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02/08/2025

Crítica do filme: 'Chuzalongo' [Bonito CineSur]


Os dois lados do milagre. Chegando com seu tom sobrenatural ao Bonito CineSur 2025, o longa-metragem equatoriano Chuzalongo apresenta para o público uma versão novelesca da lenda de uma criatura mitológica andina, num cenário ambientado no Século XIX, que se mistura com o dilema de um padre em uma região consumida por disputas políticas. Nesse recheado cenário, com um pé no universo fantástico e outro no desencontro com algum clímax, acompanhamos de interessante mesmo somente uma conturbada relação paternal entrelaçada.

Ao longo dos quase 100 minutos de projeção, acompanhamos Melalo (Wolframio Sinué), um homem que vê sua vida desmoronar após a morte de sua filha grávida, logo após o parto. Inicialmente rejeitada por ele, a criança sobrevive e, anos depois, torna-se uma figura sobrenatural que vaga pela região, precisando alimentar-se do sangue de mulheres para continuar viva. Mais adiante, o padre Nicanor (Bruno Odar) cruza seu destino com o da misteriosa criatura e se vê diante de dilemas profundos ao assumir a responsabilidade de cuidar dela.

À primeira vista, parecia que assistiríamos a um épico equatoriano — com longas tomadas de uma paisagem camponesa nos Andes e um clima crescente de vingança. Mas era apenas uma ilusão. O primeiro arco do filme se dedica a retratar o amplo contexto das disputas entre liberais e conservadores por volta de 1888, entrelaçado a dramas familiares que surgem de forma espaçada, tanto na narrativa quanto na linha temporal. O ritmo começa a se arrastar, e quando a trama finalmente vira a chave, ela encontra inesperadamente o Gore — subgênero do terror — levando o drama para outra estrada, onde os dilemas ganham abrigo no suspense.

Escrito e dirigido por Diego Ortuño, o discurso desse projeto apresenta no ponto principal compor uma atmosfera sobre o vazio existencial e as necessidades na falta de esperança, a partir do que se sabe da tal lenda. Logo, a política e a fé se misturam, com a adição de uma trilha sonora viva (que é ‘too much’ em muitos momentos) buscando de qualquer forma dar amplitude a composição dos elementos em cena.

Mesmo com certa coesão narrativa, esse longo novelão aborda os dilemas morais de forma atabalhoada — especialmente no que deveria ser o centro da trama: os conflitos dos dois lados de um dito milagre. O filme se alonga na construção de seu discurso, levanta questões, mas não as resolve de forma convincente, num clássico exemplo de narrativa que perde o fôlego antes da linha de chegada. Em resumo, Chuzalongo é mais um drama arrastado do que um terror, que falha tanto em provocar medo quanto em gerar tensão.

 

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Crítica do filme: 'A Melhor Mãe do Mundo' [Bonito CineSur]


A Melhor Mãe do Mundo
novo longa-metragem de Anna Muylaert é arrebatador! Não há outra forma de começar esse texto! A desconstrução dos laços familiares surge como ponto de partida de uma trajetória que revela os impulsos necessários para, com os pés no chão e uma dose de criatividade, alcançar o início de um novo caminho. Uma verdadeira aula de narrativa, onde cada cantinho em cena ganha potência — seja pela atuação arrebatadora de Shirley Cruz, seja pela delicada gangorra entre dor e amor que atravessa a trama.

Gal (Shirley Cruz) é uma batalhadora. Trabalha como recicladora de lixo. Certo dia, num ato desesperado para fugir dos absurdos cometidos pelo marido (Seu Jorge), foge de casa junto com seus dois filhos. Durante esse período, fortalece seus laços maternos transformando esse momento numa grande aventura para essas duas crianças.

A ilusão palpável da aventura, quando vista por um olhar indefeso, escapa ao contraponto — ela se revela como complemento. Do pesadelo à esperança, o projeto assume um discurso plural, desdobrando camadas profundas e incessantes de reflexão. Aborda com sensibilidade temas como a maternidade, os relacionamentos abusivos e lança uma luz contundente sobre a violência contra a mulher. Somos capturados pela força desse roteiro, atentos a cada detalhe, enquanto ele escancara verdades que reconhecemos no nosso próprio cotidiano.

Cada detalhe em cena ganha intensidade — tudo salta aos olhos, grita, reverbera. A carga emocional toca fundo, entrelaçando compaixão e dor numa mistura capaz de nos desestabilizar. Os paralelos com a realidade surgem como um estalo: imediatos, incômodos, próximos demais. Quantas vezes vimos casos absurdos de violência contra a mulher estampando os noticiários ou vivenciados de perto? Este filme ultrapassa os limites da ficção, nos puxando de volta para reflexões urgentes deste lado da tela.

