08/11/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #169 - Francisco Russo


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, nascido no Rio de Janeiro. Francisco Russo é jornalista e crítico de cinema, com ampla experiência em gerenciamento de equipe, cobertura de eventos, realização de entrevistas e produção de conteúdo em texto e vídeo. Fundador do AdoroCinema, o maior site de cinema e séries da internet brasileira, do qual foi editor-chefe por 19 anos. Integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).

 

Obs: querido irmão cinéfilo Francisco. Uma das pessoas mais legais de conversar sobre cinema do universo audiovisual brasileiro. Um dos criadores do maior de todos os portais de cinema, referência durante anos para milhares de cinéfilos pelo Brasil, e mundo a fora. Em uma das minhas primeiras cabines, no Espaço Itaú na praia de Botafogo, a mais de uma década atrás foi a primeira vez que falei com ele (nessa época eu nem sabia que ele era um dos criadores do Adorocinema). Sempre escutei palavras positivas dele e várias vezes foi ao Joia debater sobre os filmes em cartaz. Querido cinéfilo Francisco, continue sendo esse cara sensacional, criativo e querido por todos nós que amamos cinema. Em breve tomaremos aquele chopp e falaremos muito de cinema aí na Europa!

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Irei responder em relação ao Rio de Janeiro, cidade em que nasci e morei até janeiro deste ano. Das que estão em atividade, é impossível não destacar o Estação Botafogo, por motivos afetivos. Seja pela programação, pelo charme da ambientação, o corredor, o painel com Oscarito e Grande Othelo, as espreguiçadeiras perto da tela, a antiga locadora... Muito da minha cinefilia se formou ali, nas tantas descobertas que fiz. Gosto muito também do Odeon, mas por outros motivos: é o único remanescente das grandes salas de cinema que um dia existiram no Rio. Adoro o lustre central, o 2º andar, a tela gigante, a cortina abrindo, o gongo, ah o gongo! E melhorou bastante em relação a conforto, desde a última reforma. Pena que a programação já há algum tempo tenha se voltado para o circuitão básico, na época em que o cinema era administrado pelo Estação era bem mais interessante.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Não lembro qual foi o primeiro filme que vi, mas minha primeira experiência marcante não foi em um cinema e sim com fitas VHS. Era criança, devia ter uns 8 anos, e passei as férias de julho na casa de tios em Juiz de Fora. Não havia absolutamente nada a fazer e, para piorar, chovia sem parar. De tanto reclamar, um dia meu tio trouxe um filme de uma locadora: era um 007 estrelado pelo Sean Connery, não lembro qual. Vi e amei. No dia seguinte ele trouxe outro James Bond, também do Sean Connery - não por acaso, ele sempre foi meu 007 favorito! Foram duas semanas onde conheci Indiana Jones, a trilogia original de Star Wars, De Volta para o Futuro e tantos outros que me marcaram tanto. Este período é o que chamo de marco zero da minha cinefilia.

 

Quando retornei ao Rio, após estas férias, minha mãe passou a me levar ao cinema com frequência. Sempre às quartas, quando ela não trabalhava à tarde, sempre nas salas da Tijuca. Ali sim me apaixonei pela ida ao cinema, o melhor lugar existente para ver qualquer filme, seja lá de qual gênero for. Várias vezes fui ver algo mais pela sala do que propriamente pelo filme em si - se ele fosse bom melhor ainda, mas estar lá já era suficiente.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Billy Wilder, gênio absoluto que nos brindou com A Montanha dos Sete Abutres, Quanto Mais Quente Melhor, Se Meu Apartamento Falasse, Irma La Douce, A Primeira Página, Pacto de Sangue e sua obra-prima, Crepúsculo dos Deuses.

