30/03/2021

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #346 - Sonia Rocha


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nossa entrevistada de hoje é cinéfila, de Porto Alegre. Sonia Rocha tem 50 anos, é carioca residente em Porto Alegre, professora de Filosofia e crítica cinematográfica. Mestre em Educação com ênfase em cinema (UERJ), doutoranda em Educação e Cinema (UFRGS). Foi colaboradora nos veículos Almanaque Virtual, IGGY, Telezoom TV e, atualmente, é editora o site Cinema & Movimento onde também escreve críticas e análises de filmes.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

São várias as salas de cinema em Porto Alegre com qualidade de programação e exibição. Logo, seria uma injustiça citar apenas uma. O capitólio é um centro cultural que abriga uma das melhores programações de cinema da cidade, sempre trazendo festivais de filmes de países de fora do ‘circuitão’ internacional como os de países africanos, da índia, da Líbia etc. O CineBancários que só exibe cinema nacional, a Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana, reduto de cinéfilos com palestras, exibições, debates com diretores e atividades afins. Mas, o “crème de la crème” em minha opinião é Guion Cinemas pois exibe filmes de arte ou filme de autor, como queiramos chamar, que estão estreando no circuito. Cito como preferência porque me remete ao Grupo Estação no Rio. Tem a mesma vibe, a mesma pegada, exibe os mesmos filmes e me faz sentir em Botafogo, de vez em quando.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Esse é confissão de idade... O primeiro filme no cinema nem sempre é aquele filmaço no que diz respeito aos aspectos técnicos. Mas, é o primeiro filme...no meu caso foi Gremlins (1984) do Joe Dante. Era adolescente, nunca tinha visto uma tela tão grande, ouvido um som tão intenso e sentido o que é a egrégora energética de muitas pessoas vibrando na mesma sintonia. Foi uma experiência apaixonante e apavorante. Ver aqueles bichinhos lindinhos e fofinhos se transformarem naqueles monstros horrendos depois de um banho mexeu comigo. Hoje com o approach da Filosofia isso seria um argumento e tanto para pensar a dualidade humana. Mas, cada coisa a seu tempo.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Essa é injusta... cinéfilo que se preze é volúvel gosta de uns caras que ninguém conhece e que têm estilos completamente diferentes, E eu não fujo à regra. Mas falar de um só é muito difícil.... Tenho uma relação de amor e ódio com o dinamarquês Lars Von Trier, curto a abordagem da escocesa Lynne Ramsay, a faca afiada do russo Andrey Zvyaintsev, e me descubro apaixonada pelo Kleber Mendonça Filho.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Preferência é uma coisa que não tem, necessariamente, explicação. E no caso do crítico de cinema isso chega a ser até um pecado, de tanto que trabalhamos o aspecto da ‘isenção’ até onde é possível. Contudo, como espectadora, apesar de tantos filmes nacionais maravilhosos realizados nas últimas duas décadas eu fico com Estômago (2007) de Marcos Jorge, porque a abordagem do filme me surpreendeu, as atuações são espetaculares, principalmente a de João Miguel, que tem se mostrado um monstro sagrado.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

O sufixo “Philia” tirado de uma obra de Aristóteles nos remete a ‘amizade’, ‘amor’ ‘afeto’ (contextualizando com o nosso assunto, porque na obra referida o âmbito era outro). Inserindo-o no meu cotidiano, na minha prática de pesquisas com cinema e relação de espectadora, para mim cinefilía/ser cinéfilo é quase que um exercício de devoção. Uma relação de profundo envolvimento, respeito, sentimento de pertencimento, mergulho e, até, de adoração.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Essa pergunta é pertencente à prática comercial do cinema, e confesso que não tenho um conhecimento procedente sobre o assunto.

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Bah! perguntinha dolorosa.... Não exatamente, mas creio que não o será como conhecemos hoje, e me explico: independente do momento sanitário que vivemos hoje, silenciosamente, já havia um movimento que facilitava o acesso do espectador a filmes de qualidade, com a segurança de suas casas, com uma economia de recursos (como o jantar após o cinema, o combustível, o estacionamento). Economicamente esse processo de esvaziamento da sala escura já estava em processo lento. A aceitação de filmes de TV de uma plataforma streaming em festivais de CINEMA, deu uma guinada, por dentro, nesse processo. Em 2015 “Beasts of No Nation de Cari Joji Fukunaga, foi selecionado e premiado no Festival de Veneza. Em 2017 foi a vez de Okja de Bong Joon Ho, selecionado para o festival de cinema de Cannes, inclusive concorrendo à Palma De Ouro. Esta ultrapassagem de fronteira conceitual é um adendo importante para colocar nessa conta. Depois vieram outros filmes e outros festivais de cinema selecionando e indicando para prêmios de cinema filmes feitos para a TV. Hoje, somente uma das plataformas streaming está com 35 produções indicadas ao Oscar. Esses pequenos detalhes, cujos passos não nos damos conta e cujas consequências não enxergamos, à longo prazo, contribuem para uma transição silenciosa do cinema para o streaming, com nossas TVs cada vez maiores e mais tecnológicas. A pandemia, só veio jogar a pá de cal na situação. Dentro do nosso modo de produção é inviável se manter as despesas de uma sala física sem um retorno, e o tempo que isto está levando vai acirrando uma crise financeira no setor, condicionando o espectador a exercitar esse entretenimento em casa, inclusive devido as consequências econômicas para o próprio espectador. Numa crise, os primeiros artigos a serem cortados são os ‘supérfluos’ e vivemos numa sociedade em que cultura é um artigo supérfluo. Outro fator, muito importante, que indica essa transição são as grandes produtoras de cinema como a Disney, a Warner, a Paramount etc. estarem criando suas próprias plataformas digitais. É triste, mas só não enxerga quem não quer. Se alguns paradigmas, independente do âmbito na sociedade, ao longo da história,  não tivessem sido quebrados não estaríamos onde estamos em relação ao desenvolvimento de muitos aspectos de nossas vidas, logo, é mal necessário. Não que eu defenda o caso, mas aceito. Sobre o nosso sofrimento com esse processo, é natural. Toda geração de qualquer tempo de transição sofre, luta e resiste. O que creio que será mantido são os clubes de cinema, num movimento vintage com salas de exibição ‘gourmets’ para não deixar a chama da experiência se apagar. Mas, cinema como conhecemos hoje, creio que daqui há algum tempo já não teremos mais, infelizmente.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