Selecionado para a Mostra Competitiva Sul-Americana do Bonito CineSur 2025, A Melhor Mãe do Mundo reafirma o talento de Anna Muylaert em um de seus trabalhos mais intensos e emocionantes. É daqueles filmes que tocam fundo, atravessam barreiras e permanecem com a gente. Uma obra necessária, que todos deveriam assistir.

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30/07/2025

Crítica do filme: 'Redención' [Bonito CineSur]


Sendo bem direto, Redención propõe o choque entre dois mundos ao retratar os dilemas de um casal evangélico incapaz de ter filhos. O longa-metragem peruano constrói seu drama familiar a partir de conflitos que tensionam valores morais e revelam camadas controversas. Desde o início, aposta em uma narrativa que cresce em intensidade até atingir um ponto de ebulição, onde múltiplas interpretações se abrem. A sugestão, mais do que a explicação, torna-se o fio condutor — mas essa escolha acaba por comprometer a coesão da narrativa, gerando uma sensação de desarmonia.

Escrito e dirigido por Miguel Barreda-Delgado, o filme nos conduz à tragédia por meio da rotina de um humilde vendedor de sanduíches, casado com uma enfermeira. Devotos fervorosos, o casal leva uma vida simples, pautada pela fé, até que tudo começa a desmoronar com a chegada de uma jovem grávida, que vive com a tia surda. O que parece ser um gesto de acolhimento logo revela seu lado sombrio: a jovem foi, na verdade, violentada pelo próprio trabalhador que agora a abriga — ponto de virada que acende os conflitos centrais da trama.

Logo em seu início, o longa-metragem revela certo potencial, estabelecendo os conflitos a partir de um evento que, à primeira vista, parece um gesto de compaixão, mas rapidamente se revela uma agressão covarde. Esse ponto de partida abre espaço para o desenvolvimento dos personagens. No entanto, ao tentar abordar o comportamento humano sob a lente da fé, o filme se apoia em uma crítica tímida, que evita tocar nas feridas mais profundas. Assim, acaba estagnado em conflitos superficiais, apostando apenas no imprevisível como trunfo narrativo.

Dentro do triângulo proposto, que inclui ainda um pastor intrometido, revolta, esperança, violência e desejo se misturam de forma confusa, prejudicado também por escolhas pouco acertadas na composição das cenas. Diálogos mal construídos e ações que se sobrepõem a explicações apenas sugeridas geram uma narrativa truncada, afastando-se progressivamente de um discurso que, inicialmente, parecia mais consistente e sólido.

Redención foi selecionado para a Mostra Competitiva Sul-americana de Longas-metragens do Bonito CineSur 2025. Um filme que prometia mas se perde em um mar de situações mal desenvolvidas que distancia o espectador a cada minuto que passa. Uma pena.

 

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29/07/2025

Crítica do filme: 'La Falta' [Bonito CineSur]


Com camadas habilmente construídas e guiado por um sentimento profundo de compaixão, o curta-metragem La Falta expõe, de forma crua e sensível, a dor de quem observa de fora uma tragédia em curso. Através do olhar de profissionais da educação, somos levados a enfrentar uma situação devastadora que marca para sempre a vida de uma aluna. Selecionado para a mostra competitiva de curtas sul-americanos do Bonito CineSur 2025, o filme desponta como um dos fortes candidatos ao troféu Kadiwéu.

Escrito e dirigido por Carmela Sandberg, o curta de apenas oito minutos mergulha o espectador em uma atmosfera densa de tensão e incerteza. Tudo começa quando o diretor de uma escola primária recebe um telefonema devastador: a mãe de Bianca, uma aluna de apenas 9 anos, sofreu um grave acidente a caminho da escola e está entre a vida e a morte no hospital. Diante da tragédia iminente, ele e outros professores se veem diante de um dilema delicado — como comunicar à menina uma notícia que mudará sua vida para sempre.

Esta coprodução entre Argentina e Uruguai lança luz sobre um recorte sensível do sistema educacional, explorando suas nuances a partir de uma tragédia familiar. Ao longo de toda a narrativa — ambientada inteiramente na sala do diretor, espaço que por si só carrega o peso de decisões difíceis —, o lado humano dos educadores se sobrepõe aos protocolos. São suas ações, hesitações e dilemas que conduzem nosso olhar, revelando a complexidade de lidar com o inesperado quando o papel de ensinar se entrelaça com o de cuidar.

