O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado de hoje é um grande cinéfilo e crítico de
cinema dos sites Plano Crítico e Plano Aberto, além de já ter colaborado
para mais 4 veículos neste curto período desde que iniciou na área, em 2019. Michel Gutwilen é um ávido apaixonado
por teoria cinematográfica e que vê a atividade crítica com relação a ela tal
como a engenharia é a ciência física aplicada. 22 anos, também estudante de
Direito-UERJ e já esteve no Festival de
Cannes após ser selecionado para o programa “Cannes por 3 Dias”, oferecido
a jovens de 18-28 anos.
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da
escolha.
Estação Net, Espaço
Itaú e Cine Casal (Barra Point). Sendo bem direto, são só
nesses lugares que eu tenho a chance de ver uma Naomi Kawase da vida ao invés de entrar em um cinema de shopping e
me deparar com 20 sessões para Vingadores.
Ainda que inseridos em uma lógica mercadológica, são os lugares que ainda
valorizam o cinema de uma maneira mais artística, realizam mostras de grandes
autores, se importam com trabalhos autorais. Ou seja, são uma luta contra o
cinema tocado a modo industrial.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
O primeiro não lembro, mas vou responder sobre filmes no
geral que me fazem lembrar que o cinema é um lugar diferente. O cinema
maneirista, o famoso “cinema hiper estilizado”. Qualquer filme de um Hitchcock, Brian de Palma ou um Dario Argento da vida. Claro que
valorizo muito os grandes diretores realistas como Rossellini ou Nelson Pereira,
mas são os primeiros citados que despertam na minha mente uma paixão pela arte.
São eles que me lembram que a Arte é uma possibilidade criativa, livre e
autônoma, não tendo uma obrigação de reproduzir o mundo mimeticamente. Se a
história do Cinema é a história de sua origem, seriam, resumidamente, os
discípulos de Georges Méliès, e não
dos Irmãos Lumière.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
É uma complementação da minha resposta anterior. Alfred Hitchcock. Meu filme favorito
dele também considero o maior filme da história do Cinema, Um Corpo que Cai (Vertigo).
Nenhuma outra obra mexeu sensorialmente comigo a nível imersivo, de
literalmente me deixar em um estado de transe, quase hipnótico, enquanto
assisto aquilo que acontece em tela. Filmes que chegaram perto disso foram Suspiria (Argento), Verdades e
Mentiras (Orson Welles), Apocalypse Now (Coppola) e Cidade dos Sonhos
(David Lynch). O Belo (segundo o
conceito de Kant) pelo Belo, a arte que se justifica por si só. Cinema, para
mim, é isso. Vou citar rapidamente outros grandes diretores, além dos 5, e minhas
obras preferidas: James Gray (Amantes); Naomi Kawase (Shara); John Carpenter (Fuga de Los Angeles); Michael
Mann (Miami Vice); Agnès Varda (Cléo de 5 às 7); Fritz Lang
(Vive-se Só Uma Vez); Clint Eastwood (Coração de Caçador); M.
Night Shyamalan (Sinais); Carl Theodor Dreyer (O Martírio de Joana D’Arc); Federico Fellini (Noites de Cabíria); Pedro
Costa (Casa de Lava); Peter Tscherkassky (Outer Space); Glauber Rocha (O Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro).
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Atualmente eu diria que é Rio, 40 Graus (1955), do Nelson
Pereira dos Santos. Como carioca, fico impressionado com a forma que o
Nelson usa o Rio de Janeiro em prol da sua narrativa, sendo praticamente um
personagem vivo. O filme é quase como uma “tour turística” pelos principais
pontos da cidade, mas em nenhum momento isso soa forçado, estando eles
inseridos organicamente na narrativa. Além disso, filmes com histórias e tramas
paralelas nunca são fáceis de fazer, mas o jeito como o diretor conduz a
transição entre os núcleos é muito incrível e natural. O personagem do núcleo A
está em cena, aí um personagem do núcleo B passa ao fundo e repentinamente
passamos a acompanhar ele. Muito genial. Aliás, a técnica raccord talvez tenha
tido aqui uma das suas utilizações mais marcantes da história do Cinema, que
foi a cena do jovem pobre sendo atropelado enquanto as pessoas comemoram um gol
no Maracanã.
