O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, nascido no Rio de
Janeiro. Francisco Russo é jornalista
e crítico de cinema, com ampla experiência em gerenciamento de equipe, cobertura
de eventos, realização de entrevistas e produção de conteúdo em texto e vídeo.
Fundador do AdoroCinema, o maior
site de cinema e séries da internet brasileira, do qual foi editor-chefe por 19
anos. Integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e
da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).
Obs: querido irmão cinéfilo Francisco. Uma das pessoas mais
legais de conversar sobre cinema do universo audiovisual brasileiro. Um dos
criadores do maior de todos os portais de cinema, referência durante anos para
milhares de cinéfilos pelo Brasil, e mundo a fora. Em uma das minhas primeiras
cabines, no Espaço Itaú na praia de Botafogo, a mais de uma década atrás foi a
primeira vez que falei com ele (nessa época eu nem sabia que ele era um dos
criadores do Adorocinema). Sempre escutei palavras positivas dele e várias
vezes foi ao Joia debater sobre os filmes em cartaz. Querido cinéfilo
Francisco, continue sendo esse cara sensacional, criativo e querido por todos
nós que amamos cinema. Em breve tomaremos aquele chopp e falaremos muito de
cinema aí na Europa!
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da
escolha.
Irei responder em relação ao Rio de Janeiro, cidade em que
nasci e morei até janeiro deste ano. Das que estão em atividade, é impossível
não destacar o Estação Botafogo, por
motivos afetivos. Seja pela programação, pelo charme da ambientação, o
corredor, o painel com Oscarito e Grande Othelo, as espreguiçadeiras
perto da tela, a antiga locadora... Muito da minha cinefilia se formou ali, nas
tantas descobertas que fiz. Gosto muito também do Odeon, mas por outros motivos: é o único remanescente das grandes
salas de cinema que um dia existiram no Rio. Adoro o lustre central, o 2º
andar, a tela gigante, a cortina abrindo, o gongo, ah o gongo! E melhorou
bastante em relação a conforto, desde a última reforma. Pena que a programação
já há algum tempo tenha se voltado para o circuitão básico, na época em que o
cinema era administrado pelo Estação
era bem mais interessante.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
Não lembro qual foi o primeiro filme que vi, mas minha
primeira experiência marcante não foi em um cinema e sim com fitas VHS. Era
criança, devia ter uns 8 anos, e passei as férias de julho na casa de tios em
Juiz de Fora. Não havia absolutamente nada a fazer e, para piorar, chovia sem
parar. De tanto reclamar, um dia meu tio trouxe um filme de uma locadora: era um
007 estrelado pelo Sean Connery, não lembro qual. Vi e
amei. No dia seguinte ele trouxe outro James Bond, também do Sean Connery - não por acaso, ele
sempre foi meu 007 favorito! Foram duas semanas onde conheci Indiana Jones, a trilogia original de Star Wars, De Volta para o Futuro e
tantos outros que me marcaram tanto. Este período é o que chamo de marco zero
da minha cinefilia.
Quando retornei ao Rio, após estas férias, minha mãe passou
a me levar ao cinema com frequência. Sempre às quartas, quando ela não
trabalhava à tarde, sempre nas salas da Tijuca. Ali sim me apaixonei pela ida
ao cinema, o melhor lugar existente para ver qualquer filme, seja lá de qual
gênero for. Várias vezes fui ver algo mais pela sala do que propriamente pelo
filme em si - se ele fosse bom melhor ainda, mas estar lá já era suficiente.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
Billy Wilder,
gênio absoluto que nos brindou com A
Montanha dos Sete Abutres, Quanto Mais Quente Melhor, Se Meu Apartamento
Falasse, Irma La Douce, A Primeira Página, Pacto de Sangue e sua
obra-prima, Crepúsculo dos Deuses.
