29/12/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #229 - Jorge Cruz Jr.


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, do Rio de Janeiro. Jorge Cruz Jr. tem 34 anos, formado em Direito, segue como advogado militante desde 2009. É graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Escreve sobre cinema desde o ano de 2008, para sites próprios e como colaborador de páginas como Pipoca Moderna e Vertentes do Cinema. Fundou ao lado de Roberta Mathias a plataforma Apostila de Cinema, uma iniciativa de promover o debate sobre o Cinema e questões pertinentes ao mesmo, levantando análises culturais, sociais e estéticas que considera centrais para o pensamento crítico da Sétima Arte Contemporânea.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Aqui no Rio de Janeiro, o espaço que melhor consegue aliar conforto e programação que atrai meu interesse (até pela quantidade de salas) é o Espaço Itaú, em Botafogo. Ao contrário de algumas pessoas, que entenderam que mitigar o circuito alternativo e ampliar filmes mais populares enfraqueceu esse ponto de cultura, para minha busca por me manter atualizado em várias frentes da produção, ali é o ideal. Consigo passar o dia, ver três ou quatro filmes diversificados sem precisar me deslocar. Porém, o Ponto Cine ainda é o espaço mais querido - e mais aconchegante pra mim. Apesar da mobilidade urbana tornar mais difícil meu deslocamento para Guadalupe - e mesmo dentro de uma galeria comercial - assistir a uma produção nacional ali tem algo próximo de um resgate.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Eu passei a infância frequentando os cinemas da Tijuca, não apenas os maiores como o Carioca e o América, mas também as salas menores e já decadentes. Minha mãe sempre me levava nas férias para ver produções direcionadas à minha faixa etária, como os desenhos da Disney, O Menino Maluquinho (1995), etc. Então, o primeiro filme que me despertou algo além da pura diversão foi quando eu assisti ao primeiro Missão Impossível (1996), com dez anos. Eu já tinha pedido para ver 007 contra Goldeneye nas férias anteriores, mas fui embarreirado. Quando finalmente consegui ver um longa "adulto", ainda mais esse com viradas na trama, que exige muita atenção, eu achei mágico. Quis rever no final de semana com meu pai - e dali em diante criamos o hábito de fazer do cinema um programa familiar, dos finais de semana - mais do que apenas uma desculpa para ter uma atividade nas férias. E dali o interesse só aumentou, comecei a comprar revistas sobre cinema e não parei mais.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Meu diretor favorito é o David Lean, é um daqueles em que os filmes, sempre que revejo, dão a sensação de reencontrar aquele amigo que conta as mesmas coisas - mas por ser um ótimo contador de histórias nos mantém hipnotizados. Meu filme favorito dele é Dr. Jivago (1965) - não sei mais se esse é o meu filme favorito, mas na filmografia do Lean ainda é o mais bonito.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Fugindo dos clássicos, que tendem a ganhar força com as constantes revisitações, eu digo Tatuagem (2013), do Hilton Lacerda. Um filme que me permitiu um reencontro com a produção nacional, que vem aprimorando linguagens e estéticas ao longo dos últimos anos de forma constante. Não que tenham filmes admiráveis da década anterior, mas amo as identidades que o cinema brasileiro encontrou nos últimos tempos.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Eu sempre imagino meu pai como exemplo de cinéfilo. Para mim, uma pessoa que usa o cinema e os filmes como um bem essencial. Não porque trabalha na área (por vezes sequer tem a pretensão). Há alguns que gostam de se aprofundar com leituras e pesquisas, mas assistem poucos filmes. Mas para muitos, como ele, nos filmes reside toda a magia. Veem três, quatro, oito no mesmo dia. E aos poucos essas referências daquelas histórias acabam se vinculado à sua própria vida. O cinéfilo é aquele cara que sempre vai usar um exemplo que viu no filme, que vai decidir a próxima viagem, a música que vai ouvir ou qualquer elemento afetuoso como uma oportunidade de resgatar a boa experiência pela qual passou em uma sala de cinema ou naquela tarde chuvosa embaixo das cobertas no sofá.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Não, sinto falta - de fato - da figura do programador em boa parte do circuito. No último mês (novembro de 2020) tivemos um exemplo dessa carência - apesar de sabermos que a motivação é mercadológica. Mesmo com um hiato de grandes lançamentos, com os estúdios maiores dos EUA adiando a chegada dos blockbusters, as salas dos shoppings optaram, em um primeiro momento, resgatar clássicos populares. Depois, manteve em cartaz produções quase obscuras norte-americanas, filmes de ação e de terror com algum ator decadente - ao invés de abrir caminho para o diferente. No caso, o diferente pode ser até mesmo ótimos filmes nacionais, os grandes vencedores dos festivais brasileiros dos últimos anos - que encontraram os locais de sempre, no circuito alternativo. Claro que estamos diante de uma ocupação de espaço, a grande indústria não quer ceder um centímetro. Mas, isso ilustrou um pouco a selvageria, um momento em que a crise de público era idêntica para todos. Um diálogo entre narrativas fora do padrão hollywoodiano, talvez, fosse a provocação que parte do público precisasse para se expor durante a pandemia. Isso poderia ser possível se os programadores do grande circuito não refletissem apenas os interesses da indústria.