 

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Difícil escolher apenas um. Tenho um fascínio por Pra Frente Brasil devido à força de sua denúncia à ditadura feita em plena ditadura militar. É daqueles casos em que o entorno dos bastidores potencializa o que se vê em cena - mas não seria o melhor, com certeza. Batismo de Sangue é um filme que me deixou completamente arrasado após a sessão, lembro que fiquei aéreo, refletindo sobre o que tinha visto, por um bom tempo. Tenho um carinho nostálgico imenso por Os Saltimbancos Trapalhões, a sessão de Lavoura Arcaica no Festival do Rio foi inesquecível. Tenho vários filmes assim, que me marcaram de diferentes formas, sem que haja um favorito absoluto.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Ser cinéfilo é saber garimpar, e abrir um baita sorriso ao descobrir uma pepita de ouro. É claro que os filmes mais badalados devem também ser vistos, mas o prazer da descoberta é recompensador, mesmo quando se precisa ver dezenas de filmes para encontrar aquele que te conquista. Também por isso o Festival do Rio foi tão importante na minha vida, era a chance de mergulhar fundo em busca do que não era acessível, ao menos não para mim.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Já há um bom tempo o cinema virou negócio, a escolha do que estreia ou permanece em cartaz tem muito mais a ver com números do que qualquer outra coisa. E isso não é propriamente demérito, ter estas informações é essencial para a continuidade do negócio em si - e, por mais que se ame o cinema, as contas precisam fechar para que a sala siga em frente. Só que não deveria ser apenas isto. Quando se vê o Estação Botafogo exibindo Vingadores: Ultimato, pode-se até ganhar um pouco mais de dinheiro na bilheteria, mas, ao mesmo tempo, atinge em cheio o coração de uma marca estabelecida por décadas. Fechar os olhos para isto é o mesmo que dar um tiro no pé.

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Não, porque sempre haverá quem queira viver a experiência de estar em uma sala escura. Mas acredito que irá mudar bastante, ainda mais devido à pandemia. O circuito tende a diminuir consideravelmente, não só no Brasil mas em todos os países.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Vou citar um filme recente, até indicado ao Oscar, mas pouco visto: Minha Vida de Abobrinha. Lindo demais!

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Sim, desde que respeitem as normas de segurança estabelecidas pelo governo. Entretanto, a meu ver, o risco maior não está na sala em si, mas no comportamento do público. Nem o melhor dos protocolos será suficiente se as pessoas não se mantiverem de máscara durante a sessão ou cumprirem o distanciamento social.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

Excelente. O cinema brasileiro contemporâneo alcançou uma pluralidade rara de ser vista em qualquer filmografia, tanto em temas quanto em gêneros. Não por acaso, tem sido tão requisitado pelos festivais mundo afora. O problema, como sempre, é fazer com que estes filmes sejam vistos pelo público. Sei de muitos casos de filmes que não foram bem nas salas e, ao serem exibidos na Rede Globo, tiveram picos de audiência. Lembro sempre de uma fala do Jeferson De no Festival de Gramado 2010, que tinha feito Bróder com a Globo Filmes porque sabia que seu filme teria um público pequeno no cinema e que ao menos seria descoberto quando passasse na Semana do Cinema Nacional - ou algo parecido -, que a Globo fazia todo início de ano. Infelizmente, uma década se passou e a situação é exatamente a mesma. Mas não é novidade, mesmo o Cinema Novo teve dificuldade de chegar ao público em sua época.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Jorge Furtado, que deveria ser mais valorizado.

 

12) Defina cinema com uma frase:

"Você se lembra como se sentia sortudo em apenas estar aqui, tendo o privilégio de vê-los? Esta coisa da televisão, por que ficar em casa diante de uma caixa? Porque é conveniente, não precisa se arrumar, sentar aqui? O que há de entretenimento em estar sozinho em uma sala? Onde estão as outras pessoas, onde está a audiência? Onde está a magia?"

 

Esta é uma citação a Cine Majestic, que me deixa arrepiado sempre que a vejo. É exatamente como penso. Ver filmes é uma coisa, ir ao cinema é completamente diferente.

https://www.youtube.com/watch?v=UYjGew4NSD0

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema.

