10/10/2025

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Crítica do filme: 'Dolores' [Festival do Rio 2025]


Em mais um dia de Festival do Rio 2025, encontramos com um filme brasileiro bem peculiar e a mesmo tempo interessante, que revela suas camadas através do desenrolar dos conflitos de três gerações de mulheres de uma mesma família. Dolores, dirigido por Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar, investe numa narrativa contemplativa que mergulha nos pensamentos e os sonhos dos personagens, nos levando a sentir os dramas de personagens à beira de mais um importante passo na vida.

Dolores (Carla Ribas) é uma mulher solteira, já sexagenária, com marcas no passado. Perto de completar mais um aniversário, tem um sonho revelador. Mantém uma relação conflituosa com a filha Deborah (Naruna Costa), que aguarda a libertação do grande amor de sua vida para, enfim, ser feliz. Em contrapartida, Dolores possui uma ótima relação com a neta Duda (Ariane Aparecida), que trabalha numa espécie de clube de tiro e recebe uma oferta de emprego fora do país. Essas três mulheres vão se jogar em uma jornada em busca da realização de seus sonhos. 

Esse é um filme de fácil identificação, com temas amplamente debatidos na atualidade e personagens que ilustram realidades vividas por muitas pessoas, especialmente quando pensamos no como lidar com as adversidades. A obra encaixa reflexões imaginativas pelas entrelinhas mas também é possível se guiar pelo concreto da realidade nua e crua que se apresenta.

Ambientado na periferia de São Paulo, a história gira em torno da protagonista que dá nome ao filme – Dolores – uma mulher que encontra no contraditório e na inconsequência um combustível para os próximos passos. Personagem fascinante, ela se torna o elo que conecta  com todas as subtramas. Entre elas está Deborah e sua dor pelo amor, que desperta para novas jornadas, levando consigo um conflito não mostrado com a mãe. No outro vértice desse triângulo familiar, Duda representa o novo pensar de uma geração que não quer deixar oportunidades passarem. Sob esses pontos de vistas, percorremos as dificuldades que se mostram presente, a sorte, os sonhos e também as consequências da confiança.

Do literal ao simbólico, o recorte do sonhar permeia a trajetória das personagens, um alvo do discurso que sustenta tudo que acompanhamos. A narrativa, detalhista e de ritmo dosado,  busca um ar poético nos dilemas humanos. Assim, o filme se desenvolve através das três realidades que se entrelaçam com questões existenciais - do vício em jogos ao desejo de uma vida melhor. Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar desenvolvem um trabalho competente na condução dessa história.

Essa obra é o ponto final de um roteiro deixado pelo cineasta Chico Teixeira, falecido seis anos atrás. Se fecha em Dolores a sua Trilogia dos Afetos, composta por A Casa de Alice (2007) e Ausência (2014).

Exibido na 73a edição do San Sebastian Festival e selecionado para a Première Brasil do Festival do Rio 2025, Dolores deixa marcas profundas em nossa reflexão sobre a existência. Pelos caminhos árduo que percorremos, entre as dores e também os recomeços, é importante não perder de vista as possibilidades de sonhar. É sempre levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima.

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Crítica do filme: 'Cheiro de Diesel' [Festival do Rio 2025]


Selecionado para a mostra Première Brasil de Documentários do Festival do Rio 2025, o impactante projeto Cheiro de Diesel é um profundo e inquietante recorte sociológico da cidade conhecida como ‘maravilhosa’. Buscando em seus intensos 80 minutos de projeção ampliar o debate sobre as intervenções militares nas favelas cariocas - mais precisamente quando o exército brasileiro ocupou o complexo da Maré durante a Copa do Mundo de 2014 -, chegamos num retrato comovente e avassalador pela visão da própria comunidade, de seus trabalhadores e moradores da região.

Muito bem montado, o longa-metragem costura com precisão seus pontos a partir de um discurso irrepreensível, onde caminhamos pela luta da jornalista, comunicadora comunitária e ativista social Gizele Martins em sua busca para dar voz ao que de fato aconteceu em uma região tomada por perigos de todos os lados – uma realidade que afetou em cheio o direito de ir e vir de 140.000 moradores.

A contextualização é bem feita e se insere naturalmente na narrativa, através das histórias que são contadas. Quando eventos de grande projeção passaram a ter o Rio de Janeiro como sede, o governo resolveu enviar o exército para um complexo de favelas - fato que gerou situações alarmantes, pouco divulgadas nas mídias tradicionais. A herança disso? As sequelas na vida de inúmeras pessoas que sofreram na pele os horrores dessa chamada ‘paz armada’.  

