30/08/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #72 - Paulo Henrique Fontenelle


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

Nosso entrevistado tem muitas décadas de amor ao cinema, seja atrás das câmeras com seus documentários multipremiados, seja na cadeira do cinema vendo um filme. Paulo Henrique Fontenelle, é editor e diretor de programas, documentários e DVDs musicais. Mas acima de tudo um grande cinéfilo! Dirigiu e produziu o curta Mauro Shampoo (2006), que ganhou mais de 20 prêmios – no Brasil e exterior; o longa biográfico do mutante Arnaldo BatistaLoki –, também bastante premiado; Dossiê Jango (2012) - Prêmio de melhor documentário pelo júri popular no Festival do Rio de 2012 e Cássia (2014), documentário sobre a cantora Cassia Eller, um gigantesco sucesso de público e crítica.

Obs: meu querido amigo cinéfilo Paulinho! Lembro da pré estreia do Cassia no Cine Joia onde falamos muito sobre cinema e teve até cantora fazendo um pocket show com músicas da grande artista que nos deixou. Vi como ficara contente de estar naquele ambiente cinéfilo cheio de pessoas que estavam loucas para ver o seu filme. O mais legal é que geralmente os diretores ficam nervosos com a estreia do filme, se o som ta bom etc, etc. E lembro de você sempre calmo e feliz querendo falar sobre cinema com todos. Nessa vida é tão bom encontrar com pessoas que possuem a mesma paixão pela sétima arte do que você! Dizem que nós cinéfilos somos pessoas solitárias mas ao longo da vida percebemos que somos muitos e quando nos encontramos tudo vira uma grande festa, nos divertimos e rimos com muito pouco! Mesmo nos vendo pouco sempre aguardo nosso próximo papo! Até foto com o Gaspar Noé nós temos né? Viva nós cinéfilos!

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Eu tenho um amor especial pelos cinemas do Estação que foram responsáveis por uma enorme parte da minha bagagem cinéfila. Gosto muito da programação do Cine Joia também e lamento não ter tido tantas oportunidades de frequentar o Reserva Cultura de Niterói. Mas se eu tiver que escolher apenas um cinema, fico com o Espaço Itaú da Praia de Botafogo. Lá é possível encontrar todos os tipos de filmes em um só lugar: Filmes franceses, filmes nacionais, documentários, blockbusters... E ainda temos sempre a possibilidade de dar uma passadinha na livraria do lado e comprar aquela pipoca de rua.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Foi Guerra Nas Estrelas que assisti em 1978 no extinto Cine Coral, onde hoje funciona o Espaço Itaú. Ali eu percebi que o cinema era uma arte sem limites. Eu tinha sete anos de idade e foi o primeiro filme legendado que vi na minha vida. Eu saí do cinema sem entender metade do que tinha acontecido, mas com a certeza de que minha vida nunca mais seria a mesma.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

É difícil conseguir escolher um diretor favorito. São tantos e variam de semana em semana. A lista é longa. Os cineastas que admiro vão desde Chaplin a Kieslowski, passando por Alan Parker, Milos Forman, Woody Allen, Martin Scorsese, Errol Morris... Cada um deles marcou um momento importante na minha vida. Já filme favorito, esse não tenho nem como titubear. Magnolia do Paul Thomas Anderson é o melhor filme já feito na história da humanidade não só pela sua qualidade técnica, mas também pelos temas que ele aborda como o perdão, reconciliação com o passado, a necessidade de seguir adiante e de expressar o amor pelas pessoas. "Its Not Going to Stop,  till you wise up". Me lembro de ter assistido na estreia no UCI com metade do público vaiando o filme. Acho que eles viram o Tom Cruise no cartaz e esperavam um filme de ação. Nessa mesma noite, cheguei em casa e, por coincidência (ou não) passou na tv o clipe da Aimee Mann cantando Save Me. Corri para o computador para saber mais sobre a obra e, depois de lutar contra a internet discada, li uma linda crítica sobre o filme no site Cinema em Cena que me trouxe ainda mais admiração, não só pelo filme, como também pela profissão de crítico de cinema. Na época, voltei ao cinema umas cinco vezes para rever o Magnolia e quando eu comprei o Dvd importado, deixava ele rolando diariamente na minha televisão feito um aquário.  Era um período em que eu já estava desistindo de trabalhar com cinema e esse filme foi uma epifania como a que senti aos sete anos vendo o Guerra Nas Estrelas. Graças a ele, eu segui adiante na profissão.

