31/12/2020

Os 10 Melhores filmes que vi em 2020 (mais duas menções honrosas)


É sempre complicado definir filmes para listas mas mesmo sendo difícil sou a favor delas, muito pelo simples fato dessas listas poderem ser referências para cinéfilos que estão buscando filmes para assistir agora ou mais futuramente. Para tal, entretanto, defino uma regra que é a do filme ter estreado nos cinemas brasileiros, ter passado em algum festival desse ano ou estreado em algum streaming no Brasil.

 

Sendo assim, segue minha lista dos 10 melhores que vi no ano de 2020 (e mais duas menções honrosas):

 

 

 

Bad Education (EUA)

Li essa frase em algum lugar recentemente: ‘A ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem.’, não sei de quem é mas ela ilustra muito bem o que assistimos no ótimo longa-metragem produzido pela HBO, Bad Education. O projeto busca recriar um dos maiores escândalo envolvendo roubos quando falamos na ajuda que o governo norte-americano oferece as escolas públicas. Reunindo uma série de situações que mostram toda a ganância e princípios evidentes de sociopatia dos envolvidos, o filme além de bombástico do ponto de vista humano é um espetáculo de boas atuações do ponto de vista cinematográfico. Hugh Jackman, na pele do protagonista, mostra que como herói ele foi muito bom ator mas como vilão é muito melhor.

 

Com direção de Cory Finley (em seu segundo longa-metragem) e roteiro assinado pelo nova iorquino Mike Makowsky (baseado no artigo de Robert Kolker para a New York Magazine), Bad Education, conta a história de duas pessoas amadas pela comunidade de Roslyn (Nova Iorque), nos Estados Unidos, Pam Gluckin (Allison Janney) e Frank Tassone (Hugh Jackman). A primeira é uma espécie de chefe do financeiro e o segundo o chefe da administração da escola. Dois exemplares funcionários que conseguiram levar, junto com o resto da equipe, a escola pública de Roslyn até a quarta posição no ranking nacional de escolas públicas. O problema é que após um deslize e uma investigação amadora feita por uma aluna que faz estágio no jornal da escola, colocam em xeque a personalidade e caráter dessas duas figuras.

 

Os absurdos do roubo que acontece é vista muito pela ótica de Tassone, um homem respeitado pela comunidade, cheio de manias, metrossexual e que parece ter o mundo em suas mãos. Quando seu castelo de cartas começa a desmoronar, principalmente quando Pam é ‘condenada’ pelo conselho que achou suas falcatruas, o personagem entra em uma grande transformação, ou melhor, aquela parede que não nos permitia enxergar quem ele realmente é, cai por terra levando-o a uma série de cinismos e um relacionamento extraconjugal mais prolongado. O mais chocante disso tudo é que ninguém desconfiava de nada, pois, a escola era uma das referências na região, fazendo inclusive aumentarem os próximos dos imóveis que a cercavam.

 

O roteiro, que possui arcos muito bem definidos, alterna ótimos diálogos com cenas impactantes de como a ganância deixa uma pessoa completamente cega e que no final do dia vale mais a pena ver chorar a outra família do que a sua, pelo menos para os envolvidos nesse roubo que ocorreu de verdade em 2004 (inclusive, o roteirista Mike Makowsky era aluno do high school numa região próxima ao ocorrido.).

 

Um ótimo filme, profundo, impactante e que mostra verdades chocantes de um escândalo que abalou as estruturas do ensino norte-americano.

 

 

Mank (EUA)

A lealdade cega pode se tornar sufocante. Produzido pela Netflix e bastante cotado para indicações nas próximas grandes cerimônias de cinema, o novo trabalho do ótimo cineasta David Fincher (Seven, A Rede Social, Clube da Luta...) é um projeto muito interessante, onde  cinéfilos se divertirão pois fala sobre bastidores da maior indústria de cinema do mundo e mais especificamente curiosidades sobre a criação do roteiro de um dos mais aclamados filmes de todos os tempos. Com idas e vindas, com direito a generosos flashbacks e uma trama pincelada por arcos descritos como textos de roteiro há muito mais para refletirmos além dos porquês de Cidadão Kane: As teorias do futuro do cinema para as pessoas da época, As hipocrisias de um mercado capitalista que sempre esteve acima da arte, revoluções e reviravoltas em diversos pontos de ebulições em uma indústria e sua eterna roda gigante de ego e ganância pelos que defendem a interesse de poderosos. Ótima direção de Fincher, grande atuação de Gary Oldman.

