03/09/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #77 - Marcelo Muller


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

Nosso entrevistado é uma das pessoas de melhor texto sobre cinema no Brasil. Professor, jornalista, e crítico de cinema, Marcelo Muller é membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Ministra cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ e no Sesc/RJ. Suas aulas sempre são um espetáculo, como um combustível transparente de amor ao cinema. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017) e "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018). Além de tudo isso, ele é um dos editores do excelente site Papo de Cinema (https://www.papodecinema.com.br/).

Obs: Querido irmão cinéfilo, saudades de nossos papos presenciais, ou algum encontro rápido em Copacabana ou Niterói. Conversar com Marcelo sobre cinema é sempre enriquecedor, as vezes vale a pena até ter um caderninho por perto para anotar tantas referências e dicas que se multiplicam sobre o universo do cinema. Um dos textos que acompanho sempre, entro até nas lives do papo de cinema e mando mensagens!

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Aqui no RJ é a do Espaço Itaú em Botafogo. Pois tem uma programação diversificada, ali passa o tipo de filme que eu gosto de assistir, a sala é confortável, é próximo da minha casa. É um misto de tudo: programação que acho ótima, conforto e o entorno: a localização, que além de me facilitar, permite que a ida ao cinema se desdobre em outros programas.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

A minha cinefilia é uma cinefilia tardia. Não sou o tipo de cinéfilo que pode dizer que desde muito cedo atentou para o cinema. Eu sempre via muitos filmes, principalmente em casa, nós lá em casa demoramos muito para ter um vídeo cassete, também demoramos para ter dvd mas o filme que fez com que eu sentisse vontade de estudar mais cinema, frequentar cinema (pois eu sou de uma cidadezinha do Rio Grande do Sul chamada Caxias do Sul em que as alternativas de cinema eram muito poucas), o filme que mudou minha relação com o cinema foi O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel que fez com que eu fizesse atravessar a cidade (a ida para o cinema pra mim era isso, atravessar a cidade). A partir desse filme comecei a me aprofundar muito no cinema.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Isso muda todo dia. Mas hoje posso dizer que é o David Lynch e o meu filme favorito do Lynch é o meu filme favorito da vida...por enquanto (porque a gente sempre tá mudando rs) que é o Cidade dos Sonhos. Pra mim, esse é um filme muito especial por trabalhar com uma questão muito sensorial, por trabalhar com uma indeterminação que me agrada no cinema. Eu adoro o tipo de filme em que eu me perca no trajeto.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Deus e o Diabo na Terra do Sol. Sou um grande apreciador do cinema brasileiro. É um filme que conjunta algumas coisas que me agradam. É um primor técnico, embora algumas pessoas tendem em ficar falando de alguma precariedade. Talvez até exista mas ela é utilizada pelo Glauber Rocha como o ruído que se transforma em linguagem e acho que a gente tem muito do Brasil ali. A luta de classes, a religião, o capitalismo, as figuras míticas, Glauber Rocha conjugando o faroeste no terceiro mundo, utilizando alguns preceitos do cinema soviético, metendo um pouco de Akira Kurosawa. É um filme que acho incrível.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Ser cinéfilo é gostar de ter um modo de vida que de alguma forma é condicionado ou muito guiado pelo mundo do cinema, pelas possibilidades do cinema. Embora eu acredite que de uns tempos para cá, a cinefilia que é essa possibilidade de vivermos em torno do cinema nos alimentando do cinema, retroalimentando esse amor, a cinefilia tenha ficado um pouco desgastada pela ideia do cinéfilo chato, aquele que só quer ter razão, quer mostrar para os outros que sabe mais. Até porque a cinefilia, assim como qualquer outro conhecimento, denota uma espécie de poder e eu gosto de me afastar dessa realidade. Lógico que fico lisonjeado quando alguém me diz que me vê como uma referência pela minha profissão ou pelo que eu faço mas eu reluto essa ideia de influenciador, de influencer, em alguma questão. Eu entendo a cinefilia como uma coisa pura e mais profunda do que algo a mediar as relações que por ventura nós podemos ter com nossos pares.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Acho que a maior parte das salas de cinema que eu frequento, felizmente, são feitas por pessoas que tem algum olhar mais detido para cinema. Que compreendem um pouco melhor cinema. Mas se formos analisar o todo, fica muito a desejar essa relação. Acho que boa parte das pessoas que trabalham com cinema não tem essa devoção pelo cinema, não tem essa paixão pelo cinema e acho que isso faz toda a diferença.