Impressiona o clima constante de tensão que atravessa o curta do início ao fim, sustentado por uma composição visual precisa e enquadramentos objetivos. A câmera captura com sensibilidade o pulsar emocional dos personagens, revelando um olhar de dentro para fora — uma conexão que se estabelece, sobretudo, nas reações daqueles que recebem a notícia: do diretor à sua equipe, até chegar à própria aluna. Uma dinâmica harmônica que encaixa como uma luva na proposta do filme.

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Crítica do filme: 'Rua do Pescador, nº 6' [Bonito CineSur]


As dores de uma tragédia anunciada. Exibido no segundo dia de mostras competitivas do Bonito CineSur 2025, o novo trabalho da diretora e atriz Bárbara Paz, Rua do Pescador, nº 6 apresenta reflexões em meio a destruição e desilusão narrada por quem viveu os fatos de uma das maiores tragédias climáticas de nosso país. Com pausas reflexivas que buscam ganhar fôlego com uma raiz de conexões do discurso que se mostram amplas, o projeto parte de um olhar de uma comunidade ribeirinha gaúcha remetendo ao passado, sem saber sobre o futuro, mesmo do olhar presente.

Pouco tempo atrás, um fato de conhecimento público deixou o Brasil em choque. 478 das 497 cidades do estado do Rio Grande do Sul ficaram completamente inundadas culminando na maior tragédia climática da história da Região. Rua do Pescador, nº 6 se aprofunda na questão, apresenta novos olhares, a partir de uma Ilha de pescadores e seus moradores.

Esse é um longa-metragem que tem vários caminhos de análise. Dentre os elementos que se mostram em total evidência, o uso da versatilidade do P&B do início ao fim propõe uma imersão intensa por dentro das emoções. Com muitas cenas impactantes, dentro daquele chocar com intuito de gerar mais reflexões, nos levam para uma amplitude atemporal onde a fé e um ponto de interrogação sobre o futuro mostram suas facetas. Soma-se a isso algumas entrevistas que ajudam a contar a história.

A posição de observadora de um fato histórico, proposta feita com eficiência pela diretora, encaixa muito bem na condução desse documento histórico. Mesmo com desencontros narrativos, passando por leve redundância, o discurso é traduzido com imagens e movimentos de forma eficaz e que realmente prendem nossa atenção. Mas uma grande questão se apresenta quando reunimos todas as peças dessa crítica social: questionamentos de alguns porquês não encontram muitas camadas chegando apenas até uma crítica superficial.

O papel de todo documentário é registrar e ampliar debates sobre determinado assunto. No caso de Rua do Pescador, nº 6 soma-se o fato de dimensionar o tamanho dessa tragédia. É realmente muito chocante alguém de fora de toda região atingida perceber cada detalhe desse evento catastrófico. Narrador por quem viveu os fatos, o filme impacta, documenta a dor de forma visceral.

 

 

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28/07/2025

Crítica do filme: 'Oro Amargo' [Bonito CineSur]


Os dribles do destino em pleno deserto do Atacama. Sem oferecer respiros ou alívios, Oro Amargo — coprodução entre Chile, Uruguai e Alemanha — chamou atenção logo no primeiro dia da Mostra Competitiva de Filme Sul-americano do Bonito CineSur 2025. Dirigido por Juan Olea, o filme parte de uma relação aparentemente simples entre pai e filha para mergulhar o público em uma realidade dura e visceral, vista pelos olhos de uma protagonista encurralada em um contexto social opressor.

Carola (Katalina Sánchez, em ótima atuação) é uma adolescente que vive com o pai, o garimpeiro sem licença Pacífico (Francisco Melo), em uma comunidade humilde. Sempre presente nas tarefas do trabalho, ela vê sua rotina mudar drasticamente após um ataque violento ao pai, cometido por um ex-funcionário. Com Pacífico em recuperação, Carola precisa assumir os negócios da família — uma missão desafiadora em um ambiente marcado pelo machismo escancarado, pela misoginia e pela desconfiança gananciosa de quem a cerca.

Um dos aspectos que mais chama atenção é a maneira como o discurso se mantém estático mesmo diante de uma ruptura, impulsionado por um processo de amadurecimento precoce. Com poucas vias possíveis para reflexão, a narrativa aposta em uma abordagem cirúrgica, onde a tensão crescente e as múltiplas camadas de drama emergem com intensidade. Essas diferentes facetas de um mesmo conflito moldam com precisão o arco da protagonista, construindo uma trajetória envolvente e emocionalmente densa, que prende o espectador do início ao fim.