 

Na trama, conhecemos Herman Mankiewicz (Gary Oldman), ou apenas Mank, um influente roteirista da década de 30/40, falador, dono de uma bebedeira suicida, viciado em jogos que influencia e acaba sendo influenciado por nomes poderosos de uma época que pega quase a transição do cinema mudo para o cinema falado e onde os grandes roteiristas começaram a surgir. Quando Orson Welles (Tom Burke) chama o protagonista para criar um roteiro, somos testemunhas entre flashbacks e inspirações sobre o processo criativo do ganhador do Oscar de Melhor Roteiro em 1941, Cidadão Kane

 

A narrativa é um grande círculo, como uma rosquinha de canela. O P&B dá um charme e nos leva até as décadas de 30/40, como não amar entrar em um estúdio grandioso do início do outro milênio e conhecer novas curiosidades sobre a bilionária indústria cinematográfica norte-americana. O eterno jogo de interesses de qualquer negócio, artistas, executivos, o amor pela arte flutua em linhas tênues entre status, poder e prazer. As linhas de diálogos, as situações criadas, o papel do roteirista é o grande foco por aqui (sobre o tema roteiristas, o ótimo Trumbo (de Jay Roach) também é uma boa dica) e dentro das reflexões apresentadas pelo protagonista, um eterno observador das ações e da alma humana, fico com uma que se torna um grande decifrador de toda essa jornada: Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas, no mínimo deixa uma impressão.

 

 

 

Another Round (Dinamarca)

O mundo nunca é como esperamos. Selecionado ao prestigiado Festival de Cannes desse ano e também filme de encerramento da Mostra de SP, o novo longa-metragem do aclamado cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg é um grande paradoxo sobre como conseguimos que a despeito de conflitos e angústias a vida ainda pareça boa ou que gere algum tipo de caminho prazeroso dentro de um cotidiano repleto de saudades que sentimos de tudo aquilo que ainda não vimos ou não víamos mais. Another Round pode ser considerado um ensaio psicológico ou uma baboseira total, mas as linhas tênues criadas pelo experimento proposto pelos e para os personagens nos levam a uma junção de reflexões importantes sobre a sociedade. Um trabalho primoroso de Vinterberg que aparece como grande favorito para o próximo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O filme é estrelado por um dos grandes artistas do mundo quando pensamos em cinema, Mads Mikkelsen, que mais uma vez nos brinda (literalmente nesse caso também) com mais uma inesquecível atuação.

 

Na trama, acompanhamos quatro amigos, professores que passam cada um à sua maneira por muitas infelicidades em suas vidas e analisando suas trajetórias e o presente nas reuniões que fazem quase que semanalmente resolvem tirar do papel a curiosa hipótese de Finn Skarderud que mostra haver um déficit de álcool no sangue e que para isso é preciso consumir uma determinada quantidade de álcool para melhorar as interações sociais/profissionais/familiares. Assim, resolvem serem adeptos ao movimento e acabam descobrimento muito sobre a vida mas também os efeitos colaterais do tal experimento.

 

Quando anunciamos derrota, podemos recomeçar? O roteiro transborda o foco no limite do ser humano que caminha pela angústia, fraco e inoperante, sem saber o que fazer para mudar seus dias. Crise profissional, problemas no casamento, amigos e seus conflitos, desesperados em uma mesmice dentro do cotidiano que não desenvolve viram um reflexo mais amplo de uma sociedade que muitas vezes não sabe como lidar para mudar as situações que a vida lhe impõe, principalmente, quando partimos do princípio que a felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes.

