O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado é uma das pessoas de melhor texto sobre cinema
no Brasil. Professor, jornalista, e crítico de cinema, Marcelo Muller é membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e no
Sesc/RJ. Suas aulas sempre são um espetáculo, como um combustível transparente
de amor ao cinema. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes
Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes
Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira – 100 Filmes
Essenciais" (2018). Além de tudo isso, ele é um dos editores do excelente site
Papo de Cinema (https://www.papodecinema.com.br/).
Obs: Querido irmão cinéfilo, saudades de nossos papos
presenciais, ou algum encontro rápido em Copacabana ou Niterói. Conversar com
Marcelo sobre cinema é sempre enriquecedor, as vezes vale a pena até ter um
caderninho por perto para anotar tantas referências e dicas que se multiplicam
sobre o universo do cinema. Um dos textos que acompanho sempre, entro até nas
lives do papo de cinema e mando mensagens!
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da
escolha.
Aqui no RJ é a do Espaço
Itaú em Botafogo. Pois tem uma programação diversificada, ali passa o tipo
de filme que eu gosto de assistir, a sala é confortável, é próximo da minha
casa. É um misto de tudo: programação que acho ótima, conforto e o entorno: a
localização, que além de me facilitar, permite que a ida ao cinema se desdobre
em outros programas.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
A minha cinefilia é uma cinefilia tardia. Não sou o tipo de
cinéfilo que pode dizer que desde muito cedo atentou para o cinema. Eu sempre
via muitos filmes, principalmente em casa, nós lá em casa demoramos muito para
ter um vídeo cassete, também demoramos para ter dvd mas o filme que fez com que
eu sentisse vontade de estudar mais cinema, frequentar cinema (pois eu sou de
uma cidadezinha do Rio Grande do Sul chamada Caxias do Sul em que as
alternativas de cinema eram muito poucas), o filme que mudou minha relação com
o cinema foi O Senhor dos Anéis: A
Sociedade do Anel que fez com que eu fizesse atravessar a cidade (a ida
para o cinema pra mim era isso, atravessar a cidade). A partir desse filme
comecei a me aprofundar muito no cinema.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
Isso muda todo dia. Mas hoje posso dizer que é o David Lynch e o meu filme favorito do Lynch é o meu filme favorito da vida...por
enquanto (porque a gente sempre tá mudando rs) que é o Cidade dos Sonhos. Pra mim, esse é um filme muito especial por
trabalhar com uma questão muito sensorial, por trabalhar com uma indeterminação
que me agrada no cinema. Eu adoro o tipo de filme em que eu me perca no trajeto.
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Deus e o Diabo na
Terra do Sol. Sou um grande apreciador do cinema brasileiro. É um filme que
conjunta algumas coisas que me agradam. É um primor técnico, embora algumas
pessoas tendem em ficar falando de alguma precariedade. Talvez até exista mas
ela é utilizada pelo Glauber Rocha
como o ruído que se transforma em linguagem e acho que a gente tem muito do
Brasil ali. A luta de classes, a religião, o capitalismo, as figuras míticas, Glauber Rocha conjugando o faroeste no
terceiro mundo, utilizando alguns preceitos do cinema soviético, metendo um
pouco de Akira Kurosawa. É um filme
que acho incrível.
5) O que é ser
cinéfilo para você?
Ser cinéfilo é gostar de ter um modo de vida que de alguma
forma é condicionado ou muito guiado pelo mundo do cinema, pelas possibilidades
do cinema. Embora eu acredite que de uns tempos para cá, a cinefilia que é essa
possibilidade de vivermos em torno do cinema nos alimentando do cinema, retroalimentando
esse amor, a cinefilia tenha ficado um pouco desgastada pela ideia do cinéfilo
chato, aquele que só quer ter razão, quer mostrar para os outros que sabe mais.
Até porque a cinefilia, assim como qualquer outro conhecimento, denota uma
espécie de poder e eu gosto de me afastar dessa realidade. Lógico que fico
lisonjeado quando alguém me diz que me vê como uma referência pela minha
profissão ou pelo que eu faço mas eu reluto essa ideia de influenciador, de
influencer, em alguma questão. Eu entendo a cinefilia como uma coisa pura e
mais profunda do que algo a mediar as relações que por ventura nós podemos ter
com nossos pares.
6) Você acredita que
a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas
que entendem de cinema?
Acho que a maior parte das salas de cinema que eu frequento,
felizmente, são feitas por pessoas que tem algum olhar mais detido para cinema.
Que compreendem um pouco melhor cinema. Mas se formos analisar o todo, fica
muito a desejar essa relação. Acho que boa parte das pessoas que trabalham com
cinema não tem essa devoção pelo cinema, não tem essa paixão pelo cinema e acho
que isso faz toda a diferença.
7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?
Não acredito que as salas algum dia irão acabar. Desde que o
cinema foi inventado ele vem sofrendo uma espécie de ‘concorrência’ de outros meios.
