O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.
Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, do Rio de Janeiro.
Jorge Cruz Jr. tem 34 anos, formado em Direito, segue como advogado militante
desde 2009. É graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de
Janeiro (IFRJ). Escreve sobre cinema desde o ano de 2008, para sites próprios e
como colaborador de páginas como Pipoca
Moderna e Vertentes do Cinema.
Fundou ao lado de Roberta Mathias a
plataforma Apostila de Cinema, uma
iniciativa de promover o debate sobre o Cinema e questões pertinentes ao mesmo,
levantando análises culturais, sociais e estéticas que considera centrais para
o pensamento crítico da Sétima Arte Contemporânea.
1) Na sua cidade,
qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da
escolha.
Aqui no Rio de Janeiro, o espaço que melhor consegue aliar
conforto e programação que atrai meu interesse (até pela quantidade de salas) é
o Espaço Itaú, em Botafogo. Ao
contrário de algumas pessoas, que entenderam que mitigar o circuito alternativo
e ampliar filmes mais populares enfraqueceu esse ponto de cultura, para minha
busca por me manter atualizado em várias frentes da produção, ali é o ideal.
Consigo passar o dia, ver três ou quatro filmes diversificados sem precisar me
deslocar. Porém, o Ponto Cine ainda
é o espaço mais querido - e mais aconchegante pra mim. Apesar da mobilidade
urbana tornar mais difícil meu deslocamento para Guadalupe - e mesmo dentro de
uma galeria comercial - assistir a uma produção nacional ali tem algo próximo
de um resgate.
2) Qual o primeiro
filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.
Eu passei a infância frequentando os cinemas da Tijuca, não
apenas os maiores como o Carioca e o
América, mas também as salas menores
e já decadentes. Minha mãe sempre me levava nas férias para ver produções
direcionadas à minha faixa etária, como os desenhos da Disney, O Menino Maluquinho
(1995), etc. Então, o primeiro filme que me despertou algo além da pura
diversão foi quando eu assisti ao primeiro Missão
Impossível (1996), com dez anos. Eu já tinha pedido para ver 007 contra Goldeneye nas férias
anteriores, mas fui embarreirado. Quando finalmente consegui ver um longa
"adulto", ainda mais esse com viradas na trama, que exige muita
atenção, eu achei mágico. Quis rever no final de semana com meu pai - e dali em
diante criamos o hábito de fazer do cinema um programa familiar, dos finais de
semana - mais do que apenas uma desculpa para ter uma atividade nas férias. E
dali o interesse só aumentou, comecei a comprar revistas sobre cinema e não
parei mais.
3) Qual seu diretor
favorito e seu filme favorito dele?
Meu diretor favorito é o David Lean, é um daqueles em que os filmes, sempre que revejo, dão
a sensação de reencontrar aquele amigo que conta as mesmas coisas - mas por ser
um ótimo contador de histórias nos mantém hipnotizados. Meu filme favorito dele
é Dr. Jivago (1965) - não sei mais
se esse é o meu filme favorito, mas na filmografia do Lean ainda é o mais
bonito.
4) Qual seu filme
nacional favorito e porquê?
Fugindo dos clássicos, que tendem a ganhar força com as constantes
revisitações, eu digo Tatuagem
(2013), do Hilton Lacerda. Um filme
que me permitiu um reencontro com a produção nacional, que vem aprimorando
linguagens e estéticas ao longo dos últimos anos de forma constante. Não que
tenham filmes admiráveis da década anterior, mas amo as identidades que o
cinema brasileiro encontrou nos últimos tempos.
5) O que é ser
cinéfilo para você?
Eu sempre imagino meu pai como exemplo de cinéfilo. Para
mim, uma pessoa que usa o cinema e os filmes como um bem essencial. Não porque
trabalha na área (por vezes sequer tem a pretensão). Há alguns que gostam de se
aprofundar com leituras e pesquisas, mas assistem poucos filmes. Mas para
muitos, como ele, nos filmes reside toda a magia. Veem três, quatro, oito no
mesmo dia. E aos poucos essas referências daquelas histórias acabam se
vinculado à sua própria vida. O cinéfilo é aquele cara que sempre vai usar um
exemplo que viu no filme, que vai decidir a próxima viagem, a música que vai
ouvir ou qualquer elemento afetuoso como uma oportunidade de resgatar a boa
experiência pela qual passou em uma sala de cinema ou naquela tarde chuvosa
embaixo das cobertas no sofá.