 

Vinterberg, uma das grandes mentes atuais do cenário audiovisual europeu, tem o mérito de conseguir captar a angústia de maneira simples e que passa uma realidade absurda onde logo identificamos olhares parecidos perto de nós ou próximos. Pra chegar ao brinde à vida é necessário vencer os obstáculos.

 

 

Rede de Ódio (Polônia)

A ambição nas mãos de mentes perigosas, os vigias da não informação real. Explorando um assunto muito alta nos tempos atuais, a fake news, o cineasta polonês (de apenas 28 anos!) Mateusz Pacewicz que já nos presenteou com o ótimo Corpus Christi (indicado pela Polônia ao Oscar de melhor filme estrangeiro ano na cerimônia passada) chega dessa vez para marcar presença na memória dos cinéfilos com o inaudito Rede de Ódio que estreou aqui no Brasil pela Netflix. Costurando um protagonista enigmático e assombrado pelos seus pensamentos nocivos e egoístas junto a um mundo sem regras nos meios digitais, Pacewicz consegue a proeza de manter os olhos cinéfilos grudados na tela durante as mais de duas horas de duração. Impressiona a qualidade desse filme, excelente!

 

Na trama, conhecemos o jovem e ambicioso Tomasz Giemza (Maciej Musialowski, em atuação estacada) que vem de origem humilde, do interior da Polônia e tem seus estudos sustentados por tios ricos da capital. Invejoso pelos que os outros tem e ele não, possui uma obsessão com a família que o ajuda nos estudos. Quando o protagonista perde sua bolsa de estudos por conta de um plágio em um trabalho, seu mundo começa a se despedaçar e ele, apaixonado por Gabi (Vanessa Aleksander), filha dos tios que sustentaram seus estudos, entra em uma polêmica equipe de marketing digital onde começa a se envolver com difamação e ódio contra determinados alvos pelas redes sociais.  

 

Impactante até o último suspiro, Rede de ÓdioSala samobójców. Hejter, no original, escancara os muros imperceptíveis de pessoas que se escondem em outras personalidades para disseminar terror e ódio, inconsequentes, trilhando caminhos sombrios da internet. Fruto de uma personalidade muito complicada, o protagonista não tem um pingo de bom senso quando percebe que pode ganhar a confiança dos outros com seus atos terríveis e ações sem o menor receio. Chocante e brutal, os arcos do roteiro vão nos guiando para um final estrondoso que diz muito sobre o mundo desse lado daqui da tela, esse universo real sem meio termos que vivemos e onde perdemos as chances de diálogos e entender ao próximo.

 

Never Rarely Sometimes Always (EUA)

Nunca, raramente, as vezes, sempre. Seu coração pode estar partido hoje mas amanhã à luz da manhã. Ganhador de prêmios esse ano nos Festivais de Berlim e Sundance, um dos filmes mais comentados desse ano atípico para a civilização mundial, Never Rarely Sometimes Always, escrito e dirigido pelo cineasta nova iorquina Eliza Hittman, traz ao público um recorte de um tema polêmico, o aborto, de maneira dura e necessária para gerar a reflexão de todos nós do lado de cá da tela. A protagonista, interpretada por Sidney Flanigan (em seu primeiro filme como atriz) é o retrato de muitas mulheres espalhadas pelo mundo, as escolhas que ela tem e as decisões que toma em um mundo de informações instantâneas mas tão distante para pessoas que ainda estão aprendendo sobre a vida. É um filme com cenas fortes, onde se expressa toda a dor e conflitos da protagonista. Impressiona a captação das emoções pelas lentes sensíveis de Hittman.

 

Na trama, conhecemos Autumn (Sidney Flanigan), uma jovem introspectiva de 17 anos que trabalha como caixa de supermercado enquanto termina a escola e que está passando por uma situação complicada e difícil, se sentindo sozinha, muito por medo de contar à família, medo das reações dos que giram ao seu redor. Buscando entender melhor a situação que vive, vai em busca de soluções que acha as que tem que tomar, ouvindo especialistas em clínicas femininas. Como mora no interior dos EUA, resolve embarcar em uma viagem para Nova Iorque, junto com sua prima e única confidente Skylar (Talia Ryder) para tomar decisões complicadas e tentar seguir em frente com sua vida.

