O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo e um grande diretor de
cinema. Kleber Mendonça Filho é diretor,
produtor, roteirista e crítico de cinema. Formado em jornalismo pela Universidade
Federal de Pernambuco, já escreveu para veículos grandes como: o Jornal do Commercio, no Recife, CinemaScópio, Revistas Continente, Cinética e o jornal Folha de S.Paulo. Diretor de dois enormes sucessos na história
recente do cinema brasileiro, Aquarius
(2016) e Bacurau (2019), em 2020 foi
escolhido para integrar o júri do Festival de Berlim. Com tantos compromissos
na agenda, Kleber arranjou um tempo e carinhosamente nos respondeu. Estamos
honrados em poder transmitir para vocês leitores esse papo feito à distância
mas que parecia que estávamos tomando um café e falando sobre cinema.
Obs: Grande Kleber, já o vi diversas vezes pessoalmente mas
falar com você é difícil pois todos querem rs. Queria muito poder ter
conversado sobre cinema com você no Cine Joia, em Copacabana, um cinema antigo
e que resiste até hoje e onde eu fui programador por alguns anos. De qualquer
forma, sempre o acompanhei à distância e continuarei acompanhando. Continue
lutando pelo bem do nosso cinema, precisamos de pessoas como você. Viva o
Cinema!
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da
escolha.
Tem três salas aqui no Recife que são uma mistura perfeita
de ambiente com programação. Os dois cinemas da Fundação, onde é impossível eu ignorar pois eu trabalhei 18 anos lá
e de uma certa forma coloquei muito da minha energia pessoal nessas salas e
hoje continuam abertas e bem cuidadas pela administração que veio depois. Eu
saí de lá em 2016 e fui trabalhar no IMS
que tem duas salas, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A terceira sala no
recife é uma sala assim acima de qualquer coisa que é o Cinema São Luiz. Abriu em 1952, é aquela sala que sobreviveu, é um
grande palácio de cinema com balcão e plateia, mil cadeiras, totalmente
equipado para a era digital e é um epicentro de cinefilia junto com os dois cinemas
da Fundação. Os três, formam uma
ideia de cinefilia fora dos multiplex mas também de toda uma movimentação em
torno do cinema feito na cidade, do cinema pernambucano. Foi no São Luiz por exemplo que Bacurau tinha fila ao redor do
quarteirão na quarta semana em cartaz. Dando 700 pessoas numa terça-feira à
tarde, exatamente como era o São Luiz
da minha infância. É um lugar realmente
que qualquer pessoa aqui no recife que gosta de cinema ama e muita gente que
vem de fora as vezes vai visitar o São
Luiz como um ponto turístico e vai lá para assistir e ter a experiência de
ter visto um filme lá. A gente aqui no Recife é muito sortudo de ter o São Luiz. Não temos muitas salas em
número, mas temos o São Luiz e os
cinema da Fundação que respondem por
muito do que acontece aqui em Pernambuco na área de cinema, o Janela também.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
De fato, foi no São
Luiz, eu tinha 3 ou 4 anos de idade e minha mãe me levou para ver uma
maratona Tom e Jerry, acho que no
início dos anos 70. E inclusive ela lembrou durante muitos anos que quando a
gente sentou para ver o filme eu perguntei para ela: “que canal é esse?”.
Então, foi no São Luiz que eu
entendi o que era essa coisa chamada cinema, onde a imagem era muito boa, muito
grande, e um lugar totalmente escuro. E muito pernambucano tem a memória de ter
ido à primeira vez no cinema no São Luiz
ver um filme.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
Eu realmente tenho muita dificuldade em responder. Não é nem
dificuldade, eu acho impossível com 51 anos conseguir definir a diretora, o diretor,
preferido. Porque você vai colecionando tantas experiências ao longo da vida de
tanta gente que faz filme e com quem você compartilha visões de mundo e visões
de cinema. Então, eu não consigo estabelecer um favorito. Eu não consigo
responder a essa pergunta. Em algum momento da vida eu poderia ter apontado esse
ou aquele, ou aquela, mas hoje eu não consigo mais. Prefiro juntar um grupo de
artistas que eu gosto muito e que eu me sinto em casa vendo os filmes deles,
num grande conjunto onde os filmes deles fazem parte da minha vida. Mas não
seria justo definir um para tanta gente que eu amo. Essa é a melhor maneira de
responder a essa pergunta.
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Minha reação é parecida com a do meu diretor favorito.
Porque o filme nacional favorito eu venho colecionando experiências no cinema
brasileiro inclusive no cinema do qual eu faço parte, e é muito difícil pra mim
declarar e isso virar um documento que o filme nacional preferido é esse ou
aquele. Eu posso dizer que eu olho com enorme amor e carinho para os filmes do Nelson Pereira do Santos, do Hector Babenco, Glauber Rocha, do Edgard Navarro, olho com muito carinho
também para filmes que Hugo Carvana
fez. É muito difícil cravar dessa forma. Então eu prefiro também tentar explicar
a resposta mas não dar uma. Eu gosto muito de filmes curtas-metragens, e de
longas-metragens, então eu não conseguiria definir de maneira tão absoluta o
meu filme brasileiro preferido.
5) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Eu acho que em termos de cultura brasileira e sociedade
brasileira, é seguro que muitos brasileiros não viram Cabra Marcado para Morrer do Eduardo
Coutinho e eu acho que a perda é da sociedade brasileira e do brasileiro em
geral. Acho um filme muito acessível e muito impressionante sobre o Brasil e
sobre a história do Brasil. E acho que faria um bem muito grande esse filme ser
exibido em escolas e universidades e ele virar uma referência que todo
brasileiro diga ou saiba dizer: eu conheço Cabra
Marcado para Morrer, vi esse filme, é muito bom. Na área de cinema muita
gente viu mas digo em termos absolutos da sociedade brasileira.
6) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
O cinema brasileiro atual, ele foi construído aos poucos com
a chegada da tecnologia digital, com o desenvolvimento de políticas públicas
inteligente, democráticas, inclusivas, diversas, ao longo dos últimos 15, 20
anos. Uma nova geração chegou para ter o que falar, ter o que filmar, ter o que
mostrar. Eu faço parte dessa geração. Minha colaboração existe, junto com
dezenas de homens e mulheres que fazem filmes como autores no Brasil e
centenas, milhares de técnicos e artistas de todos os tipos que fazem cinema no
Brasil. Nesse momento, essa construção está sendo colocada em risco por causa
de perseguições ideológicas e de um tipo de demonstração muito forte de
ignorância e estupidez que vai contra os próprios interesses do país. Eu acho
que líderes políticos que são contra a cultura do próprio país não são líderes,
são apenas políticos não muito inteligentes. Então, o cinema brasileiro hoje
ele está sendo ameaçado exatamente no auge de um crescimento e desenvolvimento
que foi fruto de muito trabalho. É exatamente isso que acho que está
acontecendo nesse momento.
7) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Sonia Braga.
8) Defina cinema com
uma frase:
O cinema é a possibilidade que você tem de dançar com a realidade.
Acho que é por aí.
9) Conte uma história
inusitada que você presenciou numa sala de cinema:
Eu escrevi sobre essa história no Cahiers du Cinéma que me pediram uma história de sala de cinema. Eu
era criança e fui ver Jesus de Nazaré,
acho que parte 2, de novo no cinema São
Luiz, e o cinema tem umas pilastras em cada lado da tela, umas colunas. Aí
tinha uma cena no filme, que Jesus está sendo interrogado pelo Pilatos, aí tem
um enquadramento que também tinham colunas onde ele estava sendo interrogado e
parecia que o filme continuava no cinema, a tela acabava na coluna do filme e
continuava na coluna do cinema.
Mas também testemunhei, acho que em 1988, quando Rambo III foi lançado, usaram uma cópia para dois cinemas: o Art Palácio
e o Trianon, no centro do Recife. Aí
contrataram uns caras para ficarem levando os rolos de filme, com a diferença
de horário entre o Art Palácio que
ficava vizinho do Trianon mas que
você tinha que descer as escadas e passar na frente do hall de entrada, sair na
calçada, dobrar a esquina e entrar no outro cinema e ainda subir as escadas e
levar para a sala de projeção onde o operador montava o filme. Aí eu estava em
uma das sessões que esse sistema entrou em colapso. Quando entrou em colapso, o
filme foi interrompido e aí começaram a quebrar o cinema.
10) Defina 'Cinderela
Baiana' em poucas palavras...
É um kitsch brasileiro absoluto.
11) Muitos diretores
de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta
precisa ser cinéfilo?
Eu realmente acredito que você não precisa ser cinéfilo para
dirigir filmes. Acho estranho alguém que faça filmes não tenha uma cultura de
cinefilia e não tenha sido formado por outros filmes. Mas eu não descarto a
possibilidade de uma pessoa que não gosta de filmes e não tenha uma cultura
cinéfila faça mesmo assim filmes bons ou interessantes. Acho que a tendência é
a pessoa fazer filmes que não são interessantes. Mas nada no cinema é muito
lógico, então eu acho que tem de tudo no cinema, tem a cinefilia que gera
grandes filmes e tem a cinefilia que gera filmes horríveis. E tem os não
cinéfilos que podem fazer bons filmes.
12) Você é uma
referência para uma legião de cinéfilos e amantes do cinema brasileiro. Que
dica você daria para você mesmo, se você hoje encontrasse o você da época que começou
a trabalhar com cinema?
Eu diria leia muito, veja muitos filmes, não tenha medo de
se expressar, seja verbalmente, seja com uma câmera e mostre o que você faz
para os seus amigos. Tenha bons amigos. Tenha grandes conversas com seus
amigos, troque ideia, e é assim que você aos poucos vai tentando encontrar o
seu pé do mundo e tentar se equilibrar. Porque o mundo te dá muitas referências
e essas referências vão construindo sua visão de mundo. Então fico muito feliz
de olhar e lembrar que muito do que eu fiz é o que eu falaria.