26/08/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #59 - Luciano Souza

O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

Nosso convidado de hoje é bancário, administrador, viciado em filmes dos gêneros e países mais diversos. Luciano Souza é membro da Confraria Lumiere, grupo de cinéfilos de várias partes do Brasil e que se conheceram no dia a dia das salas de cinema e centros culturais, em filmes do circuito ou dos festivais e mostras (Festival do Rio e Mostra de São Paulo).

Obs: Nunca nos vimos pessoalmente mas pelas redes sociais estou sempre acompanhando as dicas desse querido amigo cinéfilo!

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

As salas do Grupo Estação. Elas formaram toda uma geração de cinéfilos com a variedade de filmografias. Até 2008 em morava em Guaratiba, bairro da zona oeste e um dos mais distantes do centro do Rio. Olhava a programação nos jornais e eram nas salas do Grupo Estação que encontrava a maioria dos filmes que queria ver. Devido à distância, eram nos fins de semanas que me programava pra ver os filmes. Eram vários a cada fim de semana, praticamente mini festivais. Fui criado nas salas Estação Botafogo, Estação Rio e na saudosa sala Estação Paissandu. Grande parte dos cinéfilos que conheço e se tornaram meus amigos, conheci nas salas do Grupo Estação.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Eu tinha 12 anos em 1987 quando fui ao Cine Palácio Campo Grande ver A Dama do Cine Shangai de Guilherme de Almeida Prado. Era uma daquelas salas grandes com 1.750 lugares. O filme é um “Triller” e grande parte dele se passa em um cinema velho de São Paulo. Todo o clima do filme, que possui um ótimo roteiro e vendo em uma sala que se parecia com a sala retratada no filme, me levou a um encantamento com o filme e com a experiência única que é estar em uma sala de cinema. E o Guilherme de Almeida Prado tem uma filmografia espetacular. É um dos grandes diretores brasileiros, mas que infelizmente é pouco reconhecido. 

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

É muito difícil responder essa pergunta. A quantidade de diretores que adoro e acompanho é bem grande. Mas vou citar o “primeiro amor”. Quando ainda não associava os filmes aos diretores, o primeiro a me despertar foi Pedro Amodóvar. A maneira como nos apresentava a Espanha, com seus guetos, submundo, sua decadência. A riqueza na composição dos personagens, a cara de “Filme B” das suas primeiras películas, a junção do melodramático com a comédia em seus filmes, feito com maestria. Meu predileto dele é Tudo sobre minha mãe.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Rio Babilônia do Neville de Almeida. É um filme de 1982 que é cara do Rio e do país. E não ficou datado, o filme é muito atual, mostrando o tráfico, corrupção, assassinatos, crescimento desordenado da cidade, o caos social.  É um estudo antropológico, sociológico, cultural e sexual. As orgias do filme permearam as minhas fantasias. É simplesmente o filme que mais vi e revi na vida.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

É ter paixão por filmes, dos mais variados formatos e gêneros.  É ser viciado.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

A maior parte dos cinemas trabalha com programação das “majors” americanas e brasileiras, esses programadores conhecem mais de cinema do ponto de vista mercadológico. Os cinemas que possuem uma programação mais autoral e alternativa e que privilegiam diretores e cinematografias de todo o mundo, geralmente possuem programadores com um conhecimento mais amplo. Mas esse modelo de cinema é minoria no mercado exibidor e os programadores além de cultura cinematográfica, têm que entender também de mercado, pois as salas não sobrevivem somente com uma boa curadoria. Precisam conhecer bem o público e sua diversidade.

 

