Iniciando mais essa série de listas cinéfilas buscando trazer, dessa vez, uma reflexão não só para as grandes obras que listamos abaixo mas também sobre a importância do curta-metragem. Praticamente o patinho feio do circuito exibidor (mesmo existindo a Lei do Curta...), muitos curtas-metragens ganharam novo fôlego com a chegada dos streamings e a possibilidade de enfim conseguirem chegar até os olhos de todos aqueles que amam a sétima arte.
Segue abaixo os primeiros dez filmes dessa contínua lista
que faremos ao longo desse ano:
White Eye (2020,
Israel)
O viciado e triste olhar do preconceito. Uma
bicicleta roubada. As questões burocráticas da lei. Olho branco, viciado dentro
do preconceito. Em tempos onde a linha tênue do bom senso insiste em não
existir. Para onde caminhará nossa humanidade? Escrito e dirigido pelo
cineasta Tomer Shushan, em seu segundo curta-metragem na
carreira, White Eye é o retrato de
muitos países europeus onde o medo dos imigrantes é constante, tentando se
estabelecer em um país onde não nasceram.
Finalista do Oscar 2021 de Melhor
Curta de Ficção, o curta-metragem israelense em pouco mais de 20 minutos nos
mostra um conflito quase banal que acaba se tornando uma questão legal sobre um
imigrante que luta pelo bem-estar de sua família buscando ser um trabalhador
honesto em um país diferente do dele, com mais oportunidades. Interpretados
por Daniel Gad e Dawit Tekelaeb, dois
homens, duas histórias, se cruzam em torno do roubo ou não de uma bicicleta
sendo que um deles acaba acionando a polícia para uma rápida resolução. Mas
será que era a melhor solução? O peso na consciência bate rapidamente quando
percebe que a polícia está com o olhar viciado em relação ao outro homem.
O filme reflete dilemas sociais que
vemos muito por aqui também na América Latina, sobre a ótica do resolver as coisas
como adultos ou envolver a polícia e complicar tudo mais ainda? Será que as
leis serão justas para todos? Aonde foi parar o bom senso da própria
comunidade?
O Som do Tempo (2010, Brasil)
O mundo da mudança ao olhar da simplicidade.
Vencedor de mais de duas dezenas de prêmios em festivais espalhados pelo
Brasil, O Som do Tempo, é um dos primeiros
curtas-metragens da carreira do excelente cineasta cearense Petrus Cariry. Em
curtos dez minutos de projeção, somos testemunhas da habilidade técnica, na
criação de emoções através do movimento do impacto, das imagens, buscando a
reflexão de toda ou qualquer forma dentro do contexto de uma mulher mais velha
vendo as transformações do pequeno pedaço de universo que vive ao longo do
tempo.
O silêncio que não existe mais. Ao
redor prédios e barulhos, o verdadeiro caos urbano das grandes cidades que não
param de se expandir. Em contraponto, a vida simples, uma casinha humilde em
meio a enormes estruturas, avenidas barulhentas e palavras gritadas pra todos
os lados. Em até certo ponto dentro de uma forma de poesia de imagens,
identificamos um olhar muito humano e honesto compreendido mais de perto por
quem está no epicentro dessa mudança, olhando um mundo novo diferente do que
vira até então.
Quase sem palavras (usando a força do
ver em vez do escutar), quando chega, a música em um gran finale mostra mais
detalhada a questão cultural e existencial e de alguma forma explica bastante
das imagens que vemos ao longo desse trajeto, o seguir em frente em meio às
transformações que não abalam em nada quem apenas quer viver de sua maneira.
Dois Estranhos (EUA,
2020)
Cortesia, profissionalismo e respeito. Será? Vencedor
do Oscar de melhor curta-metragem em 2021, Dois Estranhos explora
o eterno giro de 360 graus constante onde os paralelos entre a autoridade e o
preconceito parecem dois rios que acabam se unindo gerando dor e sofrimento. Dá
um aperto no peito, são cenas fortes e infelizmente muitas dessas vistas por
muitos olhos nas ruas pelo mundo todo o dia, tamanho o preconceito e
intolerância dos olhares brancos contra os negros. É um filme arrebatador,
conversa demais com muitos dos acontecimentos viralizados sobre preconceito e
violência policial nos Estados Unidos que nos trazem muito tristeza. Dirigido
por Travon Free e Martin Desmond Roe.
Imperdível! Disponível na Netflix.