Indo à raiz dos problemas que se acumulam – que servem como um importante registro através do cinema –, chegamos aos medos constantes e às facetas de uma suposta proteção que, na verdade, revelou-se uma despreparada empreitada assinada pelo alto escalão da república.  Com o jornalismo também em pauta, o documentário exemplifica a tragédia e as marcas da violência por meio dos depoimentos de algumas vítimas, mas sem deixar de criar a ponte com o agora.

Cheiro de Diesel é um soco no estômago, um projeto valente que joga seus holofotes para as verdades muitas vezes não ditas – caladas pelos anos - e que precisam de uma vez por todas reflexões de todos nós.

 

  

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Crítica do filme: 'Sonhos' [Festival do Rio 2025]


Trazendo à reflexão as muitas faces extremas do sentimento mais poderoso que existe – o amor - Sonhos, escrito e dirigido pelo cineasta mexicano Michel Franco é um filme sensível e atual, ao mesmo tempo carnal e desconfortante. Fruto de atuações impressionantes e um jogo de cena que nos conduz da euforia à destruição - chegando até o rompimento com o psicológico e o bom senso -, a obra se destaca por seu silêncio revelador, algo que chama a atenção nessa narrativa. Uma fórmula que convence - desde o início - onde se potencializa a tensão e um silêncio incisivo que entra como um elemento complementar.

Uma mulher da alta sociedade norte-americana (Jessica Chastain), diretora de uma fundação de renome, se apaixona perdidamente por um bailarino mexicano (Isaac Hernández) que está ilegalmente nos Estados Unidos. Ao longo desse relacionamento que se mostra conflituoso, situações vão colocando os personagens em dilemas, até o último suspiro dessa relação.

O roteiro se projeta através de um contraponto dentro desse recorte sobre os relacionamentos – um discurso afiado e, ao mesmo tempo, desafiador. O real valor de quando se perde encontra as barreiras dos dilemas; o sonho de uma carreira vira um duelo com o sonho de um grande amor. Nessa gangorra existencial, percorremos as faces dessa intensidade, sempre no extremo, onde a tensão e o constrangimento maximiza esse choque entre os ‘sonhos’ – título mais que certeiro do projeto. 

O sugestivo encontra espaço, deixando a trama cada vez mais interessante. Partimos do ponto onde os personagens já se conhecem, onde o passado também é contado pelas entrelinhas. Impressiona como o roteiro instiga o público a querer descobrir como essa história vai terminar. Uma aula de como contar uma história usando elementos em cena e buscando na força das atuações construir grandes momentos. O projeto não perde fôlego; os minutos vão se passando e a tensão só aumenta, culminando em um final emblemático e surpreendente.

Há tempo também para uma crítica social contundente em relação ao tratamento aos imigrantes ilegais na maior potência do mundo - assunto que se tornou cada vez mais atual com a chegada do governo em vigor.   

Selecionado para o Festival do Rio 2025, a obra conta com atuações brilhantes de seus protagonistas, principalmente Jessica Chastain. Esse é um filme que busca no visceral de suas intensas cenas, um olhar profundo para retratos sociais e as incongruências que podem evoluir dentro de um relacionamento.

 

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Crítica do filme: 'Massa Funkeira' [Festival do Rio 2025]


Abrindo espaço para vários olhares sobre o movimento funkeiro - um dos grandes expoentes da cultura brasileira quando pensamos em representações artísticas, sobretudo no Rio de Janeiro -, o documentário Massa Funkeira, novo trabalho da cineasta Ana Rieper, reúne um interessante retrato social a partir de uma série de registros e depoimentos de Mc’s, dançarinos e produtores, revelando novos olhares para essa arte musical que conquista atenção e aborda, sem papas na línguas, temas considerados tabus na sociedade.

A montagem desse filme é a chave do sucesso. Ao criar um ritmo intenso e envolvente, esse retrato social coloca em evidência - sem moralismos e julgamentos - as letras ligadas as relações íntimas, especialmente o sexo. Assim, percorremos o por trás da fama de artistas desse segmento que alcançaram sucesso em vários períodos dos últimos anos, chegando também às mudanças e reflexões por trás das canções que embalaram bailes funks pelo Brasil – e pelo mundo.

Com uma mescla de batidas eletrônicas e letras imponentes – que chamam a atenção logo de cara -, o funk traduz as expressões e realidades do cotidiano, representando a força da periferia brasileira. Desmistificando esse gênero musical que ainda hoje é alvo de preconceitos por alguns olhares da sociedade, o projeto apresenta uma recorte sociológico profundo, divertido e, até mesmo, emocionante, capaz de fazer o público enxergar de outras formas para esse movimento musical por novas perspectivas. 

