10/10/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #123 - Michel Gutwilen


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nosso entrevistado de hoje é um grande cinéfilo e crítico de cinema dos sites Plano Crítico e Plano Aberto, além de já ter colaborado para mais 4 veículos neste curto período desde que iniciou na área, em 2019. Michel Gutwilen é um ávido apaixonado por teoria cinematográfica e que vê a atividade crítica com relação a ela tal como a engenharia é a ciência física aplicada. 22 anos, também estudante de Direito-UERJ e já esteve no Festival de Cannes após ser selecionado para o programa “Cannes por 3 Dias”, oferecido a jovens de 18-28 anos.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Estação Net, Espaço Itaú e Cine Casal (Barra Point). Sendo bem direto, são só nesses lugares que eu tenho a chance de ver uma Naomi Kawase da vida ao invés de entrar em um cinema de shopping e me deparar com 20 sessões para Vingadores. Ainda que inseridos em uma lógica mercadológica, são os lugares que ainda valorizam o cinema de uma maneira mais artística, realizam mostras de grandes autores, se importam com trabalhos autorais. Ou seja, são uma luta contra o cinema tocado a modo industrial.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

O primeiro não lembro, mas vou responder sobre filmes no geral que me fazem lembrar que o cinema é um lugar diferente. O cinema maneirista, o famoso “cinema hiper estilizado”. Qualquer filme de um Hitchcock, Brian de Palma ou um Dario Argento da vida. Claro que valorizo muito os grandes diretores realistas como Rossellini ou Nelson Pereira, mas são os primeiros citados que despertam na minha mente uma paixão pela arte. São eles que me lembram que a Arte é uma possibilidade criativa, livre e autônoma, não tendo uma obrigação de reproduzir o mundo mimeticamente. Se a história do Cinema é a história de sua origem, seriam, resumidamente, os discípulos de Georges Méliès, e não dos Irmãos Lumière.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

É uma complementação da minha resposta anterior. Alfred Hitchcock. Meu filme favorito dele também considero o maior filme da história do Cinema, Um Corpo que Cai (Vertigo). Nenhuma outra obra mexeu sensorialmente comigo a nível imersivo, de literalmente me deixar em um estado de transe, quase hipnótico, enquanto assisto aquilo que acontece em tela. Filmes que chegaram perto disso foram Suspiria (Argento), Verdades e Mentiras (Orson Welles), Apocalypse Now (Coppola) e Cidade dos Sonhos (David Lynch). O Belo (segundo o conceito de Kant) pelo Belo, a arte que se justifica por si só. Cinema, para mim, é isso. Vou citar rapidamente outros grandes diretores, além dos 5, e minhas obras preferidas: James Gray (Amantes); Naomi Kawase (Shara); John Carpenter (Fuga de Los Angeles); Michael Mann (Miami Vice); Agnès Varda (Cléo de 5 às 7); Fritz Lang (Vive-se Só Uma Vez); Clint Eastwood (Coração de Caçador); M. Night Shyamalan (Sinais); Carl Theodor Dreyer (O Martírio de Joana D’Arc); Federico Fellini (Noites de Cabíria); Pedro Costa (Casa de Lava); Peter Tscherkassky (Outer Space); Glauber Rocha (O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro).

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Atualmente eu diria que é Rio, 40 Graus (1955), do Nelson Pereira dos Santos. Como carioca, fico impressionado com a forma que o Nelson usa o Rio de Janeiro em prol da sua narrativa, sendo praticamente um personagem vivo. O filme é quase como uma “tour turística” pelos principais pontos da cidade, mas em nenhum momento isso soa forçado, estando eles inseridos organicamente na narrativa. Além disso, filmes com histórias e tramas paralelas nunca são fáceis de fazer, mas o jeito como o diretor conduz a transição entre os núcleos é muito incrível e natural. O personagem do núcleo A está em cena, aí um personagem do núcleo B passa ao fundo e repentinamente passamos a acompanhar ele. Muito genial. Aliás, a técnica raccord talvez tenha tido aqui uma das suas utilizações mais marcantes da história do Cinema, que foi a cena do jovem pobre sendo atropelado enquanto as pessoas comemoram um gol no Maracanã.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Aproveito esta resposta para uma provocação. Ser cinéfilo, para mim, não é quem viu 20.000 filmes, mas quem se entrega passivamente aos filmes e deixa sua emoção tomar conta. Esquecer que você é você durante a sessão de cinema. Infelizmente, está cada vez mais comum um certo tipo de “cinefilia” (sim, as aspas), que mais parece pessoas querendo emprego na área de continuísta do que verdadeiros apreciadores de Arte. Pessoas que tratam o cinema como um jogo de 7 erros, que procuram erros de continuidade, os furos de roteiro mais bobos possíveis. É um tipo de gente que entra tensa no cinema, já pronta para ser um robô que vai caçar os “erros” do filme. Para mim, qualquer tipo de espectador que não se importe com este tipo de bobagem e tenha uma relação com a Arte mais sensorial, e menos racionalizada, já é uma cinéfila. 