Dentro da harmonia com que conduz uma história pesada — tão dura quanto muitas realidades —, o roteiro rapidamente ultrapassa os limites do drama familiar e direciona o olhar do público para a amargura presente nas relações humanas. É esse o ponto de partida para uma jornada reflexiva sobre desigualdades e condições sociais. Sem espaço para respiros ou alívios, o filme avança de forma visceral, rompendo camadas que giram em torno de um mesmo epicentro. Impressiona como, a partir da amargura, consegue-se extrair algo potente — quase como transformar um limão em uma limonada, mas sem adoçantes.

A Mostra Competitiva de Filme Sul-americano do Bonito CineSur 2025 começou com o pé direito. Oro Amargo seria uma excelente adição ao circuito exibidor brasileiro — pena que, como tantas outras produções potentes, talvez não chegue às salas de cinema por aqui. Quem sabe, futuramente, em alguma plataforma de streaming. Reunindo temas urgentes e relevantes para o debate social, o filme é mais um exemplo da força do audiovisual em refletir e questionar realidades — sejam elas próximas ou distantes da nossa.


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27/07/2024

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Crítica do fime: 'Passagrana' [Bonito CineSur 2024]


A arte da mentira abraçando sonhos e a sobrevivência. Com pré-estreia nacional no Bonito CineSur 2024, o longa-metragem do ator, roteirista e diretor Ravel Cabral nos joga para um universo de conflitos sociais, através do olhar de alguns jovens que se viram com suas malandragens pelas ruas de São Paulo, onde os sonhos e a sobrevivência se chocam através de um cotidiano onde a ousadia vira uma marca. Honesto em sua proposta, um ‘heist movie’ adaptado para as realidades brasileiras, o roteiro deixa se levar nessa correnteza de possibilidades se tornando divertido e empolgante. Sem muitas derrapagens em clichês, o projeto atravessa os conflitos emocionais com o brilho dos carismáticos personagens.

Na trama, conhecemos Zoinhu (Wesley Guimarães), Linguinha (Juan Queiroz), Mãodelo (Elzio Vieira) e Alãodelom (Wenry Bueno), um grupo de amigos muito unidos que vivem de pequenos golpes pelas ruas da maior cidade brasileira. Após serem obrigados a pagar uma dívida com um policial corrupto (interpretado pelo excelente Caco Ciocler), aos trancos e barrancos, resolvem bolar um mirabolante plano para assaltar um banco. Durante esse processo, alguns deles passam por reflexões sobre sonhos e a própria vida.

Desde 2017 com uma prévia do roteiro já pronta, Ravel buscou reunir a partir de uma ideia todo um contexto adaptado para a realidade brasileira. Mesmo com uma primeira parte que pode soar um pouco confusa, o filme logo encontra seu norte. Nessa espécie de Onze Homens e um Segredo sem as cifras da ficção e realidade da obra hollywoodiana, percebemos um interessante uso da linguagem que conta com um apoio que se torna a cereja do bolo: uma trilha sonora que vira um elemento de destaque, fundamental para o dinamismo das ações que se sucedem no clímax.

Imersos na criminalidade, os quatro amigos se deparam com o ‘Furo da bolha’ onde se encontram. Essa jornada, que apresenta com simpatia esses anti-heróis mais no sentido de atos moralmente questionáveis, é nos levada até os sonhos, o primeiro amor, onde ganha destaque o personagem Zoinhu, a grande mente pensante por trás da tentativa de assalto a banco com ares cinematográficos.

Pegando gancho nessa última frase, dentro do conceito visto no discurso, imerso na arte da mentira e da malandragem, vemos o uso da metalinguagem aplicada de forma muito criativa que geram muitas cenas com a ironia em destaque. Além disso, o roteiro explora as desigualdades sociais de forma objetiva: as faltas de oportunidades, os sonhos distantes, até mesmo a polícia corrupta são jogados num liquidificador de dilemas.

Essa co-produção entre selos da The Walt Disney Company, que teve 25 diárias de gravações, estreia nos cinemas brasileiros no dia 19 de setembro e tempos depois na Disney Plus. Com um desfecho aberto, a probabilidade de uma segunda jornada dessa turma carismática é mais do que possível, é necessária!

