06/04/2021

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #357 - Clara Ferrer


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nossa entrevistada de hoje é cinéfila, do Rio de Janeiro. Clara Ferrer tem 32 anos, é formada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. É diretora e roteirista. Sua coletânea de contos “Amores Monstruosos” foi contemplada pelo 1º Prêmio Rio de Literatura, e seus curtas mais recentes estão disponíveis no Canal Brasil e na plataforma Cardume.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Um dos privilégios de morar no Rio é a variedade relativamente grande de exibidores que lutam pra oferecer uma programação mais variada, que vá além dos blockbusters multimilionários que entram em cartaz ocupando oitenta por cento das salas no país. A gente tem o Grupo Estação, o Grupo Casal, as salas do Espaço Itaú, do Moreira Salles, da Caixa Cultural, do CCBB, da Cinemateca do MAM... Esses são os meus preferidos, porque essa programação mais variada é o que me atrai. Mesmo quando as poltronas têm cheiro de mofo, mesmo quando o som dos filmes de uma sala vaza para as outras. Esses cinemas compensam, pelas livrarias e os cafés que eles abrigam, pelos conhecidos que você encontra por acaso na bilheteria, e claro, sempre, pelos filmes que eles exibem, de fazer ver todo o tempo e todo o espaço no mundo.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Acho que eu tenho essa sensação desde quando fui ao cinema pela primeira vez. Eu era bem pequena, mas ainda consigo sentir o assombro de ver o príncipe da Pequena Sereia matando a bruxa com o mastro do navio. Eu ainda tenho essa cena muito bem gravada na minha mente, gigante diante dos meus olhos de dois ou três anos de idade. Mas de todos os cinemas que eu conheci, pra mim o mais sagrado era o finado Estação Paissandu, que passava filmes antigos em preto-e-branco numa tela imensa, vendia doces de passas com chocolate na bombonière (ninguém comia pipoca nos cinemas do Estação), e tinha uma locadora mágica cheia de coisas estranhas e diferentes e maravilhosas. Acho que eu e os meus pais íamos ao Paissandu como algumas famílias vão à igreja.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Impossível escolher um favorito, mas pra não te deixar sem resposta, posso falar dos que tenho visto esses dias. Recentemente eu descobri os filmes do Lee Chang-dong (Em Chamas, Poesia), e ando encantada com eles. Também andei revendo os filmes do Fellini, talvez pela necessidade de fazer o meu pequeno mundo de quarentena parecer maior e mais mágico - deles, Amarcord é o meu preferido. Os filmes da Agnès Varda são outros que eu sempre gosto de revisitar - eles são tão imensamente humanos e delicados - e os da Céline Sciamma talvez sejam os contemporâneos que eu aguardo com mais ansiedade. A Jane Campion é outra que eu sigo com atenção - eu gostaria muito que ela fizesse mais filmes.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

De novo, impossível escolher, então fica como dica o último filme nacional que eu vi: No Coração do Mundo, de Maurílio Martins e Gabriel Martins. Como tudo que a galera da Filmes de Plástico faz, foi uma delícia de assistir. Destaque para a Selma de Grace Passô e todas as outras personagens femininas, que são, pra mim, todas absolutamente fabulosas e o ponto alto do filme.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

É sentir que você pertence aos filmes, e que eles pertencem a você. Infelizmente, pra muitas pessoas - incluindo várias que estudam e trabalham com cinema – a cinefilia ainda é um espaço de opressão e exclusão. Existe todo um movimento que luta para mudar isso, mas as forças que persistem contra ele ainda são grandes, cheias de desconfiança e má-vontade e velhos preconceitos. Pra quem se interessa pelo assunto, recomendo muito a tradução e a discussão que a Revista Cinética promoveu ao redor do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu: http://revistacinetica.com.br/nova/traducao-de-por-uma-nova-cinefilia-girish- shambu/

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Eu já trabalhei com distribuição, tive a oportunidade de conhecer de perto o trabalho dos programadores, e acho importante lembrar que, no fim, eles são funcionários de empresas, que devem trabalhar de acordo com as diretrizes e os interesses dessas empresas. Você pode amar de paixão o cinema brasileiro independente, mas se você trabalha para um cinema de shopping, vai ser difícil emplacar um filme desses nas suas salas, né? O que eu quero dizer é que os problemas de programação que a gente tem vão muito além da vontade dos programadores. São problemas de formação de público, de acesso, de divulgação, da relação que os próprios realizadores brasileiros constroem com a sua audiência, e muitas outras questões profundamente entranhadas na historia do nosso cinema, com soluções imensamente complicadas, se existentes.

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Acabar, não. Mas acho que elas vão mudar, como já mudaram tantas vezes ao longo da história do cinema.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

O português A Metamorfose dos Pássaros, da Catarina Vasconcelos. Ele estreou no ano passado em Berlim, e já passou em alguns festivais brasileiros como o Olhar de Cinema e o Panorama Coisa de Cinema. É um filme de submergir, íntimo e único e imenso, todo feito de imagens inacreditavelmente poderosas que guiam a gente através de uma história que é tanto sobre uma família quanto sobre um país, ou um olhar, ou uma vida.