Quando a televisão surgiu, postulou-se que o cinema ia acabar; quando o home vídeo
surgiu postulou-se que o cinema ia acabar; quando agora que tem o streaming se
fala muito que o cinema vai acabar, nos tempos pandêmicos que vivemos onde
muitos lançamentos estão sendo lançados via streaming sem lançamento na janela
cinema se fala muito que o cinema pode acabar. Mas eu acho que o cinema nunca
vai acabar. Talvez, fique mais polarizado. De um lado restrito a grandes
espetáculos, filmes que encontram o espaço no cinema. E no outro, sala pequenas
que se preocuparão com a arte do cinema e não só com a lucratividade.
8) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Essa é uma boa pergunta! Essa questão de acharmos que as
pessoas não viram os filmes é complicado parece que estamos falando a partir de
uma bolha mas uma bolha errada. Mas tem um filme que sempre recorro a ele: Amor à Flor da Pele do Wong Kar-Wai. Pra mim, um dos melhores
filmes feitos dos anos 2000 pra cá e eu acho que se a galera não viu, é uma
excelente pedida. Dentro dessa pergunta existe também alguns filmes nacionais
que foram poucos vistos e dentro desse sentido eu indicaria também O Corpo Ardente do Walter Hugo Khouri. Esse filme tem até uma cópia disponível no
youtube.
9) Você acha que as
salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?
Acho que as salas de cinema não devem abrir antes de termos
uma vacina da covid-19. Acho que saúde em primeiro lugar. Não podemos ficar
refém da lógica econômica do negócio e óbvio que eu me compadeço de toda uma
indústria que está parada. Eu como profissional da crítica de cinema também
sofro com essa situação pois temos toda uma cadeia de anunciantes que acabam
retraindo seus investimentos nesse momento. Mas eu acho que antes de tudo temos
que zelar pela segurança, não só a nossa mas a das pessoas que estão ao nosso
redor.
10) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
Acho incrível. Aliás acho como um todo incrível. Se a gente
for pensar na história do cinema brasileiro que é uma cinematografia de mortes
e ressurreições desde de 1986 até os dias de hoje: o cinema brasileiro é antes
de tudo um forte! Pegando emprestado essa frase. Na atualidade é um cinema
muito fértil de ideias, muito fértil de linguagem, um cinema em que estamos
evoluindo em algumas coisas. Talvez a palavra certa não seja evolução mas ganhando
novas camadas. Fora a questão industrial que ainda vamos sofrer muito por conta
desse desgoverno que entende a cultura e a qualquer pessoa que dela faz parte
como um inimigo ou inimiga, do ponto de vista do cinema propriamente dito nós
estamos muito bem obrigado! Não só cinema mas séries também! Tá na hora de
exterminamos essa ideia de cinema brasileiro ser ruim, como incapaz de fazer
certas coisas. Pra mim, o cinema brasileiro é um dos melhores do mundo!
11) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Jorge Furtado. Na
atuação, o Matheus Nachtergaele e Irandhir Santos são dois atores que me
chamam muito a atenção. Fernanda Torres,
Fernanda Montenegro, os filmes do
Kleber Mendonça Filho, do Karim
Ainouz, da Gabriela Amaral Almeida.
Tem muita gente nesse conjunto de artistas que eu tento não perder nenhuma
obra. Wagner Moura também.
12) Defina cinema com
uma frase:
O cinema é o lugar onde eu gosto de me perder para depois me
encontrar a partir dele ou com a ajuda dele. Cinema é porta, é janela, é espelho.
13) Conte uma
história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:
Eu já vi tanta coisa numa sala de cinema. Fora as chatices
de sempre: as pessoas contando coisas ou quase fazendo sexo. Uma história
inusitada, talvez, não tão inusitada... no Festival do RJ de 2018 fui assistir
ao filme O Morto não Fala do Dennison Ramalho aí um cara sentou do
meu lado, era ali no São Luiz no
Largo do Machado, e abriu uma caixa de pizza inteira e comeu a pizza toda do
meu lado. Fiquei com raiva não por ele tá comendo mas porque ele não me deu
nenhum pedaço.
14) Defina 'Cinderela
Baiana' em poucas palavras...
Tu acredita que eu não vi Cinderela Baiana? É uma mancha em meu currículo que pretendo limpar
em pouco tempo.
15) Muitos diretores
de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta
precisa ser cinéfilo?
Eu acredito que nada precisa. Eu já tive contato com obras
de diretores que são muito cinéfilos e os filmes são incríveis. Já tive contato
com obras de diretores que afirmam que assistem a poucos filmes e os filmes são
incríveis. Mas eu sempre tendo a achar um pouco estranho quando um cineasta ou
uma cineasta diz que não gosta de assistir a filmes. Existem casos excepcionais
em que a pessoa vai fazer um filme incrível sem ter uma base cinematográfica.
Mas acho que de alguma forma nos aproxima dessa experiência quando tem um
realizador ou realizadora que gosta de cinema, que eventualmente vai fazer suas
menções, suas alusões aos seus filmes favoritos. Ou seja, que vai também
utilizar o cinema como um motor. Eu tendo a simpatizar mais com realizadores ou
realizadoras que gostam também de cinema.