 

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Crítica do filme: 'Neirud' [Bonito CineSur 2024]


Onde está o passado que alguns não esquecem? A partir de um resgate sobre os tempos circenses da própria família, a cineasta Fernanda Faya, em seu primeiro longa-metragem da carreira, nos leva até décadas atrás, com o tempo sendo uma mola propulsora de uma narrativa, com o objetivo de documentar uma história muito próxima que se apresenta aos poucos através do que não tem mas existe. A partir de um vazio, de uma perda, chega-se em memórias recém descobertas através de personagens que sempre estiveram muito próximos dela.

Selecionado para a Mostra Competitiva Filme Sul-Americano de Longa-Metragem do Bonito CineSur 2024, Neirud começa pelas primeiras lembranças, até mesmo de uma personificação da heroína e aqui chegamos num dos alicerces da história, uma misteriosa tia chamada Neirud e seu passado escondido. Através de revelações nunca ditas, onde muitas vezes parece se sentir nômade da própria história, a cineasta, numa espécie de diário de descobertas, adiciona de forma inteligente outros protagonismos dentro das narrativas familiares, principalmente quando encontra novas verdades através dos diálogos com o pai. O desenrolar em cena, se junta a tudo que se encontra de material, fotos, vídeos, cartazes e até mesmo reproduções de lembranças quando criança. Nesse ponto, a narrativa se arrisca em transformar a diretora narradora num protagonismo que desconversa com o discurso proposto no arco introdutório.

Assim, com algumas mudanças de direção mas não um carro desgovernado, o documentário embarca para uma forte contextualização que vai encontrar muitas questões que se abrem em camadas, algumas de forma profundas, outras ficam pela superfície mas que um olhar mais detalhista alcança mais reflexões. Se cerca também de contextos de um Brasil em ebulição entre as décadas de 60 e final dos 80 para imersar ao passado circense, onde chegamos na luta livre feminina, aqui com relatos de perseguições e preconceitos, evento esse que tinha sua tia Neirud como total protagonista. Dentro desse universo, que vai aos poucos ganhando a atenção do público, chegamos em outro ponto explorado, a descoberta de um amor.

Ganhador do prêmio de melhor roteiro no Festival Mix Brasil e vencedor do prêmio de melhor filme no Festival Internacional de Curitiba (Olhar de Cinema), uma das certezas que ficam sobre esse documentário brasileiro é que ele abre um leque de possibilidades para entendimentos e reflexões. Gera bons debates! Essa exposição de histórias de sua família aos diversos ‘observar dos outros’, não deixa de ser um ato de coragem de uma cineasta que em seu primeiro projeto opta por uma forma de dialogar através de uma imaginário diário que vai preenchendo com as surpreendentes revelações que encontra pelo caminho.

 


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Crítica do filme: 'Las Fieras' [Bonito CineSur 2024]


O passo a passo que precede o esporro. Com uma construção lenta, proposital, que apresenta um local e todo seu alcance, palco esse de uma certeza para um conflito, o longa-metragem argentino As Feras (Las Fieras, no original), dirigido pelo cineasta Juan Agustín Flores, joga um curioso olhar para as dúvidas e incertezas de personagens. Essa imersão gradativa ao campo abstrato de sentimentos obsessivos, de forma contemplativa, requer a atenção do espectador que pode ser fisgado ou não pela obviedade do desfecho.

Na trama, ambientada na parte da Argentina na região da Patagônia, conhecemos o casal Clara (Mariana Anghileri) e Julián (Andrés Ciavaglia), que resolvem fazer uma viagem até as terras do pai do primeiro já que o mesmo está em estado terminal. A questão que se soma é a de que algumas questões mal resolvidas pelo dono daquelas terras acabam explodindo em Julián, o levando para um provável dilema e relações conturbadas, distantes e inconsequentes com os funcionários do pai.

Em seus curtos 75 minutos de projeção, somos guiados por uma narrativa que dá pistas dos próximos passos mas que demora a acontecer. Muito bem filmado, encaixa-se no quadro e na composição das cenas, cores que levam o público até um clima de drama que surfa num suspense. Mas acontece uma situação inusitada, o trunfo e o calcanhar de aquiles são o mesmo elemento, o tempo de absorção de uma situação em iminente conflito.

Aqui, a graça é entender e refletir sobre os meios que se seguem até os conflitos. Longe de ser um filme descartável, o projeto encontra um clímax quase constante através dos deslizes dos acoados, ampliando assim o leque reflexivo através dos personagens, que mesmo não tendo um profundo desenvolvimento, chegam até o ponto para entendermos razões e emoções que se seguem.

Selecionado para a Mostra Competitiva Filmes Sul-Americanos de Longa-Metragem do Bonito CineSur 2024, As Feras mostra o passo a passo para um caminhar até o precipício e a amargura de um labirinto social.