Massa Funkeira, selecionado para o Festival do Rio 2025, é um dos grandes documentários exibidos na edição deste ano do evento carioca. Ana Rieper mais uma vez consegue, com seu cinema documental de primeira linha, trazer olhares, relflexões e registros importantes da nossa sociedade.

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Crítica do filme: '#SalveRosa' [Festival do Rio 2025]


Uma mãe cruel, controladora e egoísta que expõe sua filha na internet. É a partir dessa premissa - que atravessa os muitos olhares sobre uma trágica relação familiar – que o novo trabalho da ótima cineasta Susanna Lira apresenta, de forma reta e contundente, um assunto que vem ganhando cada vez mais atenção na sociedade contemporânea: a exposição infantil nas redes sociais. #salverosa é um grito de socorro que pode abrir os olhos de muitas pessoas.

Aos 13 anos, Rosa (Klara Castanho) é uma jovem introspectiva que virou uma celebridade na internet com um canal que reúne milhões de assinantes. Ela vive sob o olhar atento da mãe (Karine Teles), uma mulher controladora, enigmática e que esconde segredos. Nessa relação que vai se mostrando cada vez mais conflituosa, acompanhamos os desenrolares desse chocante retrato quando Rosa começa a descobrir verdades da sua própria história. 

O tom colorido do projeto – com cores pulsantes, fruto de uma direção de arte que dialoga com o campo emocional a todo instante -, ajuda a potencializar as camadas emocionais dos personagens. Sob alguns pontos de vistas – fato que ajuda a narrativa a ganhar ritmo conduzindo à tensão – acompanhamos as ações e consequências quando um castelo de cartas macabro começa a desmoronar. De dentro pra fora – do íntimo familiar até os olhares de terceiro –, o roteiro busca os conflitos dentro de uma estrutural tradicional: sem se arriscar mas conseguindo evidenciar o impacto do chocar.

Uma vilã clássica - daquelas de despertar o ódio, debochada e atrevida - dita o ritmo em muitos momentos, mais uma atuação competente da atriz Karine Teles. A partir dessa figura emblemática na história que é contada, o projeto foca em trazer para debate o caótico retrato da inconsequência da exposição. À medida que a tecnologia é inserida de forma desenfreada através dos meios de comunicação que surgem a toda hora, a obsessão pela fama e sucesso coloca a moral escanteada. Um dos méritos desse filme é justamente lançar luz sobre essa questão.  

Prendendo a atenção em muitos momentos, o drama logo vira um suspense, com uma imprevisibilidade em seu final.  #salverosa cumpre o que promete: vai das relações tóxicas – que acontecem em muito lares – até as camadas da exposição em mundo cheio de perigos, distantes ou próximos de cada um de nós.

 

 

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06/10/2025

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Crítica do filme: 'Alice' [Festival do Rio 2025]


Já dizia alguém: é nos pequenos frascos que estão os melhores perfumes! Com uma composição visual deslumbrante, criando significados a partir do desbravar da linguagem, quase um chamado para a imersão de sentimentos que pulsam na tela, o curta-metragem Alice, dirigido por Gabriel Novis é um retrato comovente e profundo de uma mulher trans nascida em Maceió. Embarcando em uma reinvenção de sua própria trajetória, Alice Barbosa apresenta ao público a sua história, que teve estreia nacional no Festival do Rio 2025.

É impressionante como, em apenas 17 minutos, nossos pensamentos se veem mergulhados em reflexões constantes de um retrato muito bem construído e sensível. Tocante e contornando o terror do preconceito, a narrativa nos projeta para conhecer uma história que fala muito sobre família, despertar para suas verdades, o luto, os prazeres através do esporte e também as mudanças com as despedidas. Com uma narração da própria personagem-título, somos conquistados do primeiro ao último minuto.

Contextualizando de forma certeira a violência, o preconceito, a misoginia e a transfobia - traços de uma sociedade em constante medo, e, muitas vezes, incapaz de enxergar a realidade do próximo - Alice apresenta sua protagonista: uma jovem artista trans que desperta para algumas questões de sua vida após a perda, muito sentida, do pai. Esse luto, é uma variável que se torna constante, ganha simbolismo em tela, um elemento que cruza a trajetória que acompanhamos – das memórias da infância ao presente - de maneira acachapante.  

