O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, de Pelotas (Rio Grande
do Sul). Rubens Anzolin tem 21 anos,
é curador e programador do Zero4 Cineclube. Fez também curadoria da Mostra
Audiovisual em Curso 2019 - Sessão Paralela do Cine Esquema Novo. É produtor e
diretor-artístico do Levante - Festival de Curtas-Metragens de Pelotas. Tem passagem
por publicações como Cine Festivais, Zagaia em Revista, Mnemocine e Revista Rocinante.
Edita o blog materiaprimacinema.com e é membro da Associação de Críticos de Cinema
do Rio Grande do Sul (ACCIRS).
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe oporquê da
escolha.
Cine UFPel, com
certeza. É a única sala com programação alternativa em Pelotas, que“compete”
contra duas salas de shopping, do tipo multiplex. Uma delas tem um público mais
família, infantil, ingresso relativamente barato e muito filme dublado. A outra
é sala de shopping mesmo, onde chegam a maior parte das estreias. Costumo
consumir bastante todas elas, mas de longe a do Cine UFPel tem a programação
mais alternativa. Cinema brasileiro, cinema alternativo, latino-americano,
curtas-metragens. Sem contar que é a sala em que eu trabalho, programando
filmes no Zero4 Cineclube. Mas isso não pesa tanto na escolha, é muito mais
pelo fato de você ter um espaço para oxigenar o pensamento sobre cinema que não
visa diretamente o lucro. Os ingressos são gratuitos, é o único lugar da cidade
em que você pode ver, na mesma semana, uma estreia brasileira, uma sessão Sesc de
cinema e um filme de Straub-Huillet,
por exemplo, sem gastar um centavo.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
Tem algumas sessões que mudam minha vida. O Pântano, de Lucrecia, em um junho
muito frio de Pelotas, na madrugada de segunda para terça-feira, preparação
para a estreia de Zama no dia
seguinte. A Vizinhança do Tigre,
nesse mesmo sentido e no mesmo local (meu quarto em uma pensão), com o mesmo
frio de rachar os dentes. Gerry, do Gus Van Sant, em uma sessão no Cine
UFPel, em uma tarde modorrenta de segunda-feira. O Vício, de Ferrara, numa madrugada melancólica antes de pegar um ônibus
de 7h de volta para casa. Essas são as que mais mexeram com o meu entendimento
do que poderia ser o cinema, ainda bem jovem. Dessas últimas, que muda a vida,
acho que Gente da Sicília, dos
Straub, que programei com meus colegas no Cine UFPel para uma meia dúzia de
gato pingado no último dia de aula de 2019. Filmes que ficam. Talvez todos
daquela programação tenham a mesma sensação. Conhecendo o Grande e Vasto Mundo,
os curtas de Maya Deren, News From Home,
da Chantal, depois de ter encarado três horas de O Irlandês e minutos antes de tomar um tombo federal andando de
bicicleta a noite. Filmes que me mudaram, definitivamente.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
Já escrevi essa resposta umas vinte vezes. Se me perguntar
quem é o maior cineasta vivo, te respondo Godard.
Quando ele morrer, direi que ele é o maior cineasta morto. Ou mesmo o maior
cineasta que já existiu. Meu favorito? Alguma coisa entre Eastwood, Carpenter ou Ferrara.
Hoje te diria que é o Ferrara, mas sem nenhuma certeza. Um filme dele? Bem, é
só pegar todos que foram realizados entre 1990 e 1998, jogar a camisa 10 para
cima e ver quem pega primeiro. Digamos que, hoje, eu ficaria com Blackout (1997), mas sem certeza alguma.
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Um curta e um longa: Sangue
Corsário (1980) e Alma Corsária (1993),
ambos do Carlão. Eu estudei Letras por um tempo, tenho um fraco por poesia,
pela figura do criador, a lógica da universalidade que cruza o cinema do
Reichenbach. Não imagino alguém que seja capaz de fazer filmes tão
essencialmente brasileiros passeando por tantos cinemas diferentes ao mesmo
tempo. Isso tudo sem deixar de fazer um cinema de diálogo, de palavras, de expressões,
saca? Isso é raro hoje, sinto muita falta. Acho que é coisa que tinha muito em Sganzerla,
Bressane (ainda tem), Ana Carolina. Hoje em dia vejo pouco por aqui, aquele diálogo
que não é natural, que você sabe que é escrito. E isso também não é um
problema. Os tempos mudam e as estéticas vão junto. É mais questão de gosto. De
encantamento, melhor dizer. Se me perguntar sobre o cinema do Brasil, fico
sempre com Carlão. É meu herói. Não é necessariamente o melhor, e nem nunca
quis ser. Mas é uma hecatombe.