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Não sei se tenho uma opinião formada, até porque faz pouco tempo que adentrei neste meio, mas vou replicar uma “zoação” que vejo falarem na internet: “Enquanto programadores de grandes multiplex acham que o cinema brasileiro se resume a de Pernas pro Ar, certos programadores de salas culturais acham que o ‘cinema de arte’ se resume aos irmãos Dardenne e Festival Varilux”. Brincadeiras a parte, eu honestamente não estudei tanto a função exata do programador e também não sei até que ponto dá para culpá-lo e não fatores externos, tais como: o filme X não ter sido comprado por nenhuma distribuidora; pressão de exibir obrigatoriamente o filme Y; impossibilidades financeiras etc. 

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Não. Acho uma tristeza que muitos colegas de crítica tenham uma relação banal com uma sala de cinema, ao invés de tratá-la como um Templo Sagrado. Sim, eu sou purista. Não à toa, existem diversas teorias cinematográficas que estudam justamente a relação psicológica entre o Cinema (lugar físico) e o espectador. Existe toda uma relação de poder e dominação inconsciente que uma sala exerce no ser humano, explicados por vários fatores: o tamanho da tela maior do que o ser humano; a luz que é projetada por trás de nós (uma ameaça que não vemos); o campo de visão limitado pela escuridão; o fato de estarmos em uma sala com pessoa que não conhecemos, etc. Tudo isso potencializa a imersão do espectador com a obra, que seria o objetivo final do cinema. Já no ambiente caseiro, a imersão total pode até acontecer, mas exige bem mais esforço por parte da pessoa. Eu mesmo tenho dificuldade de ver um filme de mais de 1h40 em casa sem me dispersar, enquanto no cinema veria um Lav Diaz de 4h facilmente. Nunca será a mesma coisa.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Vitalino/Lampião; Sertânia (Geraldo Sarno); SuperOutro (Edgard Navarro);O Som da Terra a Tremer (Rita Azevedo Gomes); O Tempo e a Maré (Tsui Hark); Coeur fidèle (Jean Epstein); O Demônio da Argélia (Julien Duvivier); A Culpa dos Pais (Vittorio de Sica); Grisbi, Ouro Maldito (Jacques Becker); O Fim de um Longo Dia (Terence Davies); A Sombra da Forca (Joseph Losey); Trágico Alibi (Joseph H. Lewis); Bastardos (Claire Denis); Meantime (Mike Leigh); O Pensionista (Alfred Hithcock); História de Melancolia e Tristeza (Seijun Suzuki); Marrocos (Josef von Sternberg); Perigo Extremo (Isaac Florentine).

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Bem, na altura desta minha entrevista, os cinemas já abriram aqui no Rio de Janeiro, então não resta muito o que fazer. Vejo muitos comentários ideológicos nesta resposta, mas pouca gente sendo prática e trabalhando com o mundo real. Obviamente, sou contra, EM teoria, mas andem pelo Rio de Janeiro para compreenderem a situação. Praia lotada, bares cheios até em dia de semana, academias e shoppings abertos, até boate disfarçada de bar já tem. Já está absolutamente tudo errado, a situação fugiu do controle e não há como botar novamente essas pessoas para dentro de casa. Logo, o ramo cultural vai ser o único bonzinho que vai se ferrar sozinho enquanto todo mundo já finge que o COVID não existe aqui na cidade? Pode ter certeza que se tiver uma segunda onda, o Cinema é o menor dos culpados, diante de tantas irresponsabilidades já sendo feitas.    

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Recentemente estava lendo Teorias do Cinema, de Andrew Tudor, e lá ele diz que o Eisenstein lamentava muito que os primeiros teóricos do cinema gastaram grande parte de sua energia tentando provar (para ignorantes) que o Cinema era sim uma Arte, ao invés de usarem seus intelectos para pesquisas mais produtivas. Pois bem, eu lamento que a gente ainda tenha que provar para as pessoas que o nosso cinema brasileiro, tanto o de ontem como o de hoje, é riquíssimo. Para ficar só em 2020, que ainda nem chegamos no fim, mas já tiveram as obras-primas Sertânia (Geraldo Sarno) e Vaga Carne (Grace Passô, Ricardo Alves Jr.), o excelente Cabeça de Nêgo (Déo Carodoso), além dos ótimos A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro); Meu Nome é Badgá (Caru Alves de Souza), Vento Seco (Daniel Nolasco); É Rocha e Rio, Negro Leo (Paula Gaitán).

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Gosto do uso da frase “artista” na pergunta, porque ela é justamente perfeita para quem quero responder. Grace Passô é diretora, atriz, roteirista. E excelente em todas as funções. Ou seja, uma verdadeira artista. Resumindo, a mulher é braba. Não perco nada que sair daqui pra frente. Estou também ansioso pelos próximos trabalhos do André Novais Oliveira e do Kléber Mendonça Filho. Aliás, vamos ver se os veteranos Geraldo Sarno e Neville D’Almeida ainda lançarão algo (Neville havia dito que sim, na exibição de Mangue Bangue aqui no Rio de Janeiro).