Esse é um filme para ser sentido, debatido, e embarcar na criatividade com que se modela a linguagem. Tudo o que aparece em tela parece dialogar com o discurso e com os pontos que se ligam à emoção. Esse curta-metragem alagoano foi o vencedor de um dos maiores festivais de documentários do planeta, o Hot Docs, no Canadá – feito que o posiciona como uma obra qualificável para a disputa do próximo Oscar. Tomara! Que filmaço!

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Crítica do filme: 'Sobre Tornar-se uma Galinha d'Angola' [Festival do Rio 2025]


Uma das maiores alegrias de qualquer amante da sétima arte é se deparar com uma obra surpreendente e avassaladora durante um evento de cinema. No terceiro dia de exibições do Festival do Rio 2025 nos deparamos com um longa-metragem impressionante que, de forma criativa e envolvente – utilizando a comédia em muitos momentos para nos guiar por assuntos espinhosos ligados a uma família - nos leva até um recorte sobre a violência, crueldade e tradições, ambientada num país africano.

Escrito e dirigido pela cineasta zambiana Rungano Nyoni, esse projeto nos conduz até o ensurdecedor silêncio de verdades escondidas, ao conflito geracional, à desigualdade de gênero e ao caos do patriarcado – elos de uma corrente que insere-se na violência sem punição, na dor e sofrimento capazes de transformar olhares e redefinições de trajetórias.

Shula (Susan Chardy) está dirigindo seu carro quando, de repente, percebe um corpo estirado no meio da estrada – e logo percebe que se trata de seu tio. Quando a família toma conhecimento do ocorrido, os procedimentos para o funeral se iniciam e, a partir disso, começamos a entender quem era a pessoa que morreu - além de segredos chocantes que são aos poucos revelados.

Nessa construção narrativa, executada de forma cirúrgica, as camadas se abrem também por uma estética cinematográfica inteligente, em que o diálogo sobre os temas se amplia através do que vemos e ouvimos – uma verdadeira bomba de emoções que sufoca o coração mais gelado. Sempre pelo olhar de uma protagonista com marcas no seu passado, o ápice do discurso vai sendo aos poucos revelado, com um desenvolvimento eficiente de leves subtramas que rompem a superfície dos assuntos que se apresentam.

Do riso inesperado ao desconforto que choca, tudo é exposto - e ainda há resquícios pelas entrelinhas. É impressionante como cada peça se encaixa de forma harmônica para se chegar a erupção de um grito guardado. Andamos pela corda bamba das emoções reprimidas sem conseguir tirar os olhos da tela. É muito difícil conseguir um resultado como este, construído através da sutileza e de um humor que vai direto ao desconforto diante de questões difíceis de discorrer.

Com seu enigmático e peculiar título, Sobre Tornar-se uma Galinha d'Angola – que pode até afastar os que não estão abertos a descobertas ou mesmo não fazem questão de refletir sobre os assuntos que os espera -, esta obra não deixa nossas memórias tão cedo, preenchendo nosso pensar com um leque de reflexões sociais que alcançam a universalidade das várias formas de violência presentes em muitos lares. Um dos melhores filmes do Festival do Rio 2025.

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04/10/2025

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Crítica do filme: 'Depois da Caçada' [Festival do Rio 2025]


O italiano Luca Guadagnino é um dos mais interessantes cineastas da atualidade - e isso não vai mudar. Seu cinema busca reflexões sociais atuais, dialogando com o público a cada ponto de suas narrativas, como já se viu na maioria dos seus filmes. Em seu novo trabalho, Depois da Caçada, exibido pela primeira vez no prestigiado Festival de Veneza – e filme de Abertura do Festival do Rio 2025 -, ele volta a recortes sociais importantes e, dessa vez, convida o público a embarcar em um elevador para camadas de assuntos que vão se amontoando, sem respiro para reflexões.

Pra embarcar nesse longa-metragem, é preciso atenção. Pelas entrelinhas de diálogos bem construídos, a filosofia surge como base – o principal ingrediente desse molho que busca, no conflito, as pausas necessárias pra expor a ética e a moral em uma sociedade cada vez mais egoísta. Foucault, Locke são citados e servem de gancho para camadas que exploram desde a necessidade de controle e o cancelamento até as relações interpessoais e as linhas tênues que se apresentam no caminho para pensar a existência.

Alma (Julia Roberts) é uma professora renomada da prestigiada universidade de Yale. Casada com Frederick (Michael Stuhlbarg), ela trabalha há anos para ganhar a titularidade e reconhecimento do seu trabalho. Quando Maggie (Ayo Edebiri), uma aluna de doutorado, faz uma acusação contra Hank (Andrew Garfield), outro professor da instituição, Alma se vê perdida em dilemas trazendo à tona um segredo do passado que transforma seu presente num mar de instabilidades emocionais.  