5) O que é ser
cinéfilo para você?
Amar inadvertidamente e abraçar todos os danos consequentes
dessa paixão.
6) Você acredita que
a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feita por
pessoas que entendem de cinema?
A resposta é objetiva: não. Agora, é preciso ter cuidado. Existem
inúmeras salas no Brasil com programações e programadores incríveis. Ou seja,
não é generalizado, nem tudo é uma sala de shopping e nem toda sala nesse
sentido é ruim. Mas, se pensar em programações excelentes, só de cabeça dá para
citar o Cine Humberto Mauro, a
Cinemateca Capitólio, o Cinema do Dragão, o Cinema da Fundação e tantos
outros. As programações do IMS e da Cinemateca Brasileira, que já pude
conferir presencialmente também, são excelentes. Tem muita sala alternativa
cheia de programação interessante, de cinema diverso, de formação de olhar. Sem
contar o tanto de cineclubes que faz uma programação caprichada, que oxigena o
pensamento sobre cinema. E com ingresso acessível, quando não gratuito.
Assisti O Ciúme e Os
Mágicos, de Chabrol, em 35mm na cinemateca. Gastei menos de cinco reais. É
questão de buscar mesmo. E o torrent tá aí. Nada impede você de fazer os seus próprios
programas, pesquisar eles e reproduzir em casa. Inclusive recomendo.
7) Algum dia as salas
de cinema vão acabar?
Nunca. Pode sucatear, diminuir, virar algo mais inacessível.
Pode até ser que vire quase uma raridade. Mas acho impossível sumir para
sempre. Porque é incomparável ir ao cinema do que consumir algo em casa. E
também porque, assim como nas outras formas de arte (música, literatura,
teatro), o modo presencial de exibição nunca morreu. É mais difícil, mas é
interminável também.
8) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Meu lado apaixonado por cinema brasileiro diria O Jogo da Vida, do Maurice Capovilla. Aqueles objetos voadores perdidos de um cinema um
tanto quanto sem medo de ser, bastante influenciado pelas vanguardas e, ao
mesmo tempo, completamente brasileiro. Em essência mesmo, sabe. Gianfrancesco Guarnieri e Lima Barreto contracenando juntos. Filme
de jogatina, literatura brasileira direto para a tela. Aquelas coisas que é
raro de acontecer, mas às vezes rola. Você fazer um filme crônica, um dia na vida,
jogando os dados com a sorte.
9) Você acha que as
salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?
Depende muito. Hoje em dia, não. De maneira alguma. A vacina
já tá entre nós, mas ela não chegou a quase ninguém ainda, se você pensar em um
panorama geral. Agora, quando estivermos perto de ter quase todos vacinados,
acredito que seja mais viável. Até por que, sala de cinema tem um custo muito
alto. O problema é que esse custo não pode ser maior que a vida. Se a gente
tivesse em um governo Lula, por exemplo, diria que seria provável de isso
acontecer sem maiores danos. No estado atual, quase impossível. Hora de seguir vendo
cinema em casa.
10) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
Como sempre, muito único. A gente vive em um país de dimensões
continentais, saca? Existem muitos Brasis dentro do Brasil, e existem muitos
cinemas brasileiros dentro da instituição “cinema brasileiro”. Por isso eu não
acredito tanto nesses termos majoritários. A gente entende que o cinema de
Minas é diferente do cinema de Pernambuco, por exemplo. Porém, nesses próprios
lugares existem infinitos cinemas distintos. Mas, grosso modo, eu vejo que o
panorama geral é o de uma mudança de ares, a estética vigente dos anos 2010 vai
ficando cada vez mais ultrapassada. Não num sentido de que aqueles filmes não
fazem mais efeito, falo em um sentido de tendência mesmo. Estamos passando o
momento da virada de chave. Vejo muita gente tentando encontrar a nova vanguarda
do cinema brasileiro, mas a difusão de tantos filmes (e tem quem insista em programar
em festivais os mesmos filmes que já rodaram incessantemente nos últimos dois
anos!) dificulta as pessoas de encontrar um norte exato para essa produção. E,
em vários sentidos, isso é muito positivo. Por que a real é que não existe
apenas um único caminho. Os caminhos e as brechas são vários. Tentar lidar com
isso é o mais importante. São os novos desafios.
11) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Te digo três: Lincoln
Péricles, Léo Pyrata e Marco Antônio
Pereira.
12) Defina cinema com
uma frase:
Gosto muito da máxima que abre os filmes de Marcus Curvelo: Filmar Para Não Morrer.
Eu ando mais ou menos nesse caminho. Tudo ou nada. Sobreviver.
13) Conte uma
história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:
Programar a estreia de No
Coração do Mundo em Pelotas. O filme havia sido cedido para exibirmos no
cineclube. Sala lotada, umas 60/70 pessoas. Sexta-feira de noite, chovia tanto que
até Noé abandonaria a barca. O projetor deu pau umas 4 vezes. Uma hora, por
causa da chuva, toda a luz da sala de cinema caiu. Foi uma confusão imensa, mas
foi gostoso. Daquelas coisas que você só aprende depois de passar por. Depois
ainda comentei a sessão, e acho que foi uma das mais divertidas.
Lembro de ter revisto todos os curtas da Filmes de Plástico antes
da exibição, pra ficar em dia com as ideias. Antes de chegar no cinema, tirei
um cochilo e, pasmem, sonhei com Dona Sônia, de Dona Sônia Pediu Uma Arma ao
Seu Vizinho Alcides. Mas tiveram outras pérolas memoráveis também. Uma vez,
programando Clube dos Canibais, tive um ataque de pânico. Passei toda a sessão
entre a sala de projeção e o banheiro. Depois voltei para fazer os comentários
como se nada tivesse acontecido. Faria tudo de novo.
14) Defina ‘Cinderela
Baiana’; em poucas palavras…
É o tchan.
15) Muitos diretores
de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta
precisa ser cinéfilo?
De maneira alguma. Nem melhor e nem pior. Tem gente que faz
obras-primas sem nem ter ideia de estar diante de uma. Acho chato essa coisa de
obrigatoriedade. Precisar ser algo, saca? Você joga a parada no mundo, depois é
o mundo que se resolve com sua obra. Explicar filme, background, a famosa ‘mensagem’
da obra… Acho tudo isso bobagem.
16) Qual o pior filme
que você viu na vida?
Eu não boto muita fé nessa história de pior filme. Mas também
não acredito que “todo filme tem algo bom”, nem de perto. Só acho que é um
rankeamento meio inútil. Se você pesquisar na internet os rankings de piores
filmes, tem um tanto de filme ótimo, quando não maravilhoso, que essa
cinefilia/crítica educada pelo cinema americano da temporada de Oscar e pelo
Rotten Tomatoes acha que é deplorável. Tem quem ache Shyamalan terrível e ainda
acredite fielmente que seus filmes não tem nexo porque “se levam a sério” em
algo pouco crível. Vê se pode! E isso que a gente tá falando do maior cineasta
americano dos Anos 90 para cá! Façamos assim, te digo dois filmes que eu
detesto: Democracia em Vertigem e Roma. Cinema de distância, com medo de
sujar as mãos. Se chegar perto demais, machuca.
17) Qual seu
documentário preferido?
Tem um filme meio perdido do Farocki que eu adoro. Chama Jean-Marie Straub and Danielle Huillet at
Work on Franz Kafka’s ‘Amerika’. Sempre fui fascinado por esse método
austero e incessante dos Straub-Huillet de trabalhar. E o filme que é resultado
desse processo é uma das maiores obras-primas da carreira deles, o Relação de
Classes. Acho muito doido você ver como o Straub é um chatão, fica fumando
charuto e resmungando, enquanto Danielle
Huillet segura a barra. Mas não é como se ela também fosse a pessoa mais
amorosa do mundo. No fim das contas, é sobre como o cinema é um processo.