 

As causas da reclusão emocional e suspiros de alegria pela música, um cruzamento de sentimentos. Uma série de problemas ligados às emoções estão contidas na vida da personagem principal, não só provocado pela situação da gravidez que se encontra. O filme abre espaço para outros temas que machucam as mulheres, principalmente sobre o assédio, exemplificado no da própria protagonista e o no da prima, os exemplos são muitos que assim como no filme nessa nossa sociedade ainda muito machista. Deixando claro argumentos profundos e contextualizados sobre dores e escolhas Never Rarely Sometimes Always possui 100 minutos de muitas histórias, não só desse recorte. Um filme importante para debates cada vez mais intensos e necessários sobre os temas abordados. Um belo trabalho da diretora e roteirista Eliza Hittman.

 

Soul (EUA)

Se você pudesse ver toda sua vida até aqui e além disso refletir sobre ela, você viraria uma pessoa melhor? Lançado na plataforma Disney+ , ainda sem chances de tela de cinema, Soul é um inteligente drama com pitadas cômicas de aventura usando a técnica de animação. Emocionante, foca no inusitado universo das almas, o curioso espaço entre o físico e o espiritual. Não importa sua religião, esse é um projeto, dirigido pela dupla Pete Docter e Kemp Powers, que nos apresenta a esperança e a importância dos valores emocionais para qualquer ser vivo. É uma animação para grandinhos mas onde também a criançada pode aprender bastante de forma muito divertida. Não ganhou as telonas do cinema (ainda, quem sabe...) mas ganhou nossos corações.


Na trama, conhecemos o músico e professor de música no colégio Joe (Jamie Foxx – dubla na versão original), um homem solitário que tem a paixão pela música e mais especificamente o Jazz como motores de sua felicidade. Certo dia, consegue a grande chance de sua vida e tocar em um quarteto de uma grande diva do Jazz. Só que Joe acaba sofrendo um acidente e acaba indo parar em uma espécie de pré-paraíso, um mundo das almas, onde conhece 22 (Tina Fey – dubla na versão original) uma alma descrente sobre a vida. Enquanto seu corpo está respirando por aparelhos no hospital, Joe e 22 embarcarão em uma aventura para tentar levar Joe de volta a seu corpo e também fazer com que 22 muda suas ideias pré conceituais do mundo.


Há muitas portas abertas para se refletir sobre esse lindo projeto. Sonhar não mata fome de ninguém mas é imprescindível nessa vida louca e repleta de obstáculos que nós vivemos. O sonho é motor importante para o protagonista, as vezes um pouco ingênuo sobre as questões mundanas mas tendo a música como elemento que o integra de certo forma as relações sociais. Passando pelo universo das habilidades vamos caminhando em teorias animadas e bastante sensíveis sobre nossa existência, além disso, O filme pode se tornar uma bela e gratuita sessão de terapia para aquelas almas que ao assistirem a esse filme encherem seus corações de sentimentos variados. Vale a menção que esse é o primeiro filme da Pixar com um protagonista negro.


O roteiro é maravilhoso, dentro da narrativa existencial, surpreendentes paradoxos caminham com Joe e 22 e dão muito sentido ao que os personagens estão vivendo em suas reflexões, como o protagonista receber conselhos amorosos de uma alma que nunca nasceu. Soul é um projeto recheado de boas intenções que rouba nossos corações do primeiro ao último minuto. Viva a vida!

 

 

Collective (Romênia)

O bom jornalismo está em muitos lugares, a fonte desse é a verdade. Prêmio de Melhor Longa-Metragem Documentário da Competição Internacional na edição 2020 do Festival É Tudo Verdade, Collective, de Alexander Nanau é um filme forte e corajoso. Um documentário investigativo mostrando quase em tempo real as chocantes descobertas e os desdobramentos de um fato que desencadeou uma crise feroz no Ministério da Saúde da Romênia. Um grupo de jornalistas tenta apurar e noticiar todas as portas que se abrem conforme vão avançando no caso. Detalhado e argumentativo, somos testemunhas de um golpe completo de um estado disfuncional, sua corrupção e seu sistema de saúde repleto de esquemas gananciosos.