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24/07/2024

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Critica do filme: 'La Ilusión de la Abundancia' [Bonito CineSur 2024]


Poucos filmes nos impactaram tanto esse ano como essa produção colombiana selecionada para a Mostra Competitiva do Bonito CineSur 2024. La Ilusión de la Abundancia, dirigido pela dupla Erika Gonzalez Ramirez e Matthieu Leitaert conta com um discurso afiado colocando na tela verdades sobre três regiões do mundo onde a ganância e os absurdos tomaram conta. Pelos olhares de três fortes figuras femininas latino-americanas, Bertha, Máxima e Carolina, somos imersos em uma narrativa que busca nas reflexões o complemento para absurdos das injustiças sociais e ambientais. Com uma narração que ajuda a costurar a forte mensagem contida em cada linha do roteiro, somos testemunhas de histórias que nunca esqueceremos.

Exibido em mais de 100 festivais em todo o mundo e vencedor de 12 prêmios internacionais, o projeto se divide em três partes mas que dialogam frequentemente transformando esse media-metragem em um projeto de força avassaladora. Com ganchos intercessores que dão dinamismo à narrativa, o espectador tende a ficar com os olhos grudados em tudo que é exibido. São relatos e mais relatos chocantes, que nos causam indignação, mas que geram perguntas diversas.

No Peru, chegamos até a história de Máxima Acuña, uma agricultora que frequentemente é intimidada de várias formas por uma empresa que busca os recursos da região onde ela mora  para benefícios. Essa sede pelos recursos naturais de empreendimentos gerenciados por quem tem dinheiro, encosta no conceito de ‘novos conquistadores’ reforçado pelos relatos marcantes, viscerais, sobre os absurdos contra moradores violentamente caminhando para o desabrigo. Além disso, o documentário joga uma luz num sistema judicial peruano trabalhando para quem tem o poder além de uma importante reflexão sobre a necessidade de um sopro de resistência, com os camponeses se juntando e ganhando voz mundial.

Em Honduras, a morte da ativista ambiental Berta Cáceres acende uma chama de luta e reflexão sobre a escassez pela privatização dos recursos naturais, as desapropriações de terra, a causa indígena. Sua filha Bertha se coloca à frente dessa luta, abrindo a todos os absurdos cometido em toda a região onde moram provocado pelo consumismo descontrolado que chegam rapidamente até a violência e um bico nos princípios morais.  

A última parada desses choques de realidade é o nosso país, mais precisamente no pós desastre de Brumadinho que colocou a mineração no centro de discussões. Através da ativista Carolina e numa batalha incansável para justiça ao mais de 200 mortos na tragédia, após  rompimento da barragem do córrego do feijão, uma série de ações são feitas na busca por transparência, visibilidade e justiça.

Com um discurso único que se transmite através dessas três histórias, chegamos ao desfecho com a sensação de perguntas não respondidas sobre os crimes de responsabilidade citados. A importância dessa obra audiovisual chega exatamente para isso: documentar os absurdos,  lutar por justiça e não deixar cair no esquecimento!

 

 

 

 

 

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23/07/2024

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Crítica do filme: 'Los de Abajo' [Bonito CineSur 2024]


Um caminho sem volta pelos direitos da terra. Exibido na última edição do Festival do Rio de Cinema e selecionado para a mostra competitiva cine ambiental do Bonito CineSur 2024, Los de Abajo busca em seu discurso reflexões dentro do conflituosos contexto de uma região através do olhar de um homem, um pai de família, no limite pela sobrevivência. Escrito e dirigido pelo cineasta Alejandro Quiroga, o projeto mostra os passos da renúncia da felicidade, o caos emocional constante dentro de uma situação que sufoca, e um flerte sem volta com o sacrifício.

Na trama, ambientada no bairro de Rosillas, na Bolívia, conhecemos a dura história de Gregório (Fernando Arze Echalar), um homem que se vê perdido em dilemas, problemas com bebida, abraçado a uma amargura constante, desesperado, desde que busca com toda sua força o reestabelecimento do açude de sua família que caíram nas mãos da elite local. Abandonado por todos que pede ajuda, e na sabendo como lidar com os que estão ao seu redor, ruma em passos largos ao precipício de uma ideia sem volta.