Foram tantas... Vou contar duas, uma que presenciei e outra que ouvi, ambas em Festivais do Rio.

A que vi aconteceu no saudoso Estação Paissandu, que exibiria a primeira sessão no Brasil de O Pianista, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano. O cinema, claro, estava abarrotado, em uma época em que não havia ingresso reservado. Estava lá na frente, na 3ª fileira, e logo na minha diagonal na fileira da frente sentou uma mulher com o cabelo gigantesco, estilo Marge Simpson. O Paissandu, quem foi sabe bem, não tinha cadeiras no formato stadium e abaixo da tela ainda havia o painel das legendas eletrônicas. Resumo da ópera: o filme começou e é claro que o cabelo daquela mulher impedia que muita gente lesse as legendas. A reclamação foi tanta que o filme teve que ser interrompido após alguns minutos e um funcionário foi falar com ela, que se recusou a trocar de lugar. Ele explicou a situação ao público, que começou a vaiá-la sem parar. O filme voltou e, nas fileiras atrás dela, abriu-se um enorme vazio: quem estava ali sentado foi para o corredor e viu o filme do chão mesmo. Encerrada a sessão, quando ela se levantou para ir embora foi acompanhada por outra sonora vaia.

 

A história a seguir me foi contada pelo Breno Lira Gomes e é daquelas que lamento imensamente não ter presenciado! Sessão de Caché à meia-noite no Odeon, que, é claro, atrasou. O filme começa uns 15 minutos após o horário previsto e o público começa a reclamar: "está sem som!". Os protestos ficam cada vez mais constantes, até que o visto em cena "rebobina" e o público começa a vibrar e aplaudir por ter o desejo atendido. Minutos depois, percebe-se que era uma sequência do próprio filme, de quando a casa da Juliette Binoche estava sendo gravada por uma filmadora portátil. Não ter som era proposital e o rebobinar fazia parte da narrativa. Silêncio sepulcral!

 

14) Você foi um dos criadores do maior portal de cinema do Brasil, o AdoroCinema. Conte como você teve a ideia desse site e se sente saudades dos amigos que trabalharam lá com você.

O AdoroCinema nasceu como hobby, fruto da cinefilia e de uma internet ainda com pouquíssimas informações sobre filmes em língua portuguesa. Estávamos em 2000, era uma internet muito diferente da atual, o YouTube sequer existia! A ideia de criar um site nasceu após o 1ª Festival do Rio, onde pela 1ª vez tive acesso a Almodóvar, Altman, Kitano e vários cineastas até então desconhecidos para mim. Ao buscar informações sobre os filmes deles, surgiu a ideia. O site foi criado com mais dois amigos, era todo em HTML e levou três meses até que o acervo inicial ficasse pronto: 100 fichas de filmes, em torno de 250 de atores, ainda não se falava de séries ou diretores. Tudo feito na base de muita pesquisa.

 

O tempo passou, o AdoroCinema teve diversos altos e baixos até ser vendido em 2008. Começou então o que chamo da fase de profissionalização do site, especialmente quando o Allociné o assumiu, em 2011. Aos poucos foi sendo formada uma equipe tão dedicada quanto brilhante, que soube agarrar as oportunidades que teve para criar um site absolutamente plural, que abordava de tudo um pouco nos universos de cinema e séries. AdoroCinema em todo lugar, costumava dizer.


Se sinto falta da equipe? Claro! Vários deles se tornaram amigos pessoais, com quem mantenho contato até hoje, ausente do site há mais de um ano. Havia ali uma rara cumplicidade aliada a um tesão incomparável em fazer acontecer, mesmo que enfrentássemos problemas ou não tivéssemos os recursos desejados. A Era de Ouro, como o Rodrigo Torres gosta de chamar, foi inesquecível e de um aprendizado imenso, para todos que puderam vivenciá-la. Isto não se apaga.