Com uma trilha sonora muitas vezes incessante – um elemento complementar a composição da ebulição das emoções que se apresentam –, somos colocados no papel de observadores de um castelo de cartas que se constrói e descontrói. Tudo funciona em cena para potencializar o caos interno dos personagens a partir dos assuntos que surgem, elevado por um elenco primoroso que sustenta um roteiro denso com o foco nas perspectivas desses personagens.   

O cancelamento e os caminhos para lidar com isso – tanto dos envolvidos quanto por quem está ao redor – é um dos temas que mais se projetam, onde realmente há uma construção mais constante, um assunto que busca lapidar as camadas que se expandem. A questão é que essas muitas camadas que se abrem, deixam o respiro em segundo plano, alongando o tempo de projeção – mesmo que sem redundância. É maçante em muitos momentos, pois enquanto estamos pensando sobre um ponto, logo outro se apresenta, e costurar isso tudo quando se chega ao fim é uma tarefa árdua – talvez até um convite para assistir ao filme de novo.

A partir também da moral e da ética, o roteiro busca com seu discurso cheio de significados pensar o hoje sob muitos olhares. Provavelmente vai dividir opiniões, mas tem méritos que são facilmente absorvidos.  

 

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01/10/2025

Crítica do filme: 'French Lover'


Na simpatia e bom humor se leva uma história batida. Tratando com maturidade alguns temas – mesmo entupido de clichês – o novo longa-metragem da Netflix French Lover é aquele mais do mesmo que consegue nos divertir. Trazendo como protagonista um dos mais carismáticos artistas do cinema mundial - o francês Omar Sy – a produção coloca seus holofotes para um casal que busca a felicidade no equilíbrio entre dois mundos completamente diferentes.  

Abel (Omar Sy) é um ator francês em plena ascensão na carreira. Já Marion (Sara Giraudeau) é uma recém-divorciada que sonha em ter um food truck. Um dia, esses dois se encontram por acaso e logo nasce uma paixão avassaladora. Com o tempo, precisam enfrentar os obstáculos que aparecem pelo carinho.

Dirigido por Nina Rives, em seu primeiro longa-metragem, o filme busca a todo tempo alcançar um clímax previsível – desde o início, fica evidente onde chegaria o desenvolvimento dos personagens. O caminho até esse destino é marcado por altos e baixos: por vezes rompe a camada superficial de alguns temas, em outros passa batido, se fortalecendo apenas pela harmonia e carisma em cena dos protagonistas. Junto a isso, um ritmo frenético imprime ao fluxo narrativo um dinamismo que encaixa como uma luva e que no fim das contas prende a atenção.

Mas o roteiro é pra lá de indeciso em seu discurso – algo que incomoda o olhar mais atento. Sem saber direito se quer ser um ‘conto de fadas’ sonolento ou se provar como um projeto maduro para refletir sobre relacionamentos, vamos caminhando até os detalhes dos dois universos que se unem aos trancos e barrancos. De um lado, o status do artista, com gravações, sonhos, aquela vida cheia de exposição que já conhecemos. Do outro, uma mulher num momento de instabilidade, com o coração ferido, lidando com as limitações que a vida lhe trouxe até esse momento. Absolutamente nada de novo: Já vimos essa história várias vezes em alguns filmes, né?

French Lover vale para quem curte comédias românticas: tem seu charme, mas carece de desenvolvimento dos personagens para se tornar inesquecível. Esse calcanhar de aquiles torna tudo previsível.

 

 

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Crítica do filme: 'Cais' [CineBH 2025]


No segundo dia do CineBH 2025, foi apresentado ao público um longa-metragem que é uma experiência – muitas vezes indecifrável –, rompendo com o lugar-comum trazendo os múltiplos sentidos da ausência entre belíssimas, e espalhadas, imagens em movimento. Tendo a água - o recurso fundamental para existência - como elemento-chave para o decifrar as reflexões, Cais, longa-metragem dirigido por Safira Moreira, encontra no luto uma forma de pensar o tempo.  

Entre antíteses que atravessam o recorte de uma família - o passado e o presente, a morte e a vida, tradição, cultura, religião -, o pensar sobre a existência se alia a uma câmera que encontra os lugares, como um personagem observador, em busca de um norte para os afluentes que conduzem ao epicentro dessa história. As interpretações podem ser variadas: esse é um documentário que não revela, mas pede pra ser sentido. De algum modo, tudo passa pelo tempo entrelaçando as gerações.