Indiferença mata! Dilua a corrupção! Uma tragédia com mais de duas dezenas de mortos em uma boate na Romênia. Outras dezenas são levadas a hospitais romenos para cuidarem na maioria dos casos das intensas queimaduras que sofreram. Com a morte de muitos desses que foram para os hospitais, a partir de uma denúncia, um absurdo esquema é descoberto. Diluição de desinfetantes que são comprados pelos hospitais, o que prejudica a conter avanço/ação de fortes bactérias. Uma investigação mais profunda sobre o caso é de uma editoria de esportes, o que coloca em xeque também parte da imprensa.


Chocante. A ganância, o poder. Há um clima tenso durante todo o filme, que abre em vertentes que mostra a investigação de incansáveis jornalistas, uma troca no comando do ministério da saúde, um pai em luto e uma sobrevivente tentando buscar levantar sua vida após o trauma que viveu. Fugindo um pouco do foco, ou por outro ponto de vista até mesmo indo bem além da superfície, ou em outro abrindo portas de mais sujeira no sistema de saúde romeno ou até mesmo nas entrelinhas destacando a força do papel da imprensa, Collective é um filme importante e merece ganhar debates pelo mundo.  

 

 

Mães de Verdade (Japão)

Mesmo não tendo luz nos meus olhos, vou te encontrar onde estiver. Um incrível e puro relato sobre mães e as escolhas que fazemos ao longo de nossas vidas, uma das maneiras de enxergarmos esse belíssimo trabalho de Naomi Kawase é dessa forma, mas só quem é mãe pode sentir toda a força desse filme. Asa ga Kuru, no original, é um poderoso e envolvente drama alinhado por uma perfeita harmonia de duas óticas, reunidas por um emblemático ponto de interseção. Há uma melancolia quase indecifrável, como se a emoção transbordasse buscando deixar tudo um pouco mais interpretativo para o espectador. A condução da direção de Kawase é uma das mais belas dos cineastas atuais.

 

Na trama, conhecemos Satoko (Hiromi Nagasaku) e Kiyokazu (Arata Iura), um apaixonado casal, com ótima condição financeira que vivem seus dias na busca de ampliar sua família. Porém, quando descobrem que um deles é impossibilitado de terem biologicamente um bebê, resolvem procurar uma agência de adoção. Ouvindo relatos de todos os lados, dúvidas, incertezas e as condições para adotar batem o martelo e assim conseguem um recém nascido para adotar. O tempo passa e uma situação acontece: a mãe biológica da criança os procura. Assim embarcamos em uma história com dois lados. 

 

Exibido nos festivais de Toronto e San Sebastián, Mães de Verdade mostra os dois lados de uma adoção: os dramas, conflitos e escolhas. Consegue ser delicado e sensível para tratar desse tema complicado.  Há uma sutileza e respeito enormes para contar essa história sobre duas mulheres que representam muitas outras. O roteiro, baseado na obra homônima de Mizuki Tsujimura, é profundo e consegue passar ao público, ao longo dos 140 minutos de projeção uma metáfora linda entre as forças da natureza e as emoções.

 

 

Mosquito (Portugal)

A guerra no pensamento e a pátria no coração. Em seu segundo longa-metragem como diretor, o moçambicano João Nuno Pinto encontra dentro de uma fórmula de um roteiro não-linear, fragmentado, para contar o começo, meio e o fim de uma jornada inclusa dentro de uma guerra que encontra pelo caminho o medo, as incertezas e figuras que fazem o protagonista pensar sobre a própria existência. Mosquito passa pela dura realidade da guerra e termina dentro de lições em busca de uma dignidade. Nos sentimos dentro de uma poesia embaçada, explicando as mais diversas formas de ativação do espírito de sobrevivência. Um trabalho muito interessante que provavelmente não chegará ao complicado circuito exibidor brasileiro. Um belo trabalho, sem dúvidas.