Na trama, conhecemos um jovem
trabalhador chamado Carter (Joey Bada$$), em um
dia de grande alegria por ter conhecido um provável futuro amor, Perri (Zaria). Ele está voltando para casa onde está seu
cachorrinho fofo o qual ama muito e até mesmo aciona via wi-fi um lança
biscoitinhos para ele enquanto não chega em casa. Ainda na calçada, em frente
ao prédio onde estava é abordado de maneira abrupta e desleal pelo policial
branco Merk (Andrew Howard) e assim, em fração de segundos, sua vida
corre sérios riscos. Acontece que um loop infinito é ativado (volta sempre ao
mesmo dia e momento da tragédia) e agora o protagonista precisa encontrar
alguma maneira de ter um final diferente para essa história. Mas será que
existe?
Um filme reflexivo, que coloca o dedo
bem fundo na ferida de uma sociedade polarizada, ainda muito preconceituosa, em
alguns momentos nada amistosa, onde a cor da pele vira questão de escolha de
quem é bom ou mau. Two Distant Strangers,
no original, usa da criatividade para mostrar diversas formas onde o
preconceito se instaura tendo os mesmos personagens. Somos testemunhas oculares
das várias abordagens policiais equivocadas, com o preconceito dentro da força
desproporcional, na mira da metralhadora...
O desfecho é emblemático, lembra de
diversos nomes de pessoas negras que tiveram suas vidas tiradas em questões
muito parecidas das quais o filme aborda. Um projeto para todos nós, brancos e
negros, refletirmos sobre o mundo em que vivemos e se de alguma forma podemos
caminhar para uma melhora através do diálogo.
Boa Noite (Gana/Bélgica,
2020)
Os horrores camuflados de bondade. Um dos 15
semifinalistas ao Oscar 2021 de Melhor Curta de Ficção, Good Night (Da Yie) , co-produção Gana/Bélgica, é
um filme que escancara aos nossos olhos os horrores de uma realidade, um retrato
chocante de uma parte do mundo que carece de atenção. Dirigido pelo
cineasta Anthony Nti, em 20 minutos somos jogados a uma história
que fala sobre sonhos, impunidade e os absurdos que a vida apresenta. Um filme
forte, porém necessário, para reflexão.
Na trama, conhecemos Matilda e
Prince, duas crianças muito amigas que possuem em comum um grande amor pelo
futebol. Certo dia, no campinho onde jogam, um estranho mas conhecido por eles
estaciona o carro e os chama para irem lanchar e passear pela cidade. Só que as
verdadeiras intenções desse estranho aos poucos vão sendo reveladas.
Tenso, fala sobre memórias, traumas,
conversas que vão colocando dúvidas no personagem que começa a sofrer de peso
na consciência, levando a trama para um desfecho que chama a atenção. Os jovens
falam sobre seus sonhos, visitam o mar, falam de momentos tristes da vida,
fotografia, futebol, repletos da inocência da idade e falta de maturidade para
enxergar os perigos que se apresentam. Good Night (Da Yie) foi
o vencedor de Melhor Filme da Competição Internacional do prestigioso Festival
de Curtas de Clermont-Ferrand 2020. Um filme importante que fala as verdades
sobre um mundo ainda muito cruel que muitos vivem.
O Presente (Palestina/Inglaterra,
2020)
Os absurdos de um presente que não esquece do
passado. Vencedor do BAFTA de melhor curta-metragem de ficção e indicado ao
Oscar 2021 na mesma categoria, O Presente, sendo
bem objetivo, gera angústia, raiva e um enorme sentimento de tristeza com a
absurda situação vivida por um pai, sua filha e uma geladeira. Bons curtas são
aqueles que dentro de um recorte chamativo, conseguem expor problemas
universais. Dirigido pela cineasta britânica Farah Nabulsi, esse
projeto palestino faz refletir sobre a intolerância jogada na nossa cara. Esse
filme gera uma indignação profunda por sabermos que os fatos aqui relatados
acontecem de diversas maneiras na realidade.
Na trama, conhecemos Yusef (Saleh Bakri), um homem de meia idade, trabalhador, que
acorda em uma manhã, após uma noite onde chegara muito tarde, com o objetivo de
comprar um presente para a sua esposa já que ambos completam mais um
aniversário de casamento. Assim, ele leva sua filha Yasmine (Mariam Kanj) para ir até Beitunia fazer compras e pegar
o presente da esposa. Só que para ir e vir, Yusef e todos que moram naquela
região da Cisjordânia precisam passar por um ponto de checagem israelense. E
assim, um conflito se estabelece na ida e na volta do resgate do presente.
A falta de liberdade do ir e vir é o
principal ponto de reflexão desse pequeno grande projeto. A falta de
humanidade, compaixão dos soldados na ‘fronteira’ mostram as hipocrisias que
comandam ações do universo da generalização em vez de olhar para o indivíduo.