 

7)  Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Não acredito que as salas algum dia irão acabar. Desde que o cinema foi inventado ele vem sofrendo uma espécie de ‘concorrência’ de outros meios. Quando a televisão surgiu, postulou-se que o cinema ia acabar; quando o home vídeo surgiu postulou-se que o cinema ia acabar; quando agora que tem o streaming se fala muito que o cinema vai acabar, nos tempos pandêmicos que vivemos onde muitos lançamentos estão sendo lançados via streaming sem lançamento na janela cinema se fala muito que o cinema pode acabar. Mas eu acho que o cinema nunca vai acabar. Talvez, fique mais polarizado. De um lado restrito a grandes espetáculos, filmes que encontram o espaço no cinema. E no outro, sala pequenas que se preocuparão com a arte do cinema e não só com a lucratividade.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Essa é uma boa pergunta! Essa questão de acharmos que as pessoas não viram os filmes é complicado parece que estamos falando a partir de uma bolha mas uma bolha errada. Mas tem um filme que sempre recorro a ele: Amor à Flor da Pele do Wong Kar-Wai. Pra mim, um dos melhores filmes feitos dos anos 2000 pra cá e eu acho que se a galera não viu, é uma excelente pedida. Dentro dessa pergunta existe também alguns filmes nacionais que foram poucos vistos e dentro desse sentido eu indicaria também O Corpo Ardente do Walter Hugo Khouri. Esse filme tem até uma cópia disponível no youtube.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Acho que as salas de cinema não devem abrir antes de termos uma vacina da covid-19. Acho que saúde em primeiro lugar. Não podemos ficar refém da lógica econômica do negócio e óbvio que eu me compadeço de toda uma indústria que está parada. Eu como profissional da crítica de cinema também sofro com essa situação pois temos toda uma cadeia de anunciantes que acabam retraindo seus investimentos nesse momento. Mas eu acho que antes de tudo temos que zelar pela segurança, não só a nossa mas a das pessoas que estão ao nosso redor.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Acho incrível. Aliás acho como um todo incrível. Se a gente for pensar na história do cinema brasileiro que é uma cinematografia de mortes e ressurreições desde de 1986 até os dias de hoje: o cinema brasileiro é antes de tudo um forte! Pegando emprestado essa frase. Na atualidade é um cinema muito fértil de ideias, muito fértil de linguagem, um cinema em que estamos evoluindo em algumas coisas. Talvez a palavra certa não seja evolução mas ganhando novas camadas. Fora a questão industrial que ainda vamos sofrer muito por conta desse desgoverno que entende a cultura e a qualquer pessoa que dela faz parte como um inimigo ou inimiga, do ponto de vista do cinema propriamente dito nós estamos muito bem obrigado! Não só cinema mas séries também! Tá na hora de exterminamos essa ideia de cinema brasileiro ser ruim, como incapaz de fazer certas coisas. Pra mim, o cinema brasileiro é um dos melhores do mundo!

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Jorge Furtado. Na atuação, o Matheus Nachtergaele e Irandhir Santos são dois atores que me chamam muito a atenção. Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, os filmes do Kleber Mendonça Filho, do Karim Ainouz, da Gabriela Amaral Almeida. Tem muita gente nesse conjunto de artistas que eu tento não perder nenhuma obra. Wagner Moura também.

 

12) Defina cinema com uma frase:

O cinema é o lugar onde eu gosto de me perder para depois me encontrar a partir dele ou com a ajuda dele. Cinema é porta, é janela, é espelho.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Eu já vi tanta coisa numa sala de cinema. Fora as chatices de sempre: as pessoas contando coisas ou quase fazendo sexo. Uma história inusitada, talvez, não tão inusitada... no Festival do RJ de 2018 fui assistir ao filme O Morto não Fala do Dennison Ramalho aí um cara sentou do meu lado, era ali no São Luiz no Largo do Machado, e abriu uma caixa de pizza inteira e comeu a pizza toda do meu lado. Fiquei com raiva não por ele tá comendo mas porque ele não me deu nenhum pedaço.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

Tu acredita que eu não vi Cinderela Baiana? É uma mancha em meu currículo que pretendo limpar em pouco tempo.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Eu acredito que nada precisa. Eu já tive contato com obras de diretores que são muito cinéfilos e os filmes são incríveis. Já tive contato com obras de diretores que afirmam que assistem a poucos filmes e os filmes são incríveis. Mas eu sempre tendo a achar um pouco estranho quando um cineasta ou uma cineasta diz que não gosta de assistir a filmes. Existem casos excepcionais em que a pessoa vai fazer um filme incrível sem ter uma base cinematográfica. Mas acho que de alguma forma nos aproxima dessa experiência quando tem um realizador ou realizadora que gosta de cinema, que eventualmente vai fazer suas menções, suas alusões aos seus filmes favoritos. Ou seja, que vai também utilizar o cinema como um motor. Eu tendo a simpatizar mais com realizadores ou realizadoras que gostam também de cinema.