K-Pax (2001) de Iain Softley.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Não. A vida se impõe acima de tudo. O que estamos vivendo, da forma que estamos vivendo é algo sem precedentes. Mesmo tendo registros de outras pandemias na História da humanidade, pela nossa globalização o que está nos acontecendo é uma coisa muito séria. Depois que tudo passar a gente junta os cacos, se fortalece e vê o que faz. Agora está na hora de nos voltarmos para dentro, curtirmos o audiovisual em nossas casas, pois a cultura nos salva da vida e de nós mesmos. Depois a gente vê como fica.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O cinema brasileiro tem adquirido uma qualidade tecnológica e artística nas duas últimas décadas que é para ser aplaudida de pé. A questão é que a cultura precisa de fomento e no momento político em que estamos esse quesito está impedido, infelizmente. Mas, veja como temos garra, aos trancos e barrancos saiu Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho, Babenco (2019) de Bárbara Paz e tantos outros documentários que vimos na edição de 2020 do É Tudo Verdade. Mas, sabemos que nem só de vontade se vive e sem fomento a qualidade tende a cair. Essa é minha visão sobre a questão no momento.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Irandhir Santos.

 

12) Defina cinema com uma frase:

O cinema é uma experiência.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Estava eu em uma sessão de cinema matinê em um bairro popular do Rio, assistindo à primeira sessão de filme blockbuster, não tão bem cotado, sobre o qual eu iria fazer a crítica. Para melhor analisar os filmes fico sempre na última fileira e no meio para ter uma visão mais ampla. Ao terminar o filme sempre fico até o final dos créditos finais. Qual não foi minha surpresa que uma outra pessoa lá frente ficou também. (isto não é tão comum, mesmo entre os críticos). Achei legal. Veio o ‘lanterninha’’ e disse para a pessoa que o filme já tinha terminado, a pessoa continuou lendo os créditos. O rapaz insistiu dizendo que não tinha cenas finais. O rapaz respondeu ao lanterninha’.... Mas, eu sei ler...e o clima pesou. Bem, antes que o ‘lanterninha’ viesse para mim estragasse a minha experiência, que já não tinha sido tão boa, saí à francesa. O filme não era lá essas coisas e não faria muita diferença ler os créditos finais. Mas foi uma das poucas vezes que não o fiz, por causa dos outros e num filme mais ou menos. Me marcou por isso. Ficou faltando alguma coisa na minha ‘liturgia’ cinéfila naquele dia.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

Desnecessário... Pronto falei!!... Mas, Perry Salles salvou a lavoura.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Não. Nunca nos esqueçamos que cinema é um produto. Uma coisa é a atividade profissional da produção de um ‘produto’ outra é a forma com a qual você escolhe curtir/consumir aquele ‘produto’. 

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida? 

Interessante, eu não tenho um filme que eu tenha achado o pior filme que eu já tenha assistido ou o pior filme da minha vida. Tenho um princípio comigo: não sou cineasta. Então, por mais que eu estude para entender os processos semióticos, os de produção de sentidos etc. Eu não tenho como qualificar alguma coisa que não domino, como pior. E como disse anteriormente, procuro domar o meu capricho/gosto. Acho que tem sempre alguma coisa que não alcancei e que se tivesse alcançado a experiência teria sido melhor. E sempre tem alguma coisa que eu gosto, seja a fotografia, o roteiro, uma atuação...então, evito o juízo de valor e fico com o que gosto. Logo, não lembro mesmo de nenhum filme que tenha me causado essa sensação.... a de ser o pior.

 

17) Qual seu documentário preferido? 

Sou muito fã de documentários e seria muito difícil escolher algum antigo ou clássico. Gosto muito do documentarista chileno Patrício Guzman. Mas, vou ficar com o mais recente, o da Romênia Collective de Alexander Nanau, que está concorrendo ao Oscar 2021. O longa é uma saga jornalística impecável.

 

18) Você já bateu palmas para um filme ao final de uma sessão? 

Sim, Whiplash (2014) de Damien Chazelle. Aquela bateria elevou os meus níveis de endorfina.

 

19) Qual o melhor filme com Nicolas Cage que você viu? 

Ooops!... Gostei de Senhor das Armas (2005) de Andrew Niccol.

 

20) Qual site de cinema você mais lê pela internet?

Costumo ler Omelete, Adoro Cinema, Filme B e Observatório do cinema.