Sensibilidade? Isso não existe nesses lugares. Tentando se locomover por uma
Cisjordânia controlada, com estradas segregadas, milhares de pessoas
diariamente precisam ser ‘checadas’ perdendo princípios básicos dos seres humanos.
O filme escancara verdades que poucos gostam de dizer ou até mesmo conhecem. O
cinema tem esse papel: gerar reflexões para quem sabe trazer mudanças.
The Letter Room (EUA, 2020)
Quando o introspectivo se une ao intermediário. Um
dos concorrentes ao Oscar 2021 de Curta-metragem de ficção, The Letter Room, ou a Sala de Correspondência, se
formos traduzir literalmente para o nosso idioma, conta a história de alguns
através do olhar curioso de um personagem que acaba sendo testemunha de relatos
pessoais da família e dos presos, inclusive para os que estão no corredor da
morte, após assumir o novo cargo de diretor de comunicação dos prisioneiros.
Escrito e dirigido pela cineasta Elvira Lino, o
projeto (com potencial de ser um longa-metragem) possui um indecifrável lado
tragicômico escondido por trás da história, sentimos que há muito mais por
conhecer desse curioso protagonista. Ótima interpretação do ator Oscar Isaac.
Na trama, conhecemos o boa praça e
simpático agente penitenciário Richard (Oscar Isaac), um ser
solitário que vive de ir ao trabalho e voltar pra casa, tendo apenas a
companhia de seu cachorro. A fim de se desenvolver profissionalmente, se
inscreve para outras funções na penitenciária que trabalha, por mais que tenha
um ótimo relacionamento com os outros guardas, a chefe do local e os presos.
Assim caba indo para no setor de comunicação da prisão, onde precisa escanear e
analisar possíveis irregularidades nas mensagens externas que chegam para os
que estão presos. Mas ele acaba se envolvendo mais do que devia e assim acaba
embarcando nas soluções de duas questões para dois prisioneiros.
Há um composto interessante ligado ao
desejo e as emoções que o guarda acaba sentindo, não consegue fugir das
diversas reflexões daquelas palavras espalhadas nas mensagens. Precisa ir atrás
das resoluções daquela história, como se fosse um intermediador, um fato que
acaba se conectando com seu perfil introspectivo de pouco contato com o mundo
lá fora. O personagem em cima é longe de ser caricato detalhista, inclusive controla
a alimentação através de um bloquinho de papel preenchido com as calorias
diárias ingeridas, talvez uma ideia que teve a partir de alguma referência que
viu nas dezenas de horas que fica de frente para a televisão quando não está
trabalhando.
Em cerca de 30 minutos, ficamos
refletindo muito sobre a personalidade e as ações tomadas, certas ou erradas,
pelo personagem, gerando a curiosidade de querer conhecer mais sobre a história
dessa alma introvertida e as prováveis sinucas que se envolve a partir da
curiosidade.
Hair Love (EUA, 2019)
O amor por nossos filhos nos fazem ser fortes em
qualquer situação. Vencedor do prêmio de melhor curta de animação no Oscar 2020, Hair Love mostra tanto amor em 7 minutos que os
ensinamentos se prolongam para nossas vidas. Produzido, escrito e dirigido pela
ex-atleta da NFL Matthew A. Cherry, o filme conta um
pequeno retrato na vida de um pai e uma filha pequena e a tentativa do primeiro
em pentear o cabelo da filha pela primeira vez.
Simples e profundo como todo bom
curta deve ser. A difícil missão de um pai em fazer um belo penteado no lindo
cabelo de sua filha, nos leva em uma jornada linda em analogias para nossa
realidade, principalmente quando entendemos no finalzinho desse belo trabalho o
porquê daquela missão ser tão importante sem ser cumprida por esse super pai. A
mamãe da jovenzinha está em uma luta contra doença no hospital e o corte
especial é para ela ir toda linda encontrar a mamãe.
Nessas horas é que vemos o exemplo e
pensamos em muitos outros super papais. Tendo apenas um vídeo gravado pela mãe
da menina como único auxílio na tentativa de ser bem-sucedido, o poder da
animação entra como uma rajada de criatividade metafórica simbolizando aquela
simples luta como algo tão importante que vira algo inspirador nossos corações.
Belíssimo curta.