Há um desafio para o público: nesse ‘River Movie’, não há uma pista sobre o que é essa história e logo ficamos numa posição de sentir mais do que compreender. Em certos momentos, a ausência dos diálogos nos coloca de frente com a imersão, mantendo-nos em estado de atenção durante toda a projeção. Do fundo do mar, memórias convergindo sobre origens se chocam com a despedida (a partida da mãe), e também o recomeço (a maternidade) - um primeiro pulso que pode marcar o início de um caminho para interpretações.

Vencedor dos prêmios de melhor filme pelo júri, público e crítica no seu evento de estreia na 14º Olhar de Cinema, Cais nos gera uma inquietação constante, pede por uma entrega sensorial, entre peças que despertam nosso olhar. É um longa-metragem que fica na gente por dias, quando percebemos ainda estamos pensando sobre a obra. Quando o cinema nos provoca dessa forma, nos tirando da acomodação do que logo se entende, valida o valor do registro. 

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Crítica do filme: 'Punku' [Cinebh 2025]


Do experimental à ficção mais estruturada, com o híbrido pulsando nas infinitas possibilidades de manipulação inventivas dos elementos da linguagem cinematográfica, o drama - e também terror - peruano Punku aposta na sua chamativa estética destemida e em caminhos tumultuados para prender a atenção e revelar verdades da sociedade peruana. Escrito e dirigido por Juan Daniel Fernández Molero, o longa-metragem foi selecionado para a Mostra Território do CineBH 2025.

Um jovem desaparecido há dois anos é encontrado desacordado pela indígena machiguenga Meshia, numa região remota do Peru. Gravemente ferido em um dos olhos, ele precisa ser levado com urgência para a cidade de Quillabamba, onde poderá receber maiores cuidados. Chegando nessa nova cidade, o destino desse dois se entrelaça: entre pesadelos incompreendidos e verdades latentes, eles encontram todo tipo de dor, frustração e violência. 

Se você curte filmes que seguem uma receita de bolo, com tramas simplistas, poucas camadas, ou aquele ‘mais do mesmo’ sonolento, talvez passe batido por essa obra. Aqui há possessão, um curioso olhar para o misticismo, crítica ao patriarcado, liberdade de experimentação (quando pensamos em linguagem), além do choque do antes e depois marcado pela chegada da tecnologia à formação indígena contemporânea. Um verdadeiro pot-pourri de ações e elementos que se conectam para um recorte amplo – ainda que desordenado.

Duelando com os padrões convencionais, o filme aposta na fuga da lineariedade e de qualquer facilidade para driblar a mesmice, colocando todo seu foco na tensão como um elemento fundamental de sua construção. Seja pela forma criativa com que capta olhares, seja pelo conteúdo de sua trama, muitas vezes enigmática e com pontas soltas em elos que se perdem, esse curioso projeto prende a atenção de algumas maneiras.

Exibido no Festival de Berlim deste ano e apresentado pela primeira vez no Brasil, em Belo Horizonte, durante o CineBH, este filme peruano não é daqueles terrores de fecharmos os olhos. Deixando escanteada qualquer lapso de consistência narrativa, seu maior impacto surge das representações de verdades nuas e cruas, que coloca na mesa os deslizes da nossa capacidade de evoluir diante de valores e crenças que afetam a essência humana.

 

 

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Crítica do filme: 'Memoria Impacable' [CineBH 2025]


O CineBH vem trazendo em sua programação deste ano preciosos documentários, alguns sobre assuntos pouco conhecidos. É o caso de Memoria Implacable, co-produção Argentina e Chile que apresenta, por meio de um road movie, a desapropriação de terras e genocídio do povo indígena Mapuche a partir da chegada militar pelos dois lados da Cordilheira dos Andes. Através das descobertas de uma acadêmica descendente Mapuche, percorremos os lugares por onde, entre dores e desamparo, seu povo foi obrigado a passar logo após a expulsão de suas terras.    

A oportunidade de reencontrar as verdades dessa história é o grande objetivo de Margarita, uma ativista que dedicou sua vida a se reconectar com o passado de seus antepassados e entender de vez a história de sua família e seu povo. Guiada por essa missão, ela busca  informações em relatos e registros da brutalidade, buscando por memórias enterradas, esquecidas ou negadas. A cada nova parada, uma nova reflexão se soma ao seu caminho.

A contextualização histórica é apresentada com eficiência, e logo compreendemos a natureza dessa jornada. Os Mapuches habitavam o centro-sul do Chile e sudoeste da Argentina antes de terem seu território invadido por forças chilenas e argentinas, em ambos os lados dos Andes. Um fato que nunca foi reparado, com uma negação histórica que persiste até hoje. Essa negação é algo que pulsa em todo o documentário, despertando questionamentos sobre suas causas.