Outra indicação é o Beginning, da Dea Kulumbegashvili, que está disponível no MUBI. No primeiro plano do filme ele já se revela absolutamente excepcional, e segue assim por cada segundo de todas as suas duas horas de duração, sem nunca deslizar ou afrouxar.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Se isso fosse possível dentro dos protocolos de segurança desenvolvidos por quem entende do assunto, e viável economicamente, seria maravilhoso. Mas esse é um grande “se”.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Acho que existem muitos cinemas dentro do cinema brasileiro, e que isso é uma coisa boa, especialmente porque todos eles me parecem estar conseguindo alcançar o que se propõem, dentro das suas particularidades e com muito esforço, em condições muito distantes das ideais. Pessoalmente, o meu desejo é ver essa diversificação se expandir ainda mais, possibilitando o surgimento de novas vozes, visões, e jeitos de fazer cinema.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

A dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Pra mim, eles são os cineastas brasileiros mais revolucionários do momento. Desde o primeiro filme deles, Café Com Canela, eles já realizaram outros três longas (Ilha, Até O Fim e Voltei!). Quatro filmes em cinco anos, cada um mais único, destemido, necessário e profundamente humano que o outro.

 

12) Defina cinema com uma frase:

Cinema é a expressão máxima do nosso desejo de capturar todos os efêmeros pedaços da realidade que nos são importantes pra poder guardar, compartilhar e eternizar.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Uma vez a Caixa Cultural organizou uma mostra sobre o maravilhoso Jiří Menzel, e adivinha quem tava na sessão de Trens Estreitamente Vigiados que eu fui ver? Ele mesmo, em carne e osso e com o sorriso de um menino de oito anos de idade. O melhor de tudo foi quando um dos membros da equipe da mostra apareceu pra fazer a apresentação. Ele colocou o Jiří lá na frente da sala, diante de todo mundo, parou ao lado dele e começou a ler uma longa lista com todos os prêmios e realizações e grandes feitos do diretor. E aí, do nada, o Jiří arranca a lista da mão dele, enfia no bolso, e solta uma risadinha de criança travessa.

Acho que essa situação foi o maior exemplo que eu já presenciei de uma pessoa ser exatamente quem você espera que ela seja pelos filmes dela, e olha que eu já estive numa sessão de debate pós-filme com a Isabelle Huppert. Que foi, bem... Exatamente como você esperaria, pelos filmes dela.

 

14) Defina ‘Cinderela Baiana’ em poucas palavras...

Um filme onde crianças dançando axé à beira da estrada são a solução proposta para o problema do trabalho infantil. Ou seja, um verdadeiro conto de fadas brasileiro.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo? 

Não, mas parece meio estranho não ser, né? Não só pela importância de ter referências e um profundo conhecimento do cinema para o trabalho, mas também porque cinema é expressão, e expressão é troca, e se você faz filmes, mas não tem interesse em outros, você não tá trocando.

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida? 

Pra mim, o que pode existir de pior no cinema é a preguiça. É ter todos os recursos no mundo pra investir no novo, no diferente, no inesperado, e se limitar a continuar fazendo o que já foi feito um milhão de vezes, de maneira cada vez mais irrelevante, banal e sem sentido. Nesse sentido, nada me deixa mais triste do que ver coisas como os remakes das animações da Disney, os desastres da DC ou o último episódio da saga Star Wars. Ao contrário de artistas que às vezes entregam obras falhas por falta de experiência, dinheiro, tempo ou outros recursos, esses caras não têm desculpa alguma além de um profundo desamor e indiferença pelo cinema.

 

17) Qual seu documentário preferido? 

Dos que eu vi recentemente, acho que o que mais me tocou foi O Desaparecimento da Minha Mãe, de Beniamino Barrese. A tensão entre o filho obcecado em capturar a figura da mãe, e a mãe - ionicamente, uma ex-modelo - que detesta ser transformada em imagem foi de encontro a muitas das reflexões pessoais que me consomem, como artista e como mulher. Os melhores documentários são aqueles que têm personagens inesquecíveis, e a Benedetta Barzini definitivamente é uma dessas.

 

18) Você já bateu palmas para um filme ao final de uma sessão?   

Claro! Acho que a última delas foi numa sessão de pré-estreia de Bacurau. Suspeito que, se deixassem, estaríamos todos aplaudindo até agora.

 

19) Qual o melhor filme com Nicolas Cage que você viu? 

Eu amo essa pergunta, e odeio que essa é a minha resposta, mas aí vai uma confissão: eu não consigo assistir ao Nicolas Cage. Pra mim, ele tem o que quer que seja o exato oposto de carisma - olhar pra ele por muito tempo me deixa constrangida. Perdão, Nicolas Cage. Pelo menos você tem nada menos que duas ilhas nas Bahamas pra te consolar.

 

20) Qual site de cinema você mais lê pela internet?

Os meus hábitos de leitura online são meio aleatórios e meandrantes. Mas geralmente eu acompanho a cobertura de festivais internacionais por sites como Variety e Vulture, e depois vou atrás de críticas e mais informações sobre os filmes que me interessam pelo Rotten Tomatoes. Ou então me perco em pesquisas infinitas pelo Google. Ultimamente, também tenho me sentido muito inspirada a ver filmes através do trabalho da revista Verberenas, que eu indico muitíssimo.