6) Você acredita que
a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas
que entendem de cinema?
Não, sinto falta - de fato - da figura do programador em boa
parte do circuito. No último mês (novembro de 2020) tivemos um exemplo dessa
carência - apesar de sabermos que a motivação é mercadológica. Mesmo com um
hiato de grandes lançamentos, com os estúdios maiores dos EUA adiando a chegada
dos blockbusters, as salas dos shoppings optaram, em um primeiro momento,
resgatar clássicos populares. Depois, manteve em cartaz produções quase
obscuras norte-americanas, filmes de ação e de terror com algum ator decadente
- ao invés de abrir caminho para o diferente. No caso, o diferente pode ser até
mesmo ótimos filmes nacionais, os grandes vencedores dos festivais brasileiros
dos últimos anos - que encontraram os locais de sempre, no circuito
alternativo. Claro que estamos diante de uma ocupação de espaço, a grande
indústria não quer ceder um centímetro. Mas, isso ilustrou um pouco a
selvageria, um momento em que a crise de público era idêntica para todos. Um
diálogo entre narrativas fora do padrão hollywoodiano, talvez, fosse a
provocação que parte do público precisasse para se expor durante a pandemia.
Isso poderia ser possível se os programadores do grande circuito não refletissem
apenas os interesses da indústria.
7) Algum dia as salas
de cinema vão acabar?
Não, as salas de cinema serão constantemente reconfiguradas,
mas não acabam. Inclusive, é possível que em algum momento os grandes espaços,
com mais de mil lugares, fora do ambiente tóxico de shopping, reencontre seu
público. Porém, a tendência é ser cada vez mais elitizado e
"nichado", por enquanto. Não vejo no curto prazo bons ventos para o
parque exibidor - que precisará em breve investir na criatividade, no conceito
de experiência, para se reinventar. Diante da crise econômica na qual já
estamos e provavelmente nos aprofundaremos, o consumo de cultura,
principalmente uma sala de cinema, terá que ser objeto de convencimento.
Tendemos, sim, a ter uma geração inteira que não crie o hábito de ver o filme
mais esperado por ela na sala de cinema. Assim como aconteceu com o mercado
fonográfico e editorial, será preciso se adequar a uma demanda. A sorte é que o
público-alvo parece maior do que essas outras mídias e a cada dez anos sempre
tem uma invenção do James Cameron para tirar todo mundo de casa rs.
8) Indique um filme
que você acha que muitos não viram mas é ótimo.
Vou mencionar um estrangeiro e um brasileiro de 2019/2020.
Senti muito o The Last Black Man in San
Francisco (2019) ter perdido força na corrida do Oscar deste ano, porque
fez o filme ser pouco visto - e é um dos melhores desse filão junto com A Despedida (2019) e Fora de Série (2019). Infelizmente, há
um congestionamento de produções entre dezembro e fevereiro por conta das
premiações que faz todo mundo ter a mesma lista de interesses e grandes filmes
como este ficam de fora.
Já o brasileiro, acho que Cabeça de Nêgo (2020), apesar de muito comentado na bolha que
consome produção nacional e o circuito de festivais, merece ocupar outros
espaços. Pela linguagem, a forma como a narrativa se desenvolve, a temática
muito em voga e presente até mesmo na mídia hegemônica. Gostaria de ser
surpreendido com uma campanha tão pesada quanto Bacurau (2019) teve, um trabalho espetacular de Déo Cardoso.
9) Você acha que as
salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?