O grande desafio da narrativa é ilustrar essa história que tem sua força motriz apenas em memórias documentadas. A saída criativa é fascinante: entrevistas e narrações de registros sobre o ocorrido se encontram com uma composição visual deslumbrante, um cenário que se contrapõe as horrores cometidos nesses mesmos lugares. O silêncio também é um elemento que se faz presente, ganhando muitos sentidos dentro de um discurso que nunca perde sua direção.

Um dos objetivos de documentários como este é impedir que fatos sejam esquecidos, além de lançar luz sobre temas distantes para muitos, mas que ajudam a entender absurdos muitos vezes escondidos. Memoria Implacable constrói um retrato doloroso e de impacto, que provoca muitas reflexões.

 

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Crítica do filme: 'Morte e Vida Madalena' [CineBH 2025]


Inspirado em algumas histórias reais que o diretor Guto Parente escutou ao longo dos anos na sua vasta carreira no cinema – já são 11 longas-metragens no currículo – Morte e Vida Madalena, de maneira acertiva, e com uma narrativa pulsante ligada ao tragicômico, explora os caminhos e infinitas possibilidades da metalinguagem para expor os perrengues de uma profissão.

Selecionado para a Mostra Vertentes do CineBH 2025, o projeto - que já passou com grande sucesso por outros festivais de cinema este ano - é uma jornada que usa da melancolia debochada para apresentar ilustrações do cotidiano caótico de uma produção cinematográfica – algo pouco compreendido por quem não é do meio. Essa narrativa é impulsionada para a excelência com a atuação deslumbrante de Noá Bonoba.

Apresentando alguns dias de filmagens de um filme com baixo orçamento de ficção científica, conhecemos Madalena (Noá Bonoba), uma produtora de cinema prestes a ter o primeiro filho que passou por um momento dilacerante com o falecimento da sua maior referência, na vida e na profissão: seu pai. Precisando concluir um filme, Madalena precisa enfrentar inúmeros obstáculos e situações.

Impressiona como Parente consegue costurar drama e a comédia de forma harmoniosa, produzindo uma química, desde o início, com o público. Mergulhando nos perrengues de uma profissão que precisa provar seu valor a cada momento, o filme também revela a história de uma protagonista imersa em desilusões e decepções, mas que nunca deixar de encontrar um olhar positivo - ou mesmo um afeto carinhoso. É ou não é o reflexo de muitas histórias na realidade?

Pra dar vida a personagem principal, não tinha escolha mais certeira que Noá Bonoba. Que atuação maravilhosa! Sua presença pulsa como um coração vivo: oferece afeto e pede colo. Um verdadeiro presente para todos que tiverem a oportunidade de vivenciar essa obra.

Assistindo a esse filme, você ri, chora e se vê pensando nos dilemas universais que se desenrolam. O que mais se pode esperar de uma obra cinematográfica? Essa história, que certamente chegará com força para quem trabalha com cinema, encontra paralelos em diversas realidades - sociais, profissionais. Morte e Vida Madalena é um deleite para reflexões, um filme para a galeria dos melhores do ano.


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Crítica do filme: 'A Natureza das Coisas Invisíveis' [CineBH 2025]


Selecionado para a Mostra CineMundi do CineBH 2025, o delicado e marcante longa-metragem A Natureza das Coisas Invisíveis aposta no olhar ingênuo das primeiras fases da vida para construir uma trama que se sustenta na sutileza, encontrando reflexões maduras sobre a vida e a morte, equilibrando o conforto da imaginação com o impacto da realidade. O filme é escrito e dirigido por Rafaela Camelo, em seu primeiro longa-metragem.

Com a câmera sempre no lugar certo, somada a atuações maravilhosas e diálogos envolventes, cada peça do que assistimos se juntam para complementos, ampliando o discurso. Temas como a maternidade, os desafios na relação entre mães e filhas, a transição de gênero, o luto, são assuntos que aparecem ao longo dos cerca de 80 minutos de projeção.

Gloria é uma jovem super inteligente e comunicativa que acabou de entrar de férias. Sem ter com quem deixá-la, sua mãe, uma profissional da saúde, a leva diariamente ao hospital onde trabalha. Um dia, dá entrada na emergência Sofia, uma menina trans, neta de uma senhora que adoeceu. Com idades próximas, Gloria e Sofia logo se tornam amigas. As mães resolvem levá-las até um sítio, e lá começam a ultrapassar páginas do passado e abrir os horizontes para o futuro.

