadão que sempre lutou para transmitir ao público informações, notícias, opiniões sobre o fantástico mundo da sétima arte. Continue em frente Rodrigão! Precisamos sempre de pessoas como você em nosso país.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Eu amo o Estação. Um cinema que enfrentou dificuldades recentemente e se mantém como um refúgio do dito circuito de arte, ou alternativo, da cidade. E eu amo particularidades dos vários cinemas do Estação. Eu amo o hall do Estação Net, vivo indo lá pra comer um lanche, descansar, escrever... O Estação Botafogo tem o segundo espaço mais icônico da cidade em relação a cinema, que é aquela salinha de espera com uma imagem do Grande Otelo e Oscarito (só perde pro Cine Odeon). E tem o Estação Ipanema, que eu passei a frequentar muito depois que o metrô chegou ali próximo e eu me mudei pra zona sul, porque é muito aconchegante. Taí: o Estação sempre consegue combinar a melhor programação da cidade com uma ambiência maravilhosa também. Nesse momento eu tô lembrando do Estação e do cheirinho peculiar do cinema. Que saudade...

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Lua de Cristal. 1990. 4 aninhos. Eu costumo brincar que a minha maior prova de cinefilia foi ter superado essa primeira experiência sem trauma, hahaha. Até hoje eu lembro perfeitamente da cena do Sergio Mallandro de príncipe num cavalo branco e essa memória é afetiva — pasme! Outra lembrança muito vívida é de ver aquela tela prata gigante na minha frente e do meu fascínio diante daquilo. Amo cinema desde pequeno. Eu cresci indo muito ao cinema, me empolgando com As Tartarugas Ninja, me emocionando com O Rei Leão, com o cinema sendo o meu hobby favorito. E a experiência do filme também. Um dos melhores momentos da minha infância foi quando minha mãe chegou do trabalho com um presente pra mim e pra minha irmã, e esse presente era um videocassete usado e uma fita do Aladdin, que eu já visto no cinema e tinha amado. Recentemente a minha irmã fez uma sessão de cinema para as crianças da família e o fascínio delas vendo o filme me fez chorar (meus olhos estão cheios de lágrima agora) porque me fez lembrar desse dia. Depois disso eu virei uma criança rata de locadora, que pegava filmes "pro meu pai" que na verdade eram pra mim mesmo, e eu passava os fins de semana brincando com os amigos de dia, jogando videogame de noite e vendo filme antes de dormir — era de lei. E então, um belo dia, eu aluguei Coração Valente e, na cena que o Mel Gibson se recusa a pedir misericórdia e grita "Liberdade!", pela primeira vez eu chorei vendo um filme e a vida mudou pra mim. Ali eu entendi que cinema era, e é, algo diferente.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Eu não tenho um diretor favorito. São muitos. Tem o Hitchcock, tem o Scorsese, tem o PTA, tem também o Linklater... tem muita gente! Mas eu tenho um filme predileto: O Poderoso Chefão. Nenhum outro reúne tantos signos que me fascinem da forma que O Poderoso Chefão fez. A forma como o tema da máfia é desenvolvido é espetacular. A maneira como aspectos virtuosos como família, lealdade, respeito e riqueza se confrontam com o mundo do crime e o horror da violência é algo que me insere por completo na narrativa. Aquele é um universo muito crível, muito imersivo, e esse tipo de construção de universo e atmosfera é das coisas que eu mais valorizo num filme. Tem o elenco, que é uma verdadeira seleção dos melhores atores que eu cresci vendo (eu vi O Poderoso Chefão pela primeira vez com uns 18 anos, já tinha um bom conhecimento de cinema), e tem todo o contexto em que aquele filme aconteceu, da Nova Hollywood, que é a fase do cinema que mais me cativa e interessa, em que eu mais queria ter vivido.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Que engraçado: no cinema nacional, eu teria muita dificuldade de dizer qual é o meu filme predileto, mas respondo de bate-pronto qual é o meu cineasta predileto: Eduardo Coutinho. Eu gosto bastante de documentário e eu admiro muito a habilidade dele de ouvir as pessoas, e as mais humildes, e criar uma grande história baseada só nesse poder da audição, num primeiro momento, e, depois, numa capacidade absurda de narrativizar essas histórias real de modo a torná-las melhores que muita obra de ficção bem pensada e sofisticada. Cabra Marcado Para Morrer é espetacular, obra-prima, mas eu gosto de tudo que ele fez. Jogo de Cena, Edifício Master, As Canções... e também amo os menorzinhos, como Santa Marta, e o experimental Um Dia na Vida, todo feito de trechos de comerciais que ele via na TV.