Até hoje agradeço a você, Raphael Camacho, e ao Cine Joia por ter me proporcionado a oportunidade de rever esse filme numa tela de cinema em 2016. Foi o maior presente que um cinéfilo pode dar a outro cinéfilo.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Acho que o primeiro filme nacional que me impressionou muito, ainda na infância, foi o Pra Frente Brasil do Roberto Faria. É um cineasta que eu gosto muito pela versatilidade de seus filmes. Hoje sou agradecido por ter tido a oportunidade de trabalhar com ele no documentário Dossiê Jango onde ele é um dos autores do argumento junto com o Paulo Mendonça e que trata de temas parecidos com os retratados no filme dele. Outro que gosto muito é o Pagador de Promessas do Anselmo Duarte. É impressionante como ele se mantém atual. Mas quando penso num filme que me traz um sorriso no rosto e uma vontade de celebrar a vida é Todas as Mulheres do Mundo do eterno Domingos Oliveira.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Eu me lembro uma vez, ainda em 1999, quando encontrei por acaso o Cavi saindo do Cinema onde ele tinha acabado de assistir Pokemon - O Filme. Eu perguntei a ele porque diabos ele resolveu assistir esse filme e a resposta foi muito simples: "Não tinha mais nenhum outro filme pra ver no cinema. Eu já vi todos os outros". Quando eu percebi que eu me encontrava na mesma situação, resolvi seguir o exemplo, comprei um ingresso, e fui torcer pro Pikachu. Acho que isso pode ser um sintoma de cinefilia.

Eu não sei como definir o que é ser cinéfilo em palavras. Pois acho que cada um tem a sua experiência e a maneira de exercer o seu amor pelo cinema. Posso falar apenas do ponto de vista pessoal e, para mim, ser cinéfilo é enxugar as lágrimas enquanto respondo essa entrevista ao perceber que minha vida é indissociável dos filmes que vi e das experiências que vivi dentro das salas de cinema. Quando revejo ou leio sobre um filme sou capaz de lembrar exatamente em que cinema eu o assisti pela primeira vez, com quem eu estava e o que eu sentia nessa época. O cinema faz parte da minha trajetória na Terra. Agradeço todos os dias aos mestres do cinema que despertaram essa paixão em mim, à todos as aventuras que vivi no festival do Rio onde, muitas vezes sou obrigado a escolher se devo almoçar ou assistir mais um filme, às longas noites em que eu ficava na Cavideo sem pegar filme nenhum (apenas olhando as capas dos Dvds e conversando horas sobre cinema) e, principalmente, por cada minuto que passei dentro da sala escura me emocionando com essa arte que hoje se tornou meu meio de vida.

 

 

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Acredito que a maioria sim. Algumas pessoas precisam se adaptar às diretrizes do cinema e ao tipo de público que ele atende, mas quem trabalha com programação, certamente tem, no mínimo, um grande amor pela arte.

 

7)  Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Nunca.  Elas podem se modificar, se adaptar, mudar o público, mas morrer jamais. O Cinema é eterno.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Os Amantes do Círculo Polar do Julio Medem é um filme que me marcou muito. Vejo ele como uma poesia audiovisual. Eu acho que ele chegou a ganhar prêmios no Festival de Gramado em 1997, mas é um filme difícil de se encontrar para assistir. Um documentário fantástico que eu também indicaria é o Democracia em Preto e Branco do Pedro Asbeg. Todo brasileiro deveria ver. Outro filme que me vem à cabeça agora é o islandês Volcano (Eldfjall) de Rúnar Rúnarsson, mas sobre esse vou falar mais lá embaixo na última pergunta.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Eu acho muito arriscado abrir nesse momento. Mas, pelo que estou acompanhando, é algo que parece ser inevitável. Se isso acontecer que pelo menos seja feito com um sistema rígido de segurança, que garanta capacidade mínima onde público, o uso de máscara durante toda a sessão e a proibição de alimentos na sala. O Problema é garantir que essa fiscalização seja feita com seriedade, pois nesse momento, o que está em jogo é a vida das pessoas.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O cinema brasileiro, para mim, é um dos melhores cinemas do mundo. Ele possui uma variedade de temas e estilos que dificilmente se encontra em outras cinematografias e o sucesso que nossos filmes vêm fazendo em festivais internacionais é uma prova disso. O problema é sempre a velha questão de como fazer o nosso público ter acesso a essa variedade de filmes que são produzidos e muitas vezes não encontram espaço nas salas de exibição.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Fernando Meirelles, Kleber Mendonça, Daniel Rezende, Wagner Moura... A lista é enorme, pois temos um grande número de artistas fantásticos. Mas, no final das contas, eu acabo assistindo praticamente todos que são lançados independente de quem dirigiu ou de quem está no filme.