5) O que é ser
cinéfilo para você?
Aproveito esta resposta para uma provocação. Ser cinéfilo,
para mim, não é quem viu 20.000 filmes, mas quem se entrega passivamente aos
filmes e deixa sua emoção tomar conta. Esquecer que você é você durante a
sessão de cinema. Infelizmente, está cada vez mais comum um certo tipo de
“cinefilia” (sim, as aspas), que mais parece pessoas querendo emprego na área
de continuísta do que verdadeiros apreciadores de Arte. Pessoas que tratam o
cinema como um jogo de 7 erros, que procuram erros de continuidade, os furos de
roteiro mais bobos possíveis. É um tipo de gente que entra tensa no cinema, já
pronta para ser um robô que vai caçar os “erros” do filme. Para mim, qualquer
tipo de espectador que não se importe com este tipo de bobagem e tenha uma
relação com a Arte mais sensorial, e menos racionalizada, já é uma cinéfila.
6) Você acredita que
a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por
pessoas que entendem de cinema?
Não sei se tenho uma opinião formada, até porque faz pouco
tempo que adentrei neste meio, mas vou replicar uma “zoação” que vejo falarem
na internet: “Enquanto programadores de grandes multiplex acham que o cinema
brasileiro se resume a de Pernas pro Ar,
certos programadores de salas culturais acham que o ‘cinema de arte’ se resume
aos irmãos Dardenne e Festival Varilux”. Brincadeiras a
parte, eu honestamente não estudei tanto a função exata do programador e também
não sei até que ponto dá para culpá-lo e não fatores externos, tais como: o
filme X não ter sido comprado por nenhuma distribuidora; pressão de exibir
obrigatoriamente o filme Y; impossibilidades financeiras etc.
7) Algum dia as salas
de cinema vão acabar?
Não. Acho uma tristeza que muitos colegas de crítica tenham
uma relação banal com uma sala de cinema, ao invés de tratá-la como um Templo
Sagrado. Sim, eu sou purista. Não à toa, existem diversas teorias
cinematográficas que estudam justamente a relação psicológica entre o Cinema
(lugar físico) e o espectador. Existe toda uma relação de poder e dominação
inconsciente que uma sala exerce no ser humano, explicados por vários fatores:
o tamanho da tela maior do que o ser humano; a luz que é projetada por trás de
nós (uma ameaça que não vemos); o campo de visão limitado pela escuridão; o
fato de estarmos em uma sala com pessoa que não conhecemos, etc. Tudo isso
potencializa a imersão do espectador com a obra, que seria o objetivo final do
cinema. Já no ambiente caseiro, a imersão total pode até acontecer, mas exige
bem mais esforço por parte da pessoa. Eu mesmo tenho dificuldade de ver um
filme de mais de 1h40 em casa sem me dispersar, enquanto no cinema veria um Lav Diaz de 4h facilmente. Nunca será a
mesma coisa.
8) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Vitalino/Lampião;
Sertânia (Geraldo Sarno); SuperOutro
(Edgard Navarro);O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes); O Tempo e a Maré
(Tsui Hark); Coeur fidèle (Jean Epstein); O Demônio da Argélia (Julien
Duvivier); A Culpa dos Pais (Vittorio de Sica); Grisbi, Ouro Maldito (Jacques
Becker); O Fim de um Longo Dia (Terence Davies); A Sombra da Forca (Joseph
Losey); Trágico Alibi (Joseph H. Lewis); Bastardos (Claire Denis); Meantime
(Mike Leigh); O Pensionista (Alfred Hithcock); História de Melancolia e
Tristeza (Seijun Suzuki); Marrocos (Josef von Sternberg); Perigo Extremo (Isaac
Florentine).
9) Você acha que as
salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?