7)  Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Acredito que não. As salas de cinema já passaram por “muitas ameaças” e não acabaram. Foi assim quando surgiu a TV, quando surgiu o vídeo cassete, agora com o streaming. Mas cada novo suporte pra exibir filmes que surge não caba com o ritual que é ir a uma sala de cinema e a magia que é ver um filme em uma sala. O que muda é a freqüência de idas, os tamanhos das salas, as localizações, os equipamentos, o mix de produtos oferecidos juntamente com o filme.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Eu adoro um veterano diretor mexicano chamado Arturo Ripstein. Ele tem uma vasta filmografia com uma dramaturgia com elementos do detestável, as patologias do cotidiano filmadas com sensibilidade e grande direção de atores. Geralmente os filmes dele só chegam aqui via festivais e mostras. Tem os filmes do diretor português João Pedro Rodrigues que também dificilmente entram em circuito aqui, como é pra citar apenas um filme, cito um filme dele que é uma obra-prima: Morrer como um Homem sobre uma transformista das noites de Lisboa pressionada pelo namorado a fazer a cirurgia de mudança de sexo.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Acho que sim. Devem seguir certos protocolos de distanciamento e segurança. Porque os exibidores de arte (cinemas, teatros, casa de shows, museus, centros culturais) têm que estar entre os mais penalizados nessa reabertura? Tivemos no Brasil um distanciamento social completamente mal conduzido, um governo federal que boicotou desde o início as medidas básicas a serem realizadas e que não aprendeu com os acertos e erros dos países onde o auge da pandemia ocorreu anteriormente. O que vemos é uma quarentena que se arrasta e uma reabertura que avança sem declínio das contaminações e mortes. A cultura já sofre com o retrocesso e massacre imposto por uma política autoritária, excludente e de gestores governamentais reacionários. Mas dificilmente irei a uma sala de cinema por mais que tenha saudades, enquanto o número de contaminados e mortes não tiver baixado drasticamente.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Sempre fui fã do cinema nacional e possuímos um histórico de diversidade de gêneros e formatos desde o cinema mais popular ao autoral e alternativo.  Chanchadas, pornochanchadas, cinema novo, cinema marginal, “terrir”, documentários. Somos o país de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Carlos Reichenbach, Helena Ignez, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Ivan Cardoso, Suzana Amaral, Ana Carolina, Neville de Almeida, Arnaldo Jabor, Eduardo Coutinho, Lucia Murat, entre tantos outros mestres. Da safra mais recente temos Anna Muylaert, Daniella Thomas, Walter Salles, Karim Aïnouz, Cláudio Assis, Elaine Café, Kleber Mendonça Filho, Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Gabriel Mascaro, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marcelo Gomes. Só nos nomes citados, impossível questionar falta de qualidade. Fico observando principalmente entre os frequentadores dos chamados “cinemas de arte”, comparações com o cinema argentino. O cinema argentino não é só de filmes com Ricardo Darín. A Argentina tem filmes e cineastas excelentes, assim como tem muito filme ruim, como em qualquer grande cinematografia. Na América Latina considero a brasileira e mexicana, as mais ricas e diversas.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

 

Não perco um filme do Claudio Assis. Cinema visceral, com muita crítica social, mas sem precisar de discursos para os personagens. É “porrada”, mas com um roteiro bem construído e de imensa sensibilidade.

 

12) Defina cinema com uma frase:

Cinema é alimentar o corpo e a alma, é viajar por cada canto desse mundo.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Quando soube que o cinema Coral/Scala na Praia de Botafogo (RJ) fecharia pra dar lugar a um complexo de salas que hoje é o Espaço Itaú de Cinema, quis conhecer a sala antes do fechamento definitivo.  Apesar de já ser conhecido por sua decadência e ser local para encontros de sexo casual como em cinemas de centro da cidade de capitais que exibem filmes pornográficos, este exibia grandes clássicos do cinema francês e que faziam parte do acervo da Cia dona do cinema. A sala já bem decadente mantinha os cartazes com fotos de grandes atrizes e atores franceses. No dia que fui conhecer a sala, a exibição era do filme “Carmen de Godard” do mestre Jean-Luc Godard. Foi a primeira vez que vi o filme e o inusitado foi ver um filme de Godard acompanhado de pessoas fazendo sexo bem em frente à tela e ao meu redor nas poltronas.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

Talvez seja uma das maiores falhas como cinéfilo (rsrsrs). Nunca vi o filme por completo. Mas já vi trechos no youtube, parece ser tão bizarro que deve ser delicioso para assistir. E olha que já vi muita produção tosca principalmente algumas realizadas na “Boca do Lixo”, local que também produziu filmes importantes da história do nosso cinema. Pretendo ver Cinderela Baiana o mais rápido possível.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Há cineastas que não possuem muita bagagem como cinéfilos e fazem grandes filmes. Mas acho deliciosos perceber que alguns diretores são cinéfilos e a forma como usam as referências de outros diretores em seus filmes.

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida?

Alguns filmes são tão ruins que se tornam divertidos. Ruim mesmo é quando o filme é entediante. Eu vejo muitos filmes, mas com o passar dos anos e com as referências de diretores, passei a ser mais seletivo. Dificilmente vejo um filme escolhido só por sinopse, aqueles “tiros no escuro”, mais comuns nos meus primeiros anos de cinefilia. Mas acontece de ver filmes de diretores que acompanho e quando a sessão termina ser uma decepção total. Quando vi Cro – o filme pensei: Bruno Barreto fez Romance da Empregada, um filme que adoro, não deveria ter assinado isto. Mas não tenho ainda um filme tão marcante negativamente a ponto de eleger como o pior filme que