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Difícil escolher apenas um. Tenho um fascínio por Pra Frente Brasil devido à força de sua
denúncia à ditadura feita em plena ditadura militar. É daqueles casos em que o
entorno dos bastidores potencializa o que se vê em cena - mas não seria o
melhor, com certeza. Batismo de Sangue é
um filme que me deixou completamente arrasado após a sessão, lembro que fiquei
aéreo, refletindo sobre o que tinha visto, por um bom tempo. Tenho um carinho
nostálgico imenso por Os Saltimbancos
Trapalhões, a sessão de Lavoura
Arcaica no Festival do Rio foi
inesquecível. Tenho vários filmes assim, que me marcaram de diferentes formas,
sem que haja um favorito absoluto.
5) O que é ser
cinéfilo para você?
Ser cinéfilo é saber garimpar, e abrir um baita sorriso ao
descobrir uma pepita de ouro. É claro que os filmes mais badalados devem também
ser vistos, mas o prazer da descoberta é recompensador, mesmo quando se precisa
ver dezenas de filmes para encontrar aquele que te conquista. Também por isso o
Festival do Rio foi tão importante
na minha vida, era a chance de mergulhar fundo em busca do que não era
acessível, ao menos não para mim.
6) Você acredita que
a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas
que entendem de cinema?
Já há um bom tempo o cinema virou negócio, a escolha do que
estreia ou permanece em cartaz tem muito mais a ver com números do que qualquer
outra coisa. E isso não é propriamente demérito, ter estas informações é
essencial para a continuidade do negócio em si - e, por mais que se ame o
cinema, as contas precisam fechar para que a sala siga em frente. Só que não
deveria ser apenas isto. Quando se vê o Estação
Botafogo exibindo Vingadores:
Ultimato, pode-se até ganhar um pouco mais de dinheiro na bilheteria, mas,
ao mesmo tempo, atinge em cheio o coração de uma marca estabelecida por
décadas. Fechar os olhos para isto é o mesmo que dar um tiro no pé.
7) Algum dia as salas
de cinema vão acabar?
Não, porque sempre haverá quem queira viver a experiência de
estar em uma sala escura. Mas acredito que irá mudar bastante, ainda mais
devido à pandemia. O circuito tende a diminuir consideravelmente, não só no
Brasil mas em todos os países.
8) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Vou citar um filme recente, até indicado ao Oscar, mas pouco
visto: Minha Vida de Abobrinha.
Lindo demais!
9) Você acha que as
salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?
Sim, desde que respeitem as normas de segurança
estabelecidas pelo governo. Entretanto, a meu ver, o risco maior não está na
sala em si, mas no comportamento do público. Nem o melhor dos protocolos será
suficiente se as pessoas não se mantiverem de máscara durante a sessão ou
cumprirem o distanciamento social.
10) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
Excelente. O cinema brasileiro contemporâneo alcançou uma
pluralidade rara de ser vista em qualquer filmografia, tanto em temas quanto em
gêneros. Não por acaso, tem sido tão requisitado pelos festivais mundo afora. O
problema, como sempre, é fazer com que estes filmes sejam vistos pelo público.
Sei de muitos casos de filmes que não foram bem nas salas e, ao serem exibidos
na Rede Globo, tiveram picos de
audiência. Lembro sempre de uma fala do Jeferson
De no Festival de Gramado 2010,
que tinha feito Bróder com a Globo Filmes porque sabia que seu filme
teria um público pequeno no cinema e que ao menos seria descoberto quando
passasse na Semana do Cinema Nacional - ou algo parecido -, que a Globo fazia
todo início de ano. Infelizmente, uma década se passou e a situação é
exatamente a mesma. Mas não é novidade, mesmo o Cinema Novo teve dificuldade de chegar ao público em sua época.
11) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Jorge Furtado, que
deveria ser mais valorizado.
12) Defina cinema com
uma frase:
"Você se lembra como se sentia sortudo em apenas estar
aqui, tendo o privilégio de vê-los? Esta coisa da televisão, por que ficar em
casa diante de uma caixa? Porque é conveniente, não precisa se arrumar, sentar
aqui? O que há de entretenimento em estar sozinho em uma sala? Onde estão as
outras pessoas, onde está a audiência? Onde está a magia?"
Esta é uma citação a Cine
Majestic, que me deixa arrepiado sempre que a vejo. É exatamente como
penso. Ver filmes é uma coisa, ir ao cinema é completamente diferente.
https://www.youtube.com/watch?v=UYjGew4NSD0
13) Conte uma
história inusitada que você presenciou numa sala de cinema.