Sempre achei que não, acreditava que todos os esforços desde
o fechamento em março deveriam ser no sentido de criar medidas protecionistas
para o parque exibidor. Se não por parte do governo federal, que mesmo com as
possibilidades do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) - dinheiro produzido pela
indústria - e os milhares de empregos que o cinema de ponta a ponta permite,
era necessário fomentar debates públicos a nível estadual e em grandes
municípios. No mais, investir no desenvolvimento de plataformas de streaming confiáveis
para oferecer pré-estreias, em parcerias com empresas com expertise nas redes
para fazer uma política de contenção de danos.
Infelizmente, a cultura como um todo entrou na pandemia em
uma guerra ideológica perdida. Porém - e talvez por isso mesmo - imaginava que
fosse dar o exemplo crítico. Pelo contrário, mesmo mal visto pelos governantes,
que criaram empecilhos para a reabertura, o esforço sempre foi no sentido de
reabrir. Não julgo os pequenos e médios empresários (que, apesar de tudo, voltaram
a fechar aqui no Rio de Janeiro em dezembro para uma nova suspensão de
contratos de trabalho possível) - e nem mesmo o público e o cinéfilo que vai ao
cinema. Mas, como responsabilidade social, não fui e não incentivei ninguém a
ir - porque, apesar de toda a segurança, é uma exposição que ultrapassa a
necessidade básica.
10) Como você enxerga
a qualidade do cinema brasileiro atualmente?
O cinema brasileiro vive uma das suas melhores fases. Um
longo processo de desconstrução do seu olhar, de busca por representatividade.
Muitas produções deixam de lado a exotização e os estereótipos regionalistas,
realizadoras e realizadores de grupos antes silenciados conseguem espaço não
apenas para produzir, como para participar de festivais. Uma proposta de cinema
advinda das formações acadêmicas (e não apenas do audiovisual), que se espalhou
pela análise crítica, também deu forte contribuição. Ou seja, como produto,
nunca esteve melhor. Resta quebrar a lógica do acesso, da distribuição e do
parque exibidor que - mesmo no circuito alternativo - dá ainda menos espaço
para o novo.
11) Diga o artista
brasileiro que você não perde um filme.
Olha, são muitos que me despertam interesse imediato. Mas o Adirley Queirós talvez seja o que cria
mais expectativa, ainda mais porque não sei o que se passa na cabeça dele nesse
ano tão maluco no qual vivemos. Espero sempre que ele siga esse processo, esses
desdobramentos da filmografia dele, que cada vez mais coloca a sociedade
brasileira diante de um espelho.
12) Defina cinema com
uma frase:
Cinema é a minha ciência e a minha fé.
13) Conte uma
história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:
Já vi em outras entrevistas, cinéfilos contando de pessoas
que urinaram na sala de cinema, mas não tem como não ser essa. Aconteceu em uma
sessão do Menina de Ouro (2004), no
Shopping Iguatemi - e as pessoas só perceberam porque o senhor deu inúmeras
voltas na sala, provavelmente tentando não sair, porque era o clímax do filme.
Sinto falta também da espontaneidade das maratonas do Cine Odeon, que passavam
três filmes durante a madrugada na primeira sexta-feira do mês ali por volta de
2010 - e sempre tinha alguém roncando muito alto, gargalhadas nas piores
tragédias, filme parando no meio. Era o quintal da cinefilia carioca.
14) Defina 'Cinderela
Baiana' em poucas palavras...
Pois é, eu confesso que eu nunca vi Cinderela Baiana (como descobri na entrevista com o Cavi Borges que o VHS foi roubado da
locadora dele, talvez não tenha dado tempo de finalmente ter acesso ao
clássico). Mas nunca fui chegado ao "tão ruim que é bom não". Acho
que esse não consigo mais escapar rs
15) Muitos diretores
de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta
precisa ser cinéfilo?
Depende um pouco do tamanho do projeto. Para as grandes
produções, acho que não. Por vezes, pode até atrapalhar em alguns momentos, já
que o cinema é um trabalho em equipe e quem comanda as ações pode saber muito,
mas dificilmente saberá tudo. Ainda mais quando a equipe é bem complexa.