Incessante, inseguro, errante, de tentativas. Isso vale mais que tudo para mim.
Gosto muito também de um filme de Miguel
Rio Branco, que não sei exatamente se é um documentário (nos padrões do termo),
e que é um filme muito renegado hoje em dia por diversas questões. Chama Nada Levarei Quando Morrer Aqueles que Mim
Deve Cobrarei no Inferno. Acho que é a obra sintaxe de um dos artistas
brasileiros mais incontornáveis. Alcança a alma humana como pouca coisa que vi
no cinema. É documento de um tempo, de um tipo de vida, de cinema.
18) Você já bateu
palmas para um filme ao final de uma sessão?
Nó! Incontáveis vezes. Na frente da televisão então, quase
todo o mês. E é quase que natural, você tem uma catarse depois de assistir algo
que parece absolutamente magnânimo ou que te derruba profundamente. Acho que o
encerramento dos filmes também potencializam isso. Por exemplo, eu amo O Dinheiro, do Bresson, mas eu não bati
palmas (ou qualquer coisa do tipo) quando acabou porque aquele corte seco, que
encerra de vez uma das maiores obras da história do cinema, é muito brutal.
Difícil lidar com qualquer coisa que seja que venha depois daquilo. Se eu
penso, por exemplo, em filmes como Bom
Trabalho, da Denis, que tem um final arrebatador, aí sim eu imagino as
palmas do pós-sessão. Ou quando você termina de ver algo como Vampiros, do Carpenter, que é magnético
e alucinante do início ao fim. Você acaba o filme em um transe, a música subindo,
o sintetizador na sua frente, todo aquele pastiche junto. São coisas
incontornáveis.
19) Qual o melhor
filme com Nicolas Cage que você viu?
Snake Eyes. E até
quem não tenha respondido isso sabe, no fundo do seu coração, que não há filme
com Nicolas Cage maior que Snake Eyes.
20) Qual site de
cinema você mais lê pela internet?
Ultimamente, tenho tido uma relação de cansaço com a crítica
brasileira. Abandonei quase todas as publicações correntes. Das maravilhas da
quarentena, talvez uma das maiores tenha sido o novo blog do Merten (oblogdomerten.wordpress.com).
Leio diariamente, como se fosse íntimo. Ainda leio a Contracampo também, mesmo que não esteja em funcionamento a
bastante tempo. De toda a forma, boa parte da minha geração se formou lendo
aquela galera. E tem textos memoráveis, meus favoritos são os de Luiz Carlos Oliveira Jr. Há também Andrea Ormond, a pessoa que mais me faz
ter fé na crítica brasileira. Para mim é indiscutivelmente a melhor coisa por
aqui. Se fosse citar algo mais contemporâneo, os trabalhos de Adilson Marcelino e Adriano Garrett me encantam bastante.
21) Qual streaming
disponível no Brasil você mais assiste filmes?
Torrent segue sendo o streaming mais acessível de todos,
junto com o YouTube. Certamente é o acervo mais legal de variedade e pesquisa
(pelo menos em cinema brasileiro). Você encontra quase uma formação cinematográfica
no YouTube, tamanha a quantidade de longas e curtas disponíveis. E coisas indispensáveis
mesmo. Os filmes do Raulino, em grande parte, senão todos, assisti lá. Os
curtas do Glauber. Boa parte dos filmes do Carlão. Salvo engano, os filmes de
Ana Carolina também (mas, se não tiver lá, tem gratuito no SPCinePlay).
Hirszman, Tonacci… enfim, muita coisa mesmo. Mas não nego que eventualmente uso
Netflix ou o Prime, mais o Prime, por ser bem em conta. Óbvio que não são
critério, o acervo é péssimo, depender disso é apagar a história do cinema
diante do capitalismo da legalidade. Vida longa ao Torrent, aos grupos de
Facebook, aos fóruns online. Minha formação é toda ali. E ao MUBI também,
principalmente depois de liberar o acervo. Nesse caso, vale a pena para
estudantes, que é de graça. Se for para bancar algo, vale mais a pena investir
em uma vaguinha em fóruns privados.