Esse é um projeto rico em reflexões por mais que a narrativa não consiga alcançar um clímax propriamente dito, fato esse que nos leva direto até as representações dos sentimentos sem muito respiro. As desilusões após inúmeras tentativas de ajuda vão minando até mesmo a sanidade do protagonista dentro de uma construção já reforçada pelo todo, que vai desde a injustiça social até as causas ligados pela ganância e egoísmo de quem tem poder sobre tudo. Esse complexo de Deus, aqui representado pela figura do implacável fazendeiro que usa e abusa da corrupção, através de seu poder econômico, impedem Gregório de alcançar novas maneiras de enxergar o mundo. Essa parte e todo seu desenrolar é um dos méritos do roteiro.

Ainda dentro desse emaranhado, o roteiro desse filme boliviano, se projeta pra construir uma barreira nos sentimentos, afastando o personagem principal de qualquer lapso de felicidade. A construção para isso é feito de maneira distante, prefere-se as entrelinhas, um ponto que o espectador precisa de atenção aos detalhes principalmente ao de uma fotografia que conversa bastante com o discurso.

Los de Abajo não é uma jornada feliz, longe disso. Instiga o espectador a todo instante. Sem pretensões, alcança o refletir com o esforço de uma solidão dolorosa que é jogada, através de seus sofridos personagens, na tela.

 

 

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Crítica do filme: 'Luiz Melodia – No Coração do Brasil' [Bonito CineSur]


Um observador do próprio cotidiano sem deixar de ampliar os olhares para o coletivo. Escolhido como filme de encerramento do 'Festival É Tudo Verdade' 2024 e selecionado para o Bonito CineSur do mesmo ano, Luiz Melodia - No Coração do Brasil nos leva para um tour objetivo sobre a carreira gloriosa, com altos e baixos, de um dos maiores artistas que o Brasil já viu. Chegando até o sucesso e o inusitado de ir ao seu desencontro, ao longo de 85 minutos de projeção, pelas ruas da alegria e com o violão debaixo do braço, acompanhamos um meteoro de carisma e genialidade que saiu do morro e conquistou plateias de todo o país.

Com o auxílio do próprio protagonista contando sua história através de imagens e vídeos, o documentário passa pelo toque de sonhar sozinho que levou o grande melodia a uma direção de sucesso atrás de sucesso. Sem fronteiras quanto ao gosto musical, seus embates com o próprio mercado fonográfico, a primeira canetada de sucesso, as parcerias musicais, são algumas das passagens desse belo trabalho assinado por Alessandra Dorgan que venceu o prêmio de Melhor Filme na 16ª edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical.

Passando rapidamente também pelos seus primeiros passos na música, sua relação carinhosa e muito próxima com o lugar onde foi criado, o Morro Do Estácio, a chegada ao mundo da fama, num primeiro momento logo reconhecido como talentoso compositor, depois seu desabrochar como um intérprete de apresentações únicas, vemos ao longo de 85 minutos a caminhada até seu brilhantismo que conquistou a atenção de Gal Costa e outras lendas da Música Brasileira.

Com o rico auxílio de imagens de outrora, numa fabulosa montagem, passeando no estácio, um lugar que sempre lhe quis, ou num momento pelos palcos da vida, Luiz Melodia - No Coração do Brasil costura o encontro entre as observações do cotidiano e as emoções, na visão do próprio centro das atenções, chegando até um recorte interessante sobre sua carreira, o homem e o artista de forma empolgante. Melodia pode ter ido por aí mas jamais saiu daqui...dos nossos corações.

 

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Crítica do filme: 'Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo' [Bonito CineSur]


Selecionado para a Mostra Competitiva de Filmes Sul-Mato-Grossenses da segunda edição do Bonito CineSur, dirigido pela dupla Cid Nogueira e Silas Ismael, o longa-metragem documental Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo antes de qualquer coisa é um rico aulão de história e geografia, com belíssimas imagens e uma competente pesquisa. Dito esse mérito, precisamos apontar que parece estarmos assistindo a uma edição de programas educativos. Com uma óbvia forma definida como episódica, mas exibido como filme, o projeto busca apresentar a rica história de uma região através das expedições fluviais, mais precisamente no Rio Coxim que banha o estado do Mato Grosso do Sul.

Há uma estrutura narrativa que segue através do tempo a partir de recortes históricos explicados passando de forma objetiva pelos processos de expedições do século XVII até as consequências socioambientais da atualidade. Pode ser dividido em quatro partes: a história de uma região, os ribeirinhos, os pescadores e os garimpeiros. Os fios intercessores chegam por estudiosos e pesquisadores que, com grande conhecimento do tema, exploram seus olhares como se fossem professores em uma espécie de vídeo aula, que de forma didática, ajudam a construir caminhos para reflexões.