 

12) Defina cinema com uma frase:

Cinema é a arte da empatia.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Em todos esses anos de cinefilia, existe uma coleção de situações bizarras que vivi na sala de cinema. Já assisti filme do Denzel Washington numa sessão vespertina com um casal transando do meu lado esquerdo e, do meu lado direito, o lanterninha do cinema reclamando da vida e me pedindo conselhos se ele deveria interromper o ato sexual ou "deixá-los serem jovens". Eu só queria saber se o Denzel ia pegar o assassino ou não... Me recordo também de uma epopéia vivida no Cine Odeon durante a exibição do documentário do Scorsese sobre o George Harrison durante o Festival do Rio de 2013 onde, depois de meia hora de atraso, com o público protestando, a sessão começou exibindo a segunda parte do filme. O público vaiou e a sessão foi interrompida. Após uns dez minutos, a sessão reiniciou seguindo todas as formalidades, anúncios de patrocinadores, vinhetas do festival e o filme começou novamente pela segunda parte. O público foi ficando cada vez mais nervoso, começou a gritar mais alto ainda e a sessão foi interrompida de novo com o pobre do gerente do cinema dizendo que a primeira parte do filme estava com problemas, pois tinha que ter uma senha para destravar o arquivo e o cara que sabia a senha estava preso no trânsito em botafogo (????). O gerente ainda sugeriu que começássemos pelo final do filme para depois vermos o começo. O Público começou a ficar enfurecido e a sessão virou um ato político com as pessoas subindo no palco protestando contra o descaso pela cultura em nosso país, pelo aumento do salário dos professores e outras pregando que, somente a união do povo, faria o filme ser exibido da forma correta. A situação piorou com o gerente tendo que avisar que a sessão seria cancelada, pois já tinha fila pro filme da sessão seguinte. O Odeon foi tomado pelo grito ininterrupto de "Ninguem sai! Ninguem sai!!!". A situação já era caótica quando, por algum motivo inexplicável, os autofalantes do cinema começaram a transmitir uma... aula de língua portuguesa: "João foi ao mercado. Qual o sujeito da oração?" "Vamos falar sobre oração coordenada assindética...". A aula ficou rolando por uns 40 minutos em meio a gritos de protestos, discursos políticos e um cara cantando o hino do Botafogo. O mais bizarro é que eu estava chegando de uma viagem a Inglaterra onde o documentário já tinha sido lançado nas lojas. Fui direto do aeroporto para o cinema com minhas malas e com... o DVD do filme debaixo do braço. Cheguei a oferecer pro gerente exibir o meu dvd, mas ele achou melhor não fazer isso. Quando a situação já estava insustentável o tal funcionário que sabia a senha chegou e o filme rolou finalmente na íntegra. E aí você vê a magia do cinema: No final do filme, todos choravam e cantavam emocionados as músicas do George Harrison. Todo o stress que havia acontecido até ali, agora pertencia ao passado. Vi pessoas aos prantos agradecendo e abraçando o gerente emocionado. Tudo ficou bem no final daquela saga que durou 7 horas e meia (menos para meu amigo que parou o carro no estacionamento da cinelândia e pagou quase cem reais por conta de todo esses contratempos).