 

Pra não estragar a sua pergunta, vou indicar um filme que eu amo de paixão e gostaria que mais pessoas vissem: Histórias Que Só Existem Quando Lembradas, da Júlia Murat. É uma dessas obras que te transportam pra outro lugar — pra dentro delas. Eu até digo numa crítica que você vê os personagens em cena e consegue sentir o cheiro do café que eles estão passando em cena. Uma graça de filme.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Ser cinéfilo pra mim é ver muito filme e ser um estudioso do cinema. Por isso eu não me considero mais um cinéfilo, pois tenho visto pouco filme e lido menos. Eu ainda vejo muita TV, mas muito esporte, um tanto de notícia também... Vejo programas no YouTube como nunca antes e algumas séries mais escapistas, mais bobinhas. Filme e série boa eu só paro pra ver quando consigo focar 100% na televisão, por isso eu tenho visto menos. Mas eu ainda escrevo sobre cinema, eventualmente, e eu me garanto justamente porque eu já fui muito nerd, já li muito sobre a história e a linguagem do cinema, e porque eu sigo bem informado a respeito do que tá rolando, mesmo quando eu não estou consumindo muito filme. Acho que essa é bagagem é mais importante para ser um bom crítico de cinema do que ser cinéfilo a vida inteira — você pode já não ser mais alguém que veja muuito filme e ainda ser um bom crítico.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Nunca pensei nisso, e qualquer resposta que eu dê será leviana porque eu não conheço muitos programadores (acho que só você, que eu sei que gosta e entende). Mas eu posso dizer com certeza que a programação não é montada para quem entende de cinema. Absolutamente não. Os multiplexes são moldados para quem vai ao cinema no fim de semana. O cinema é feito pra dar lucro. E, infelizmente, não existe uma política pública que valorize a arte como algo a ser consumido pela população. No meu mundo ideal, teria. Nem que fosse como acontece na Argentina, onde você encontra salas mantidas pelo Estado que só exibem filmes argentinos a preço popular. Imagina, que maravilha! Enfim, por causa dessa lógica capitalista que são raras as salas com uma boa programação na cidade. Por isso que eu amo o Estação! rs Infelizmente, a imensa maioria dos programadores atende a uma expectativa de lucro que não contempla o gosto mais requintado de um cinéfilo. E não tem muita gente interessada em criar novos espaços como o Estação, que atenda a um público menor, mas fiel.

 

7)  Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Espero que não. Acho que não. Sempre haverá uma sala de cinema em algum lugar. E os multiplexes eu creio que serão sempre lucrativos, logo, não vão acabar. Mas tenho muito medo que as boas salas de cinema se tornem tão raras quanto são os cinemas de rua. Essas, sim, têm o risco de acabar um dia, e num futuro próximo, para a minha mais profunda tristeza.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Já que eu falei na Nova Hollywood e reclamei aqui em cima (indiretamente) das programações ruins baseadas na ideia de que o grande público só gosta de coisa popularesca ruim, vou indicar o Peter Bogdanovich pra galera. Um dos grandes cineastas daquele movimento, mas que é menos conhecido e um tanto subestimado. Essa Pequena é uma Parada, por exemplo, é uma das maiores comédias já feitas. Tem todo tipo de humor mais popular no texto (comédia física, comédia pastelão, comédia de erros etc) e é maravilhoso. Imperdível.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Não acho que deveria, mas, sim, que poderia desde que com boas medidas de segurança. Inclusive, é do que eu mais sinto falta. Mas aí eu pergunto: quem vai querer lançar filme agora? Não sei se é uma boa ideia, não. Mas lamento muito por exibidores como o Estação.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Excepcional. Cada vez mais diverso, vide a ascensão do cinema de terror nos últimos anos. Tem muita gente talentosa fazendo filme. Gente guerreira. Representando bem a gente lá fora apesar de tudo. E vai seguir assim, apesar do desmonte perpetrado por Jair Bolsonaro. Ele não vai conseguir o que quer, o cinema nacional resistirá, tenho certeza.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

O saudoso Eduardo Coutinho. 

 

12) Defina cinema com uma frase:

Uma viagem de duas horas para um outro mundo.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Ihh, já vi muita coisa.... Coisas impublicáveis! Já vi pegação braba entre jornalistas. E uma coisas bad vibes, mas melhor deixar isso pra lá.