 

Na trama, conhecemos o soldado Zacharias (João Nunes Monteiro) que por vontade própria se alista no exército português e assim é enviado a Moçambique, na África, com a missão de defender a colônia portuguesa da invasão alemã. Seu pelotão acaba o abandonando porque o protagonista contrai malária. Esse se cura e resolve de maneira inconsequente ir atrás do seu pelotão que está a dias na sua frente. Enfrentando vários tipos de problemas e esbarrando com muitas pessoas, há momentos de silêncio e solidão onde o protagonista precisará encontrar forças para lutar contra sua mente e invocar assim um espírito de sobrevivência. O roteiro de Mosquito é baseado na história real do avô do diretor, que foi um dos soldados mandados a Moçambique na guerra.

 

Os diálogos se tornam rodadas construtivas sobre inflexões da vida e indagações sobre, desde já, um presente incerto. O fator fé chega forte nos momentos de perda da razão. Há um mix de elementos interessantes que contornam esse drama camuflado de filme de guerra (poucos tiros são disparados inclusive) em um grande espetáculo visual. Filme feito para ser visto em salas de cinema, com certeza a experiência que produz será ampliada, pena que nesse ano de 2020 nossa única oportunidade de conferir esse foi pela ótima programação da Mostra SP.

 

 

O Som do Silêncio (EUA)

O som é um mero detalhe quando encontramos um novo sentido em nossas vidas. Uma das gratas surpresas desse ano tão louco em nossas vidas sem dúvidas é esse fenomenal trabalho dirigido pelo estreante em longas-metragens Darius MarderO Som do Silêncio (Sound of Metal, no original) é um angustiante drama sobre o silêncio que precede o esporro. Contando a vida de um baterista que descobre que está ficando surdo, seu mundo novo, descobertas, uma nova linguagem, somos testemunhas da importância dos inquietantes barulhos da alma. Uma atuação arrebatadora e emocionante do ator Riz Ahmed (concorrente fortíssimo à muitas premiações), além dos ótimos Olivia Cooke e Paul Raci. Com a chance de filmes de streaming concorrerem ao próximo Oscar, Sound of Metal merece algumas vagas em algumas categorias.

 

Na trama, conhecemos Rubem (Riz Ahmed), um baterista de um dueto que roda os Estados Unidos à bordo de um trailer fazendo turnês, uma espécie de vida cigana do rock. Ele é um ex-dependente químico que está a quatro anos limpo e quatro anos juntos de Lou (Olivia Cooke), sua namorada e vocalista do dueto. Certo dia, durante um show, percebe que sua audição não está muito boa e resolve procurar um especialista que o avisa que ele ficará surdo em breve. Precisando reformular toda sua vida, seu relacionamento com a namorada, ele resolve se juntar a um grupo para surdos, chefiado por Joe (Paul Raci) em busca de aprender como viver nessa nova situação de vida.

 

O roteiro navega de maneira intensa por todas as fases que Rubem passa: da descoberta da deficiência, à constatação, o desespero, nos novos planos do que fazer com sua vida. Há uma constante e emocionante tentativa de controle da mente para se entender a situação. Essa fase inicial é muito difícil e acompanhamos a fundo todos os bons e péssimos dias do protagonista.  Tudo se encaixa perfeitamente no roteiro, os arcos são equilibrados com grande dose de intensidade. O ritmo do filme não é frenético mas mostra sua força com uma câmera inquietante de Marder que parece querer nos detalhar cada milímetro de sofrimento que o protagonista, no fruto de seus conflitos, passa.  



Não há como negar, Sound of Metal tem a cara do Oscar. Com três grandes atuações, o filme é uma grande busca de um homem para conseguir viver uma nova vida que nunca imaginou mas que o mostra um novo universo igual ou tão bom aquele que ele vivia. Belíssimo trabalho.