Bem, na altura desta minha entrevista, os cinemas já abriram
aqui no Rio de Janeiro, então não resta muito o que fazer. Vejo muitos
comentários ideológicos nesta resposta, mas pouca gente sendo prática e
trabalhando com o mundo real. Obviamente, sou contra, EM teoria, mas andem pelo
Rio de Janeiro para compreenderem a situação. Praia lotada, bares cheios até em
dia de semana, academias e shoppings abertos, até boate disfarçada de bar já
tem. Já está absolutamente tudo errado, a situação fugiu do controle e não há
como botar novamente essas pessoas para dentro de casa. Logo, o ramo cultural
vai ser o único bonzinho que vai se ferrar sozinho enquanto todo mundo já finge
que o COVID não existe aqui na cidade? Pode ter certeza que se tiver uma
segunda onda, o Cinema é o menor dos culpados, diante de tantas
irresponsabilidades já sendo feitas.
10) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
Recentemente estava lendo Teorias do Cinema, de Andrew
Tudor, e lá ele diz que o Eisenstein
lamentava muito que os primeiros teóricos do cinema gastaram grande parte
de sua energia tentando provar (para ignorantes) que o Cinema era sim uma Arte,
ao invés de usarem seus intelectos para pesquisas mais produtivas. Pois bem, eu
lamento que a gente ainda tenha que provar para as pessoas que o nosso cinema
brasileiro, tanto o de ontem como o de hoje, é riquíssimo. Para ficar só em
2020, que ainda nem chegamos no fim, mas já tiveram as obras-primas Sertânia (Geraldo Sarno) e Vaga Carne
(Grace Passô, Ricardo Alves Jr.), o excelente Cabeça de Nêgo (Déo Carodoso),
além dos ótimos A Morte Branca do
Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro);
Meu Nome é Badgá (Caru Alves de Souza), Vento Seco (Daniel Nolasco); É Rocha e
Rio, Negro Leo (Paula Gaitán).
11) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Gosto do uso da frase “artista” na pergunta, porque ela é
justamente perfeita para quem quero responder. Grace Passô é diretora, atriz, roteirista. E excelente em todas as
funções. Ou seja, uma verdadeira artista. Resumindo, a mulher é braba. Não
perco nada que sair daqui pra frente. Estou também ansioso pelos próximos
trabalhos do André Novais Oliveira e
do Kléber Mendonça Filho. Aliás,
vamos ver se os veteranos Geraldo Sarno
e Neville D’Almeida ainda lançarão
algo (Neville havia dito que sim, na exibição de Mangue Bangue aqui no Rio de Janeiro).
12) Defina cinema com
uma frase:
Assim como a pergunta 5, faço aqui uma provocação a partir
de 3 frases. 1) “Cinema é uma arte AUDIOVISUAL, com linguagem técnica e teoria
próprias”. Infelizmente, muitos colegas críticos parecem esquecer do básico do
básico, só comentando sobre aspectos de roteiro, que é importante sim, mas
apenas um dos tantos elementos que compõem uma obra. 2) “Cinema é um FIM em si
mesmo, não um MEIO.” Igualmente, muitos colegas também só enxergam o cinema se
ele encaixar dentro de sua cartilha política ou for um “filme importante para
os dias atuais”. Um filme não deve nada a realidade e não têm nenhuma função
social (desculpa, Eisenstein). Aceitem o Belo pelo Belo. 3) “Cinema, assim como
todas as artes, é uma união entre FORMA e CONTEÚDO, que juntas formam uma
unidade, a mise-en-scène”. Infelizmente, muitos colegas também tratam o Cinema
e a Crítica como cartela de bingo, na qual vão falando dos elementos fílmicos
de maneira separada, sem nunca pensá-los de maneira conjunta. Afinal, o que
diabos é uma “boa fotografia”?
13) Conte uma
história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:
Cabine de imprensa do brasileiro Vaga Carne (com a maravilhosa Grace
Passô), ainda em 2020. O primeiro minuto de filme era, propositalmente, só
a fala de Passô, enquanto a tela do cinema estava preta. Bem, eu entendi logo
de cara que isso fazia parte da experiência, mas uma crítica já bem veterana (que
não conheço, mas parece ser uma fofa) não sacou muito bem e ficou gritando “A
IMAGEM NÃO TÁ APARECENDO! ALGUÉM BOTA A IMAGEM”. Confesso que fiquei me
segurando para não rir da situação.