Grandes diretores partiram da cinefilia, têm um amplo leque de referências e
isso se destaca na filmografia do Scorsese, do Tarantino, entre outros. Porém,
o cinema de guerrilha exige um olhar, uma forma de resolução de problemas que o
conhecimento sobre cinema pode salvar seu projeto - por isso é sempre salutar
quando realizadoras e realizadores jovens demonstram que o foco nos seus
trabalhos não diminuíram seu ímpeto de conhecer o panorama audiovisual. E isso
é cinefilia também.
16) Qual o pior filme
que você viu na vida?
Tirando aqueles inqualificáveis, que seguiram a linha de Top Gang - Asas Muito Loucos (1991) e Todo Mundo em Pânico (2000) e
banalizaram a paródia e a sátira em filmes absurdamente constrangedores, eu
gosto de lembrar da grande decepção que tive em uma sala de cinema que foi, com
quinze anos de idade, ver Final Fantasy
(2001). Eu nunca revisitei, talvez hoje ele seja um clássico perdido. Mas nada
tirou dele o título de "pior", mesmo que no calor da sessão.
17) Qual seu
documentário preferido?
É difícil fugir dos clássicos, como Cabra Marcado para Morrer (1984) do Eduardo Coutinho, entre outros. Porém, um documentário que me
marcou por compor minha formação crítica, minha visão de sociedade, foi Utopia e Barbárie (2009), do Silvio Tendler. Tinha acabado de
terminar minha formação em Direito, totalmente descrente da advocacia como
ofício e o filme se mostrou uma longa construção de raciocínio que me ajudou a
compreender que todos os nossos fazer são políticos, mesmo que nossa ação
pareça não impactar em nada a sociedade. Ou seja, a ética dos procedimentos é
fundamental. Guardei ele no coração.
18) Você já bateu
palmas para um filme ao final de uma sessão?
Já, algumas vezes, mas geralmente em premiéres de festivais.
Perdemos o hábito de fazer isso em sessões dentro do circuito comercial, acho
que é parte dessa higienização curiosa da migração para as salas nos shoppings,
em que qualquer interação afeta a experiência... Imagina o lanterninha entrando
no meio da sessão e apontando a luz perto da nossa cadeira? O mais recente em
que bati palmas foi em Aos Olhos de
Ernesto (2019) de Ana Luiza Azevedo,
assistido no Festival do Rio do ano passado.
19) Qual o melhor
filme com Nicolas Cage que você viu?
Engraçado, o Nicolas
Cage sempre esteve vinculado a bons momentos dentro do meu amor pelos
filmes. Con Air foi o primeiro DVD
que tive (veio junto com o aparelho), 60
Segundos foi minha primeira experiência em um multiplex - o Cinemark do Downtown (que infelizmente
fechou), um dos poucos VHS comprados na minha vida foi estrelado por ele (Despedida em Las Vegas, uma coleção da
revista Caras). Mas nada supera o encontro dele com David Lynch em o Coração
Selvagem (1990). Acho que é, de longe, o melhor.
20) Qual site de cinema
você mais lê pela internet?
Tirando a Apostila de Cinema (que por mais que a gente
revise nossos comentários, sempre é possível melhorar e ter a Roberta Mathias como parceira nesse
projeto e receber em primeira mão pequenas aulas sobre cinema e sociedade), eu
gosto da ideia das publicações em recortes. Então sempre leio a Multiplot, a Contrabando e os artigos acadêmicos vinculados a uma temática de
cinema. Mas, no dia-a-dia toda a forma de produção de conteúdo relacionado a cinema
me interessa e menciono com os primeiros bons exemplos que me vieram à mente.
Tanto canais em vídeo como o Entre
Planos, o Cinemascope e o material do Artur Tuoto, passando por podcasts
como o Filmes Clássicos, o Feito por
Elas, o Plano-Sequência (que se debruçam em filmografias) até o Cinematório, Cinema na Varanda e o Central
Cine Brasil (para as pautas mais quentes). Em texto, além da Isabel Wittman e da Barbara Demerov, as equipes do Papo de Cinema e do Plano Aberto sempre adicionam muito ao
debate. São opiniões que sempre busco, mesmo quando discordam das minhas
leituras.