Recentemente, passei por uma outra situação curiosa ao assistir o filme Antes Que eu Vá. Era uma sessão depois do almoço e, apesar do cinema estar vazio, eu fiquei numa daquelas espreguiçadeiras que ficam na primeira fila. Devia ter mais umas 8 pessoas na sala. Acabei adormecendo por alguns instantes e quando acordei achei que o filme estava um pouco fora de foco. O problema é que a espreguiçadeira estava muito confortável para eu ter vontade de me levantar e ir reclamar. Continuei assistindo o filme. O tempo foi passando e a imagem começou a ficar cada vez mais embaçada. Cheguei a pensar que eu precisava de uma visita ao oculista. O tempo passou e chegou uma hora que, além da imagem do filme estar impraticável, a sala estava com um cheiro muito estranho de queimado. Finalmente tomei forças para sair da espreguiçadeira, me levantar e gritar: "Ô projecionista, olha o foco....". Foi quando vi que a cabine de projeção e a sala inteira estava vazia com uma fumaça tomando conta de cada centímetro dela. Achei que era uma alucinação típica do Donnie Darko. Eu não conseguia enxergar nem um palmo a minha frente. Sai da sala correndo até chegar ao corredor do cinema completamente escuro e com uma fumaça mais densa ainda. Eu já não conseguia mais respirar. De repente, eu vi um vulto vindo em minha direção. Era um bombeiro me puxando pelo braço e perguntando o que eu estava fazendo ali dentro, pois o shopping estava pegando fogo. Ou seja: Eu assisti metade de um filme no meio de um incêndio. Depois, quando eu estava no hospital tirando uma chapa do pulmão, pensei que, seu eu tivesse morrido, teria sido um final de vida cinematográfico. Morrer numa sala de cinema. Se isso acontecer algum dia, espero que, pelo menos eu chegue ao final do filme.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

Acredita que eu nunca vi? Estou esperando ser lançado em Blu Ray pela Criterion.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Acho que quanto mais referências, mais rico será a sua arte. Eu sou viciado em cinema e procuro sempre buscar cada vez mais conhecimento e explorar as obras, não apenas dos grandes cineastas, mas também de outros diretores menos acessíveis ao grande público. Mas, ao mesmo tempo, eu pessoalmente conheço diretores que não conhecem e nem tem interesse em conhecer nada da obra de Truffaut, Bergman ou Tarkovski, mas que possuem um grande conhecimento técnico e artístico que os possibilitam a fazer belos trabalhos. Acho que o mais importante de tudo é você ter amor pela sua profissão. 

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida?

Essa pergunta é muito difícil, pois já vi muito filme ruim nessa vida. Mas pra escolher um mais recente, voto no Yoga Hosers do Kevin Smith que passou há alguns anos no Festival do Rio e que fala sobre salsichas nazistas.  Mas posso também acompanhar o relator e dar uma menção honrosa ao Apocalpise com o Nicolas Cage.

 

17) Quem teve a ideia primeiro? Michael Haneke em 'Amour' ou Rúnar Rúnarsson em 'Volcano' (Eldfjall)?

O mais interessante é que essa pergunta não tem nada a ver com o resto do questionário, mas eu tinha certeza de que o Raphael não ia resistir em não fazê-la. Em 2011, eu estava viajando pela Islândia e, por coincidência, estava tendo um festival de cinema por lá. Resolvi conferir o tal Volcano que era o indicado pelo país a concorrer uma vaga ao Oscar. Saí do cinema impactado por aquele filme tão triste e tão belo e, ao mesmo tempo, senti uma grande frustração por não ter com quem comentar. O filme acabou não sendo indicado ao Oscar e, ninguém mais falou dele. O Tempo passou, e, no começo de 2013, fui assistir o Amour do Michael Haneke que tinha sido o vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro daquele ano. O filme era maravilhoso, mas no meio da projeção, comecei achar que o ele estava ficando muito parecido com o outro que eu tinha visto na Islândia um ano e meio antes. Quando chegou a cena mais dura e impactante do filme, o cinema inteiro gritou e eu fiquei meio apático com a sensação de que eu já tinha visto aquilo em algum lugar. Eu achei que eu estava ficando maluco até que encontrei o Raphael Camacho que me disse que, um dia tinha, visto um filme Islandês que se parecia muito com o Amour. Foi um alívio ter a sensação de que eu não estava sozinho nesse mundo. Me senti como parte daquele casal do filme Yesterday que são os únicos que se lembram dos Beatles. Eu e Raphael já travamos vários debates e formulamos várias teorias, mas até hoje eu não sei se um filme inspirou o outro ou se os dois cineastas tiveram a mesma ideia. O fato é que tanto o Amour como o Volcano são dois filmes fantásticos e que merecem ser sempre vistos e redescobertos.