 

12) Defina cinema com uma frase:

Assim como a pergunta 5, faço aqui uma provocação a partir de 3 frases. 1) “Cinema é uma arte AUDIOVISUAL, com linguagem técnica e teoria próprias”. Infelizmente, muitos colegas críticos parecem esquecer do básico do básico, só comentando sobre aspectos de roteiro, que é importante sim, mas apenas um dos tantos elementos que compõem uma obra. 2) “Cinema é um FIM em si mesmo, não um MEIO.” Igualmente, muitos colegas também só enxergam o cinema se ele encaixar dentro de sua cartilha política ou for um “filme importante para os dias atuais”. Um filme não deve nada a realidade e não têm nenhuma função social (desculpa, Eisenstein). Aceitem o Belo pelo Belo. 3) “Cinema, assim como todas as artes, é uma união entre FORMA e CONTEÚDO, que juntas formam uma unidade, a mise-en-scène”. Infelizmente, muitos colegas também tratam o Cinema e a Crítica como cartela de bingo, na qual vão falando dos elementos fílmicos de maneira separada, sem nunca pensá-los de maneira conjunta. Afinal, o que diabos é uma “boa fotografia”?     

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Cabine de imprensa do brasileiro Vaga Carne (com a maravilhosa Grace Passô), ainda em 2020. O primeiro minuto de filme era, propositalmente, só a fala de Passô, enquanto a tela do cinema estava preta. Bem, eu entendi logo de cara que isso fazia parte da experiência, mas uma crítica já bem veterana (que não conheço, mas parece ser uma fofa) não sacou muito bem e ficou gritando “A IMAGEM NÃO TÁ APARECENDO! ALGUÉM BOTA A IMAGEM”. Confesso que fiquei me segurando para não rir da situação.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras…

Olha, eu dei tantas respostas gigantes nesta entrevista, que acho que o Raphael vai me perdoar por ser direto aqui: não vi e estou com preguiça de assistir só para responder a entrevista. Inclusive, é do meu ano de nascimento.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Por incrível que pareça, não. Eu sigo uma certa visão, não só de cinema como para toda a arte, que a intenção do seu realizador não importa, mas sim que seu objeto existe no mundo de maneira autônoma a partir do momento que é finalizado. A interpretação do espectador é livre. Claro que em um mundo utópico penso que todo diretor deveria estudar teoria da arte, pelo menos saber o conceito de mise-en-scène, mas, sendo bem direto, nada impede que uma grande obra saia das mãos de uma pessoa que nunca viu mais de 10 filmes na vida e apenas filmou seu dia-a-dia com o celular na mão. De certo modo, aí está a beleza da arte, não? 

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida?

Der ewige Jude (Fritz Hippler), que em inglês é The Eternal Jew. Um filme bizarramente nazista, manipulador de diversas mentiras sobre os judeus e disseminador de estereótipos. Diferente de outras atrocidades ideológicas, mas que trouxeram importantes trabalhos técnicos para a história do Cinema, como D.W. Griffith e Leni Riefenstahl, esse filme ainda é porcamente dirigido.

 

17) Qual seu documentário preferido?

Vou abrir uma longa margem para a interpretação de documentário, ok? Mentiras e Verdades (Orson Welles); Méditerranée (Volker Schlöndorff, Jean-Daniel Pollet); Uma Visita ao Louvre (Jean-Marie Straub, Danièle Huillet); Os Catadores e Eu (Agnès Varda); Di Cavalcanti (Glauber Rocha); Jogo de Cena (Eduardo Coutinho); Close-Up (Abbas Kiarostami); Cantos de Trabalho (Humberto Mauro); O Sangue das Bestas (Georges Franjus); Noite e Neblina (Alain Resnais); Titicut Follies (Frederick Wiseman); Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov). Além disso, este ano vi dois documentários fantástico no Festival Ecrã que fiquei completamente chocado: Não Haverá Mais Noite (Eléonore Weber) e Assistindo A Dor dos Outros (Chloé Galibert-Laîné).

 

18) Você já bateu palmas para um filme ao final de uma sessão?

Sim, mas só acho que faz sentido em sessões com o diretor, de festivais, pré-estreia e estreia, visto que o objetivo é mostrar o contentamento com o filme. Inclusive é válido gritar “bravo, bravo”. Já não acho que faz tanto sentido fazer isso numa sessão de terça-feira com mais 5 pessoas na sala, mas não me incomodarei se alguém fizer.   

 

19) Qual o melhor filme com Nicolas Cage que você viu?

O sensacional O Selvagem da Motocicleta (Francis Ford Coppola). No entanto, segue o adendo que eu ainda não vi Olhos de Serpente (Brian de Palma), justamente de um dos meus diretores preferidos.

 

20) Qual site de cinema você mais lê pela internet?

Por incrível que pareça, um site já não mais ativo, que é a Contracampo. Meio que não tem erro, né? As melhores críticas dos melhores críticos do Brasil estão lá. Os textos de lá são uma Bíblia de estudos para mim, neste início de jornada. Dito isso, também sou fã das Revistas Cinética (a sucessora da Contracampo), Multiplot!, Foco e do site português À Pala de Walsh. São os lugares que eu leria um texto já na certeza que vou aprender algo antes mesmo de clicar na crítica.