Irmã (China, 2019)
As memórias que não existiram mas que
também nunca se foram. Usando a técnica de stop-motion, a animação chinesa
dirigido pela cineasta Siqi Song,
transforma uma frustração em uma grande carta poética em forma de
animação. Irmã, em seus curtos minutos, fala
muito sobre o sentimento das famílias chinesas que viveram dentro dos 30 anos
da política de apenas um filho. Selecionado pelo Festival de Sundance ano
passado e um dos cinco indicados ao Oscar na categoria melhor curta de animação
em 2020, o filme é um relato importante sobre um fato que afetou milhares de
pessoas no país mais populoso do planeta.
Em 08 minutinhos, ambientado na
década de 90, somos envolvidos em um pequeno retrato que vai do imaginário a
realidade. Conhecemos um jovem que relata sua convivência com sua irmãzinha,
muitas situações que acontecem com a chegada da nova integrante da família, só
que descobrimos que essa irmã nunca existiu pois a família do protagonista não
poderia ter mais de um filho por conta de uma política de 30 anos das
autoridades chinesas.
Lançada pelo governo chinês no fim da
década de 1970, essa lei que é pano de fundo dessa história, consistia numa lei
segundo a qual ficava proibido, a qualquer casal, ter mais de um filho (em
outubro de 2013, o governo chinês aboliu essa lei). Fato esse que deixou vários
filhos únicos sem a possibilidade de dividir sua vida com um irmão ou irmã. O
curta navega nessa vertente e usa a imaginação do pensar como forma de
homenagem a todos que não puderam ter um irmãozinho durante todo esse período
na China. O cinema é isso, uma maneira de refletir sobre nossas épocas:
passado, presente ou futuro.
Memorável (França,
2019)
Pintar com os dedos invoca o homem
primitivo que há entre nós. Indicado ao Oscar de Melhor curta de animação em
2020, o projeto francês Memorável fala
sobre as nuâncias da nossa mente em momentos chaves de nossa vida. Na surreal
que a vida presente os prega, um pintor e sua esposa precisam conviver com as
mudanças oriundas do tempo mas sem deixar de acessar memórias que não há como
serem esquecidas. Um belo curta. Pena que os cinemas brasileiros não exibem
curtas antes dos longas em seu circuito exibidor (o capitalismo em exagero
chega mais forte pela ótica do lucro dos chatos e inúmeros comerciais antes das
histórias), tem tanto curta bom por aí...como esse.
12 minutos de muitas emoções onde o
coração pulsa mais forte nessa singela história sobre as memórias de alguém
ainda vivo. Há poesia nos respingos das tintas do artista,
há muita metáfora nas explicações sobre os nós que nossa mente submete, tudo
isso é tratado com muita delicadeza e uma trilha sonora instrumental que chega
bem forte aos nossos corações.
Escrito e dirigido pelo cineasta
francês Bruno Collet, Mémorable, no
original, nos puxa para refletirmos sobre a arte de amar igual muitas vezes.
Importante os detalhes à força da arte, pelo seu precioso protagonista e suas
novas descobertas de uma vida recheada de boas memórias.
Aprendendo a Andar de
Skate em uma Zona de Guerra (Se Você For uma Menina) – (Inglaterra, 2019)
O que é coragem? Porque é importante
ter coragem? Vencedor do Oscar de melhor curta metragem anos atrás, Aprendendo a Andar de Skate em uma Zona de Guerra (Se Você For uma
Menina), passa pelos
períodos das estações, usados como pequenos arcos para o desenvolvimento da
narrativa, entendemos melhor um projeto inovador para meninas de origem muito
pobre com famílias conservadoras. Em um planeta que preza pelo egoísmo e a
falta de reflexão sobre o outro, os olhos do mundo devem estar atentos a esse
belo trabalho da cineasta Carol Dysinger.
Em um país devastado pela guerra de
décadas, onde o básico ler e escrever ainda é um grande desafio, principalmente
para as mulheres, sempre estando em perigo nas ruas, sem segurança, um pequeno
oásis acontece em Kabul, no Afeganistão, com a criação de um projeto chamado
Skateistão que associa aulas para meninas carentes e aulas de skate. Toda uma
equipe de pessoas com enorme coração é vista fazendo seu trabalho com toda
dedicação. Desde a professora que prefere não mostrar o rosto, até a jovem
instrutora de skate, além da assistente social que tem como uma de suas funções
recrutar novas jovens que se encaixem no perfil do projeto.
Vivendo com o dia a dia intenso,
ajudando nas tarefas de casa e o medo da violência diária, as pequenas
guerreiras não desistem dos seus sonhos, nem de seu livre arbítrio do pensar e
praticar esse esporte muito popular que as leva para outros lugares durante
aquelas horas que praticam. Em busca de um futuro melhor, percebemos no arco
final que os sonhos começam a brotar e isso é algo que ninguém tira delas,
jamais.