14) Defina 'Cinderela
Baiana' em poucas palavras…
Olha, eu dei tantas respostas gigantes nesta entrevista, que
acho que o Raphael vai me perdoar por ser direto aqui: não vi e estou com
preguiça de assistir só para responder a entrevista. Inclusive, é do meu ano de
nascimento.
15) Muitos diretores
de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta
precisa ser cinéfilo?
Por incrível que pareça, não. Eu sigo uma certa visão, não
só de cinema como para toda a arte, que a intenção do seu realizador não
importa, mas sim que seu objeto existe no mundo de maneira autônoma a partir do
momento que é finalizado. A interpretação do espectador é livre. Claro que em
um mundo utópico penso que todo diretor deveria estudar teoria da arte, pelo
menos saber o conceito de mise-en-scène, mas, sendo bem direto, nada impede que
uma grande obra saia das mãos de uma pessoa que nunca viu mais de 10 filmes na
vida e apenas filmou seu dia-a-dia com o celular na mão. De certo modo, aí está
a beleza da arte, não?
16) Qual o pior filme
que você viu na vida?
Der ewige Jude (Fritz Hippler), que em inglês é The Eternal Jew. Um filme bizarramente
nazista, manipulador de diversas mentiras sobre os judeus e disseminador de
estereótipos. Diferente de outras atrocidades ideológicas, mas que trouxeram
importantes trabalhos técnicos para a história do Cinema, como D.W. Griffith e Leni Riefenstahl, esse filme ainda é porcamente dirigido.
17) Qual seu
documentário preferido?
Vou abrir uma longa margem para a interpretação de
documentário, ok? Mentiras e Verdades
(Orson Welles); Méditerranée (Volker Schlöndorff, Jean-Daniel Pollet); Uma
Visita ao Louvre (Jean-Marie Straub, Danièle Huillet); Os Catadores e Eu (Agnès
Varda); Di Cavalcanti (Glauber Rocha); Jogo de Cena (Eduardo Coutinho);
Close-Up (Abbas Kiarostami); Cantos de Trabalho (Humberto Mauro); O Sangue das
Bestas (Georges Franjus); Noite e Neblina (Alain Resnais); Titicut Follies
(Frederick Wiseman); Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov). Além disso,
este ano vi dois documentários fantástico no Festival Ecrã que fiquei completamente chocado: Não Haverá Mais Noite (Eléonore Weber) e Assistindo A Dor dos Outros (Chloé
Galibert-Laîné).
18) Você já bateu
palmas para um filme ao final de uma sessão?
Sim, mas só acho que faz sentido em sessões com o diretor,
de festivais, pré-estreia e estreia, visto que o objetivo é mostrar o
contentamento com o filme. Inclusive é válido gritar “bravo, bravo”. Já não
acho que faz tanto sentido fazer isso numa sessão de terça-feira com mais 5
pessoas na sala, mas não me incomodarei se alguém fizer.
19) Qual o melhor
filme com Nicolas Cage que você viu?
O sensacional O
Selvagem da Motocicleta (Francis
Ford Coppola). No entanto, segue o adendo que eu ainda não vi Olhos de Serpente (Brian de Palma), justamente de um dos meus diretores preferidos.
20) Qual site de
cinema você mais lê pela internet?
Por incrível que pareça, um site já não mais ativo, que é a Contracampo. Meio que não tem erro,
né? As melhores críticas dos melhores críticos do Brasil estão lá. Os textos de
lá são uma Bíblia de estudos para mim, neste início de jornada. Dito isso,
também sou fã das Revistas Cinética
(a sucessora da Contracampo), Multiplot!, Foco e do site português À
Pala de Walsh. São os lugares que eu leria um texto já na certeza que vou
aprender algo antes mesmo de clicar na crítica.