Foram tantas... Vou contar duas, uma que presenciei e outra
que ouvi, ambas em Festivais do Rio.
A que vi aconteceu no saudoso Estação Paissandu, que exibiria a primeira sessão no Brasil de O Pianista, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano. O cinema, claro, estava abarrotado,
em uma época em que não havia ingresso reservado. Estava lá na frente, na 3ª
fileira, e logo na minha diagonal na fileira da frente sentou uma mulher com o
cabelo gigantesco, estilo Marge Simpson. O Paissandu,
quem foi sabe bem, não tinha cadeiras no formato stadium e abaixo da tela ainda
havia o painel das legendas eletrônicas. Resumo da ópera: o filme começou e é
claro que o cabelo daquela mulher impedia que muita gente lesse as legendas. A
reclamação foi tanta que o filme teve que ser interrompido após alguns minutos
e um funcionário foi falar com ela, que se recusou a trocar de lugar. Ele
explicou a situação ao público, que começou a vaiá-la sem parar. O filme voltou
e, nas fileiras atrás dela, abriu-se um enorme vazio: quem estava ali sentado
foi para o corredor e viu o filme do chão mesmo. Encerrada a sessão, quando ela
se levantou para ir embora foi acompanhada por outra sonora vaia.
A história a seguir me foi contada pelo Breno Lira Gomes e é daquelas que lamento imensamente não ter
presenciado! Sessão de Caché à
meia-noite no Odeon, que, é claro,
atrasou. O filme começa uns 15 minutos após o horário previsto e o público
começa a reclamar: "está sem som!". Os protestos ficam cada vez mais
constantes, até que o visto em cena "rebobina" e o público começa a
vibrar e aplaudir por ter o desejo atendido. Minutos depois, percebe-se que era
uma sequência do próprio filme, de quando a casa da Juliette Binoche estava sendo gravada por uma filmadora
portátil. Não ter som era proposital e o rebobinar fazia parte da narrativa.
Silêncio sepulcral!
14) Você foi um dos
criadores do maior portal de cinema do Brasil, o AdoroCinema. Conte como você
teve a ideia desse site e se sente saudades dos amigos que trabalharam lá com
você.
O AdoroCinema nasceu
como hobby, fruto da cinefilia e de uma internet ainda com pouquíssimas
informações sobre filmes em língua portuguesa. Estávamos em 2000, era uma internet
muito diferente da atual, o YouTube
sequer existia! A ideia de criar um site nasceu após o 1ª Festival do Rio, onde
pela 1ª vez tive acesso a Almodóvar,
Altman, Kitano e vários cineastas até então desconhecidos para mim. Ao
buscar informações sobre os filmes deles, surgiu a ideia. O site foi criado com
mais dois amigos, era todo em HTML e levou três meses até que o acervo inicial
ficasse pronto: 100 fichas de filmes, em torno de 250 de atores, ainda não se
falava de séries ou diretores. Tudo feito na base de muita pesquisa.
O tempo passou, o AdoroCinema
teve diversos altos e baixos até ser vendido em 2008. Começou então o que chamo
da fase de profissionalização do site, especialmente quando o Allociné o assumiu, em 2011. Aos poucos
foi sendo formada uma equipe tão dedicada quanto brilhante, que soube agarrar
as oportunidades que teve para criar um site absolutamente plural, que abordava
de tudo um pouco nos universos de cinema e séries. AdoroCinema em todo lugar, costumava dizer.
Se sinto falta da equipe? Claro! Vários deles se tornaram
amigos pessoais, com quem mantenho contato até hoje, ausente do site há mais de
um ano. Havia ali uma rara cumplicidade aliada a um tesão incomparável em fazer
acontecer, mesmo que enfrentássemos problemas ou não tivéssemos os recursos
desejados. A Era de Ouro, como o Rodrigo
Torres gosta de chamar, foi inesquecível e de um aprendizado imenso, para
todos que puderam vivenciá-la. Isto não se apaga.