A questão é: como alocar tanta informação numa obra cinematográfica? Com um ritmo acelerado para contar uma história de séculos em 70 minutos (uma tarefa realmente bem difícil!), é preciso de muita atenção e concentração do espectador. Mesmo assim, corre-se o risco de necessitar do complemento de leituras futuras, ou outras obras audiovisuais, para preencher lacunas. Um ponto que poderia ser muito útil mas naufraga é o uso de legendas explicativas que em alguns momentos entram e saem rapidamente, evidenciando um mal uso do elemento.

Algumas críticas sociais, em relação à situações e ações que foram ganhando multiplicidade com o tempo e, em certos pontos, provocando um efeito dominó que impactaram toda a região mostrada, ganham espaço já quase no desfecho mas sem muita profundidade. A cultura ribeirinha, aos olhos de relatos pessoais de alguns personagens que tem um amplo conhecimento daquele espaço, buscando o resgate dessa história, se junta aos pontos positivos da obra.

Em complemento, as pesquisas culturais e o paralelo ao movimento monçoeiro, além das belíssimas imagens da região do Pantanal, um lugar onde convergem vários rios, podem se tornar um prato cheio para geógrafos, historiadores, Botânicos, orquidófilos. Rotas Monçoeiras – História de um Rio e seu Povo se encaixaria melhor como uma obra seriada, dentro da sua estrutura vestido de documentário pode ter um discurso com méritos mas confuso.

 

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22/07/2024

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Crítica do filme: 'Ainda Somos os Mesmos' [Bonito CineSur]

Crédito Foto: Edson Filho

Marcas de um passado que nunca esqueceremos. Trazendo para reflexões situações vividas por alguns brasileiros que estavam no Chile durante o início da ditadura de Pinochet nos anos 70, o novo trabalho do cineasta gaúcho Paulo Nascimento, Ainda Somos os Mesmos, apresenta dilemas, embates geopolíticos fervorosos, chegando até uma luta pela sobrevivência, com lapsos de solidariedade, apontando dedos para hipocrisias. Baseado em fatos reais, adotando uma narrativa de forma linear usando flashbacks como apoio, o projeto parte de uma relação conflituosa entre pai e filho para se chegar até os horrores de uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul.

Na trama, com seus 91 minutos de projeção, ambientada no início da década de 1970 em meio ao caótico domínio de ditaduras em vários lugares, conhecemos Gabriel (Lucas Zaffari), um estudante de medicina, que após precisar fugir do Brasil por conta dos militares brasileiros, chega até o Chile ainda no governo de Salvador Allende, onde acreditava estar seguro. Mas pouco tempo depois, um golpe de estado liderado pelo chefe das forças armadas chilenas, o general Augusto Pinochet, acontece, levando Gabriel a buscar refúgio na Embaixada da Argentina. Em paralelo a isso, seu pai, Fernando (Edson Celulari), um empresário influente da indústria calçadista, com forte ligação com os militares brasileiros, busca soluções para resgatar o filho.

Para toda essa engrenagem audiovisual funcionar, do discurso até o que vemos em cena, através de todo o contexto dolorido vivido pelos angustiados personagens, há um foco na tensão constante que se sustenta e não estaciona no trivial da relação de pai e filho. Assim, amplia-se o contexto, parte desse ponto para se chegar em outros epicentros dramáticos. Uma questão de toda essa costura, é uma trilha sonora que se torna em certos momentos maçante, quebrando horizontes mais amplos, limitando o olhar do espectador para a construção narrativa.

A insanidade e o desespero é um fator bem explorado, muito por conta da personagem de Carol Castro, Clara, uma brilhante economista afetada de forma drástica pelos abalos emocionais que parecem nunca terem fim. Essa figura, que ganha destaque mesmo com pouco tempo em cena, dentro de uma Mise en Scène que segue o discurso, personifica as emoções conflituosas que o lugar onde estão apresenta. Com as regras zeradas, uma nova dinâmica do poder entre eles mesmos circula o ambiente caótico que virou a embaixada da argentina. A clareza dessas questões deixam mais fáceis as reflexões que se seguem.

Rodado no Chile (na Cordilheira dos Andes e em Santiago) e no Brasil (Porto Alegre e Novo Hamburgo), premiado como Melhor Filme Independente no Montreal Independent Film Festival 2023, e ainda selecionado para o Bonito CineSur 2024, Ainda Somos os Mesmos é mais um filme importante para a galeria de projetos que abordam os tempos sombrios de ditadura. Sempre vamos lembrar e nunca esqueceremos.

 

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