De curiosidade, eu já vi um filme inteiro no Festival do Rio com a legenda dessincronizada em 1 minuto e só percebi no final, porque o filme era oriental e meio experimental. Aliás, teve um festival que eu assisti inteiro me recuperando de uma infecção intestinal, uma coisa terrível. Por isso, eu não podia me alimentar de qualquer jeito como fazia todo ano, eu tinha que preparar minha comida e levar na mochila. E logo no primeiro dia eu tive a grande ideia de fazer uma salada de banana. Era um dia quente. Diz o Pedrinho Tavares que quando eu abri o pote, empesteei a sala inteira... Mentiroso safado!

 

Ah, lembrei de outras três, as três envolvendo o FestRio e diretores famosos:

 

1. O dia que eu fui ao mictório após uma longa sessão especial de Holy Motors. O banheiro era grande, tinha uns 10 mictórios, e um homem decidiu urinar justamente no mictório ao meu lado. Contrariado, olhei pro lado calmamente e quando me dei conta, o cara meio baixinho de óculos escuros que mijava ao meu lado era o Leos Carax.

 

2. Outro dia, outro ano, me deparo com um amigo que é professor de poesia e fã do cinema de Eugène Green.

 

— Pô, cara, ele tá aí — disse eu, minutos antes do início da sessão de La Sapienza. O hall do Estação Net Rio tava lotado!

— Eu sei, pô... Vim por isso! Mas duvido que eu vou encontrar ele aqui...

— Ele deve estar pra lá — e quando eu fiz o gesto apontando pra lá, acertei a cabeça de um senhor de bigode e cabeça branca. Esse senhor era o Eugène Green.

 

3. Essa história não é tão curiosa, mais foi a ocasião mais divertida: o dia que eu tomei cerveja, falei de cinema, música e Anitta com Pedro Costa.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

A melhor direção, o melhor roteiro e as melhores atuações do cinema brasileiro. Icônico. Obra-prima.

 

15) Você trabalhou no maior portal de cinema do Brasil, o Adoro Cinema, como foi essa experiência?

Boa enquanto durou. E durou até uns meses antes da minha saída. Quando, devido a problemas pessoais que se agravaram e foram resultar numa Síndrome de Burnout, eu parei de sentir prazer pelo que fazia e passei a sentir só o peso da rotina pesada, que mudara um tempo antes. É curioso olhar pra trás e ver que a minha saída foi um dos primeiros eventos daquele momento de transição que transformou o AdoroCinema no site que é hoje.

 

Tenho orgulho de ter feito parte da Era de Ouro do AdoroCinema. Um tempo em que a equipe montava as pautas com máxima liberdade editorial e construía o melhor conteúdo de cinema da internet brasileira, quiçá da América Latina, assim fazendo jus ao tamanho e à importância do site. Era jornalismo e cinema mesmo! Era bacana demais olhar pra redação e ver todo mundo ralando pra caramba num mesmo propósito. Era bacana demais olhar pro lado e ver como a equipe era diferenciada, diferente entre si e entrosada. Cada um tinha suas qualidades para cada tipo de filme que estreasse e a gente pensava e produzia o melhor tipo de conteúdo para aquele lançamento. Era foda!

 

Aí veio o vídeo...

 

Acho até que a gente se adaptou bem à ascensão do vídeo, fazendo do nosso jeito, mesmo quando a gente ainda fazia algo mais amador, e fomos amadurecendo. Eu sempre defendi que o AdoroCinema mantivesse a sua essência editorial no site, nos textos, e tivesse uma cara mais jovem nas redes mais jovens, como o YouTube, o Instagram e, agora, o TikTok. Essa nova diretoria que se apossou do site não entendeu assim e desmontou toda a equipe em prol de ser o que nunca foi e o que nunca será — uma pena. Pro leitor isso foi péssimo. E pro mercado não foi diferente.

 

Todo mundo sempre teve claro que o AdoroCinema era o site de cinema de verdade, com um conteúdo de melhor qualidade e mais jornalístico, enquanto o Omelete tinha uma outra pegada, uma coisa mais jovem, e que nessa linha vinham muitos outros: o Jovem Nerd, o Ei Nerd! e por aí vai. Hoje o AdoroCinema abriu mão de ser protagonista no que sempre fez de melhor, se descaracterizando completamente, pra ser coadjuvante em algo que não faz tão bem quanto a concorrência. É muito triste... E mais triste ainda é saber que não precisava ser assim.

 

O site se tornou gigante em acesso e faturamento com a cara dada pelo Francisco Russo. Não precisava abrir mão do que era. Podia ser ambos. Podia ser Estação e multiplex, o melhor de dois mundos, mundo ideal. Optou por um mundo que a mim parece o apocalipse.