 

 

* Menção Honrosa #1 *

 

Você não Estava Aqui (Reino Unido)

 

A realidade nua, crua e bruta dando ar numa tela gigante para quem quiser ver e sentir. O novo trabalho do genial cineasta britânico Ken Louch é antes de mais nada um belo soco no estômago das hipocrisias trabalhistas em um mundo dominado por cães ferozes, muitas vezes, sem sensibilidade. Aos 83 anos, o veterano diretor parece que nunca perde a mão, não mede esforços e simplicidade para nos mostrar detalhes profundos de retratos que acontecem nesse lado daqui na tela, principalmente em um Europa em crise existencial talvez camuflada por notícias que não nos levam a fundo sobre o que pensar. Você não Estava Aqui é impactante até seu último suspiro.

 

Na trama, somos jogados para a realidade de uma família de classe média baixa britânica, onde o pai Ricky (Kris Hitchen), um torcedor entusiasmado do Manchester United, resolve investir em uma van de entregas para tentar mudar um pouco da realidade apertada financeira de sua família. A questão é que a partir desse ponto, acaba influenciando a todos em sua volta, sua esposa Abbie (Debbie Honeywood em uma atuação primorosa) é uma cuidadora que após vender seu carro para o investimento na van de Ricky vê sua agenda e rotina mudarem ocasionando em uma escassez maior ainda de uma coisa valorosa: o tempo. Assim, os dois filhos do casal também passam por transformações e a todo instante perguntamos, será que Ricky fez o certo em tentar dar um passo além do que já tinha? As certezas dessa resposta nos chegam forte quando entendemos melhor a empresa que fornece os conteúdos de entrega ao protagonista.

 

O universo próximo do trabalho, o sustento, com a falta de tempo para sua família. Os duelos que Ricky enfrenta são diversos e as coisas só pioram com a família desmoronando por falta de orientação dos que sustentam a casa. Atencioso e responsável, o protagonista retrata milhares de pessoas dia a dia que lutam bravamente para sobreviver em vez de viver. Com poucos prazeres e muita obrigação, Rickey é jogado em um universo onde as leis trabalhistas parecem que não existem aos que mais precisam. Ken Louch coloca o dedo na ferida, quase um filme denúncia sobre todo um retrato até bem amplo de uma sociedade que se importa pouco pelo próximo.

 

 

* Menção Honrosa #2 *

 

Breslin and Hamill: Deadline Artists (EUA)

A simplicidade da origem do impactante jornalismo nova-iorquino de décadas passadas e as imensas transformações dessa profissão aventureira e ainda pouco valorizada. Buscando resgatar a história marcante de dois dos maiores colunistas de jornais impressos dos Estados Unidos, que escreveram para diversos jornais de Nova Iorque, Jimmy Breslin e Pete Hamill, os diretores Jonathan Alter, John Block, Steve McCarthy conseguem em pouco menos de duas horas passar com bastante informação sobre fatos marcantes da história norte-americana que tiveram os dois jornalistas citados na linha de frente entre público e notícia. Produzido pela  HBO.

 

Nesse documentário dinâmico, divertido e com uma certa linha sentimental embutida nas histórias que são contadas, conhecemos melhor o trabalho de Breslin e Hamill, dois amigos, que já trabalharam juntos e foram rivais. O primeiro era um grande observador da classe trabalhadora nova-iorquina, com um olhar preciso e sempre em defesa dos negros contra o racismo forte que até hoje existe nos Estados Unidos. Colecionador de inimizades, incluindo grande parte do departamento de polícia de NY, Breslin escrevia em forma de romance colocando sempre sua forte opinião na ponta da caneta. O segundo veio para somar aos olhos dos leitores com pensamentos elegantes e firmes, sem formação acadêmica e dono de um texto fantástico, Hamill gostava mesmo era de ser editor e entre suas histórias, amores com Shirley MacLaine e Jacqueline Kennedy.

 

Em diversas partes o documentário nos coloca ponto de vistas de quem estava próximo da história, como nas mortes de John Kennedy e depois de Bobby Kennedy, esse último era grande amigo de Hamill. O relato de Hamill sobre o atentado às torres gêmeas é algo intenso e profundo. O foco na maior parte do tempo é o debate sobre a transformação do jornalismo norte-americano, a saudade é imensa de como era uma redação nas décadas de 70/80/90, todos os entrevistados indicam isso. Para quem curte documentários e jornalismo é um prato cheio!