A história é contada de forma delicada, em uma narrativa de estrutura simples, na qual pontes são construídas através das imagens e mensagens, acompanhadas por uma trilha sonora cirúrgica. Assim, chegamos em preenchimentos de lacunas que se criam num primeiro momento. O encontro entre dois mundos, cujas questões convergem, e o olhar da criança para o universo cheio de questões da sociedade, abre espaço para temas polêmicos que podem servir para ótimos debates. De mansinho somos conquistados por essa história.

Os muitos sentidos da morte se tornam uma questão central que navega por toda a trama. Contornando esse tema muitas vezes complexo de captar olhares, a narrativa se lança em um corajoso jogo de complementos, no qual cada detalhe ganha importância em cena. Um exemplo disso é a presença de um porquinho que aparece durante partes da história, cujo simbolismo revela significados para os olhares mais atentos.

Exibido no Festival de Berlim deste ano e com uma sessão emocionante no CineBH, A Natureza das Coisas Invisíveis encontra nas sutilezas do primeiro olhar maduro para a existência seu porto seguro, apresentando uma história repleta de ternura, incertezas, e, acima de tudo, afeto.

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30/09/2025

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Crítica do filme: 'Assalto à Brasileira' [CineBH 2025]


Você sabia que, há quase 40 anos atrás, mais precisamente na cidade de Londrina, ocorreu um dos maiores assaltos a banco da história do Brasil? Jogando luz para alguns curiosos desenrolares desse evento, o novo longa-metragem do experiente cineasta José Eduardo Belmonte, Assalto à Brasileira, recria essa ação com toques certeiros de comédia, sob o ponto de vista de uma peça importante: um jornalista recém-demitido que acabou sendo um elo entre criminosos e a polícia.

Exibido no último dia de programação do CineBH 2025, o filme mergulha nos detalhes que compuseram as intermináveis horas de tensão, mas chega de forma leve para o público pelo foco nas trapalhadas e inexperiências dos personagens envolvidos. Há sempre um risco ao compor sugestões desse tipo: no fim das contas, os ladrões acabam despertando uma torcida – algo que, de fato, ocorreu com boa parte da população na época. Aqui, porém, é completamente justificável esse espírito de ‘Justiça Social’, já que o embate entre sistema e população abalada por instabilidade financeira provocava reações desse tipo, bem retratadas pelo projeto.  

Paulo (Murilo Benício) é um jornalista renomado que atravessa um momento turbulento em sua vida: recém-demitido, vai até a agência do Banco do Estado do Paraná (Banestado) para pegar seus trocados da rescisão. Chegando no local, acaba presenciando um inusitado assalto. Enxergando na situação uma oportunidade de reportagem - e percebendo, aos poucos, que os bandidos são completos amadores -, Paulo acaba sendo peça-chave na comunicação entre polícia e os assaltantes.

O ritmo do filme é fundamental para que os olhos do público não se desgrudem da tela- e aqui isso se mostra um fator de grande importância. Com um início promissor, a ótima trilha sonora, com canções que servem para marcar época aos acontecimentos, ajuda a começar com o pé direito. Há uma busca a todo instante por um equilíbrio na narrativa, que encosta nos exageros, mas sem se tornar redundante – o que poderia deixar maçante o contar essa história.        

Outro ponto importante é a contextualização, apresentada já na introdução do filme e que segue ao longo dos diálogos, uma manobra complementar que ajuda ao entendimento de certos porquês. Imagine o cenário: você compra um pão de manhã por um preço e, na mesma tarde, o valor é outro. Em 1987, ano desse acontecimento retratado na obra, o Brasil passava pelos primeiros passos da redemocratização, mas ainda carregava uma herança dos tempos de ditadura – uma inflação próxima de 400% ao ano –, realidade que deixou muitas pessoas à beira do desespero.

Mas o grande acerto do projeto é ilustrar eventos que muitas vezes parecem surreais com a força da essência cômica. Ótimos artistas - destaque para Christian Malheiros e Murilo Benício – dão vida à personagens que, em pequenas participações ou grande presença em tela, conquistam espaço na trama. Essa leveza acaba convencendo o público, que provavelmente vai interagir bastante com os acontecimentos quando o filme estrear no circuito exibidor.

Vencedor de três prêmios na última edição do Festival de Brasília, Assalto à Brasileira apresenta mais uma página curiosa de nosso Brasil de forma consistente e que vai levar o público ao riso mas sem deixar de sugeri reflexões sociais.

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