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Não, as salas de cinema serão constantemente reconfiguradas, mas não acabam. Inclusive, é possível que em algum momento os grandes espaços, com mais de mil lugares, fora do ambiente tóxico de shopping, reencontre seu público. Porém, a tendência é ser cada vez mais elitizado e "nichado", por enquanto. Não vejo no curto prazo bons ventos para o parque exibidor - que precisará em breve investir na criatividade, no conceito de experiência, para se reinventar. Diante da crise econômica na qual já estamos e provavelmente nos aprofundaremos, o consumo de cultura, principalmente uma sala de cinema, terá que ser objeto de convencimento. Tendemos, sim, a ter uma geração inteira que não crie o hábito de ver o filme mais esperado por ela na sala de cinema. Assim como aconteceu com o mercado fonográfico e editorial, será preciso se adequar a uma demanda. A sorte é que o público-alvo parece maior do que essas outras mídias e a cada dez anos sempre tem uma invenção do James Cameron para tirar todo mundo de casa rs.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Vou mencionar um estrangeiro e um brasileiro de 2019/2020. Senti muito o The Last Black Man in San Francisco (2019) ter perdido força na corrida do Oscar deste ano, porque fez o filme ser pouco visto - e é um dos melhores desse filão junto com A Despedida (2019) e Fora de Série (2019). Infelizmente, há um congestionamento de produções entre dezembro e fevereiro por conta das premiações que faz todo mundo ter a mesma lista de interesses e grandes filmes como este ficam de fora.

 

Já o brasileiro, acho que Cabeça de Nêgo (2020), apesar de muito comentado na bolha que consome produção nacional e o circuito de festivais, merece ocupar outros espaços. Pela linguagem, a forma como a narrativa se desenvolve, a temática muito em voga e presente até mesmo na mídia hegemônica. Gostaria de ser surpreendido com uma campanha tão pesada quanto Bacurau (2019) teve, um trabalho espetacular de Déo Cardoso.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Sempre achei que não, acreditava que todos os esforços desde o fechamento em março deveriam ser no sentido de criar medidas protecionistas para o parque exibidor. Se não por parte do governo federal, que mesmo com as possibilidades do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) - dinheiro produzido pela indústria - e os milhares de empregos que o cinema de ponta a ponta permite, era necessário fomentar debates públicos a nível estadual e em grandes municípios. No mais, investir no desenvolvimento de plataformas de streaming confiáveis para oferecer pré-estreias, em parcerias com empresas com expertise nas redes para fazer uma política de contenção de danos.

 

Infelizmente, a cultura como um todo entrou na pandemia em uma guerra ideológica perdida. Porém - e talvez por isso mesmo - imaginava que fosse dar o exemplo crítico. Pelo contrário, mesmo mal visto pelos governantes, que criaram empecilhos para a reabertura, o esforço sempre foi no sentido de reabrir. Não julgo os pequenos e médios empresários (que, apesar de tudo, voltaram a fechar aqui no Rio de Janeiro em dezembro para uma nova suspensão de contratos de trabalho possível) - e nem mesmo o público e o cinéfilo que vai ao cinema. Mas, como responsabilidade social, não fui e não incentivei ninguém a ir - porque, apesar de toda a segurança, é uma exposição que ultrapassa a necessidade básica.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O cinema brasileiro vive uma das suas melhores fases. Um longo processo de desconstrução do seu olhar, de busca por representatividade. Muitas produções deixam de lado a exotização e os estereótipos regionalistas, realizadoras e realizadores de grupos antes silenciados conseguem espaço não apenas para produzir, como para participar de festivais. Uma proposta de cinema advinda das formações acadêmicas (e não apenas do audiovisual), que se espalhou pela análise crítica, também deu forte contribuição. Ou seja, como produto, nunca esteve melhor. Resta quebrar a lógica do acesso, da distribuição e do parque exibidor que - mesmo no circuito alternativo - dá ainda menos espaço para o novo.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Olha, são muitos que me despertam interesse imediato. Mas o Adirley Queirós talvez seja o que cria mais expectativa, ainda mais porque não sei o que se passa na cabeça dele nesse ano tão maluco no qual vivemos. Espero sempre que ele siga esse processo, esses desdobramentos da filmografia dele, que cada vez mais coloca a sociedade brasileira diante de um espelho.

 

12) Defina cinema com uma frase:

Cinema é a minha ciência e a minha fé.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Já vi em outras entrevistas, cinéfilos contando de pessoas que urinaram na sala de cinema, mas não tem como não ser essa. Aconteceu em uma sessão do Menina de Ouro (2004), no Shopping Iguatemi - e as pessoas só perceberam porque o senhor deu inúmeras voltas na sala, provavelmente tentando não sair, porque era o clímax do filme. Sinto falta também da espontaneidade das maratonas do Cine Odeon, que passavam três filmes durante a madrugada na primeira sexta-feira do mês ali por volta de 2010 - e sempre tinha alguém roncando muito alto, gargalhadas nas piores tragédias, filme parando no meio. Era o quintal da cinefilia carioca.

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

Pois é, eu confesso que eu nunca vi Cinderela Baiana (como descobri na entrevista com o Cavi Borges que o VHS foi roubado da locadora dele, talvez não tenha dado tempo de finalmente ter acesso ao clássico). Mas nunca fui chegado ao "tão ruim que é bom não". Acho que esse não consigo mais escapar rs

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Depende um pouco do tamanho do projeto. Para as grandes produções, acho que não. Por vezes, pode até atrapalhar em alguns momentos, já que o cinema é um trabalho em equipe e quem comanda as ações pode saber muito, mas dificilmente saberá tudo. Ainda mais quando a equipe é bem complexa. Grandes diretores partiram da cinefilia, têm um amplo leque de referências e isso se destaca na filmografia do Scorsese, do Tarantino, entre outros. Porém, o cinema de guerrilha exige um olhar, uma forma de resolução de problemas que o conhecimento sobre cinema pode salvar seu projeto - por isso é sempre salutar quando realizadoras e realizadores jovens demonstram que o foco nos seus trabalhos não diminuíram seu ímpeto de conhecer o panorama audiovisual. E isso é cinefilia também.

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida?

Tirando aqueles inqualificáveis, que seguiram a linha de Top Gang - Asas Muito Loucos (1991) e Todo Mundo em Pânico (2000) e banalizaram a paródia e a sátira em filmes absurdamente constrangedores, eu gosto de lembrar da grande decepção que tive em uma sala de cinema que foi, com quinze anos de idade, ver Final Fantasy (2001). Eu nunca revisitei, talvez hoje ele seja um clássico perdido. Mas nada tirou dele o título de "pior", mesmo que no calor da sessão.

 

17) Qual seu documentário preferido?

É difícil fugir dos clássicos, como Cabra Marcado para Morrer (1984) do Eduardo Coutinho, entre outros. Porém, um documentário que me marcou por compor minha formação crítica, minha visão de sociedade, foi Utopia e Barbárie (2009), do Silvio Tendler. Tinha acabado de terminar minha formação em Direito, totalmente descrente da advocacia como ofício e o filme se mostrou uma longa construção de raciocínio que me ajudou a compreender que todos os nossos fazer são políticos, mesmo que nossa ação pareça não impactar em nada a sociedade. Ou seja, a ética dos procedimentos é fundamental. Guardei ele no coração.

 

18) Você já bateu palmas para um filme ao final de uma sessão?  

Já, algumas vezes, mas geralmente em premiéres de festivais. Perdemos o hábito de fazer isso em sessões dentro do circuito comercial, acho que é parte dessa higienização curiosa da migração para as salas nos shoppings, em que qualquer interação afeta a experiência... Imagina o lanterninha entrando no meio da sessão e apontando a luz perto da nossa cadeira? O mais recente em que bati palmas foi em Aos Olhos de Ernesto (2019) de Ana Luiza Azevedo, assistido no Festival do Rio do ano passado.

 

19) Qual o melhor filme com Nicolas Cage que você viu?

Engraçado, o Nicolas Cage sempre esteve vinculado a bons momentos dentro do meu amor pelos filmes. Con Air foi o primeiro DVD que tive (veio junto com o aparelho), 60 Segundos foi minha primeira experiência em um multiplex - o Cinemark do Downtown (que infelizmente fechou), um dos poucos VHS comprados na minha vida foi estrelado por ele (Despedida em Las Vegas, uma coleção da revista Caras). Mas nada supera o encontro dele com David Lynch em o Coração Selvagem (1990). Acho que é, de longe, o melhor.

 

20) Qual site de cinema você mais lê pela internet?

Tirando a Apostila de Cinema (que por mais que a gente revise nossos comentários, sempre é possível melhorar e ter a Roberta Mathias como parceira nesse projeto e receber em primeira mão pequenas aulas sobre cinema e sociedade), eu gosto da ideia das publicações em recortes. Então sempre leio a Multiplot, a Contrabando e os artigos acadêmicos vinculados a uma temática de cinema. Mas, no dia-a-dia toda a forma de produção de conteúdo relacionado a cinema me interessa e menciono com os primeiros bons exemplos que me vieram à mente. Tanto canais em vídeo como o Entre Planos, o Cinemascope e o material do Artur Tuoto, passando por podcasts como o Filmes Clássicos, o Feito por Elas, o Plano-Sequência (que se debruçam em filmografias) até o Cinematório, Cinema na Varanda e o Central Cine Brasil (para as pautas mais quentes). Em texto, além da Isabel Wittman e da Barbara Demerov, as equipes do Papo de Cinema e do Plano Aberto sempre adicionam muito ao debate. São opiniões que sempre busco, mesmo quando discordam das minhas leituras.

Posts Relacionados: