18/08/2020

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #42 - Fabrício Duque

Nessa vida temos encontros e desencontros. A internet veio para bagunçar isso tudo e para quem é esperto conseguir se aproximar de ídolos ou apaixonados por cinema que nunca teria a chance de conhecer os pensamentos se a distância entre os dois pontos não existisse, como é agora no planeta internet. Dividir curiosidades sobre o gosto cinéfilo é um grande exercício que todos nós cinéfilos adoramos descobrir. Esse especial chega exatamente para apresentar universos diferentes do seu mas sempre com um grande amor ao cinema como o seu.

Nosso convidado de hoje é um querido crítico de cinema carioca, frequentador assíduo dos principais festivais de cinema no Brasil e no mundo, Fabrício Duque: um chato fofo e um vertenteiro inveterado (como ele mesmo se define em seu site, o ótimo Vertentes do Cinema (https://vertentesdocinema.com/). Seus textos possuem força e toda a marca cinéfila desse querido cinéfilo que todos adoram. Com vocês, meu amigo, Fabrício Duque.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Para todo e qualquer cinéfilo, o cinema é um templo de devoção. Cada sala representa uma nostalgia, uma memória, um aroma familiar. Eu, que percorria os lugares de exibição para assistir aos filmes, independente da geografia, fui iniciado no Cinema Estação, considerado o espaço mais decadentista, que junto com a Cinemateca do MAM e o Cine Joia, representa o ideal da arte pela arte. Foi lá nos cinemas de Botafogo que redescobri clássicos como François Truffaut, Éric Rohmer e obras “perdidas” durante o Festival do Rio. O Cinema Estação para mim tem cheiro, emoção e tesão. Tudo junto e misturado. Ao sentar em uma cadeira (quem me conhece sabe que sempre escolho a primeira fileira, talvez para evocar o amor “prazer dos olhos” dos Jovens Turcos) recebo uma força tão orgânica que desliga meu mundo real e me apresenta um universo que eu não quero sair.

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Eu tive um privilégio na minha vida. Um presente cultural de formação. Meus pais nunca me proibiram (tampouco censuraram) a nada. Era uma liberdade total. Lembro que o primeiro filme que assisti foi E.T. – O Extraterrestre, de Spielberg, aos seis anos no cinema que meu tio tinha na casa dele em São Paulo, durante o natal em família. Foi um acontecimento. Eu não lembro muito bem, mas minha mãe disse que eu assisti várias vezes e “perdi a noite”. Ali, naquele momento, descobri que cinema era minha vida e que eu não conseguia viver sem. Lembro também da minha mãe brigando com o bilheteiro que não me deixou assistir Carmem, de Godard. Resumo da história. Assisti duas sessões seguidas. Tinha nove anos.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Todo ano faço um balanço se meu filme favorito mudou (até para atualizar minha lista dos dez mais). Eu tenho três filmes que andam lado a lado, e todos assisti mais de vinte vezes. 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick; Acossado, de Jean-Luc Godard; e Plata Quemada, de Marcelo Piñeyro. Essa trilogia me acompanha ano após ano. E nunca perdeu o posto. Os três causam três tipos de emoção, respectivamente, existencialista (principalmente pela icônica trilha sonora), de cinefilia artística (fiquei meses fazendo o gesto de Belmondo com os dedos na boca) e de ação psicológica, extremamente humanista-carnal-cognitiva.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

É estranho, mas eu não consigo separar cinema brasileiro do cinema estrangeiro. Para mim é tudo cinema. Tudo arte. Assim como meu filme favorito da pergunta acima, todo ano faço o balanço. Escolher um filme favorito é muito subjetivo e pessoal. Pode ser um impacto, um detalhe, um gatilho identificado. Assim, Salto no Vazio, de Patricia Niedermeier e Cavi Borges, é meu filme favorito, por causa da força das imagens, da potência orgânica de sua narração, da construção despretensiosa e descontínua que abraça Jonas Mekas e John Cassavetes.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Ser cinéfilo para mim é ser atravessado por outras vidas, outras histórias, outros dramas, outras geografias. É encontrar na sétima arte a real existência. É respirar cinema o dia todo. É conversar antes e depois da sessão sobre o filme. É chegar à conclusão que é impossível dissociar o ser pessoa do ser cinematográfico. Cinema é uma tradição, um ritual, uma religião (com seus deuses na tela grande). É se surpreender, chorar, rir e "brigar" para comprovar maestrias e desapontamentos.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

Logicamente que sim. Os cinemas “de arte” só são possíveis de exibir “filmes diferentes”, porque há alguém cinéfilo nos bastidores, com uma equipe também cinéfila. É preciso que o requisito básico na contratação seja a pergunta: quais são seus filmes favoritos? Dependendo da resposta, fica ou “vaza”.

 

7)  Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Nunca. As salas de cinema não acabaram com a televisão, com as locadoras, com o streaming. A sétima arte é a arte mais completa, porque se reinventa a todo instante. Com Drive-in na pandemia e cineclubes virtuais. De novo, nunca!

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Um Homem Fiel, de Louis Garrel, que estreou 4 de julho de 2019 nos cinemas brasileiros. Uma ode a Nouvelle Vague e à cinefilia. Uma obra de arte.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a Covid-19?

 

Não. De maneira nenhuma. É uma imprudência que só atende às necessidades do mercado. Compreendo que a crise está geral. O Cine Lume do Maranhão precisa de ajuda para não fechar. O Estação também. Mas penso que o ser humano precisa aproveitar esse momento para se reconectar e resetar. E controlar a ansiedade. E ficar em casa para ajudar o retorno à “vida real”. Nada será normal novamente e não está normal no momento. Já passamos dos 100 mil mortos e nosso povo está nas ruas, nas praias, nos bares. Eu não saio de casa há mais de cinco meses. Estou querendo sair? Sim. Mas sairei? Não. Humanidade e solidariedade ao próximo, elementos essenciais.

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O que é qualidade? Como quantificar e mensurar isso? Os olhares são subjetivos. Há quem vá ao cinema para se divertir e “desligar” o cérebro. Outros vão para aprender e ter uma experiência internacional. Os dois estão certos, porque cada um sabe exatamente o gosto que tem. Eu escolho um filme para ser atravessado, ser retirado da minha zona de conforto, ser sacudido completamente. E há também a qualidade de cada gênero. Boi Neon, de Gabriel Mascaro; Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, Iran, de Walter Carvalho. Cada um possui suas características únicas. Sim, enxergo qualidade no cinema brasileiro.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

O realizador Karim Aïnouz.

 

12) Defina cinema com uma frase:

“Cinema é a fraude mais bonita do mundo”, de Jean-Luc Godard.

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema.

A história é muito inusitada, quase surreal. Durante uma das sessões do extinto (infelizmente) Cine Paissandú, um senhor levantou no meio do filme, foi para o canto, mijou olhando para a tela e voltou ao seu lugar. Todos, inclusive minha pessoa, não conseguiram mais assistir à exibição pelo odor “empesteado”, um cheiro horrível. A “figura” era conhecida dos cinéfilos e frequentadores de carteirinha por essa característica idiossincrática "impagável".

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

O que? Como? Por que? Oh Jesus amado de Salvador, eles não sabem o que fazem!

 

15) Você é criador de um dos sites de críticas mais bem avaliados por vários amigos cinéfilos que temos em comum. Como foi o início dessa sua jornada com o Vertentes do Cinema?

Está sendo uma aventura boa à beça. O Vertentes do Cinema nasceu às portas do Festival do Rio 2009, dia 17 de setembro, às 14:45 (o horário da primeira postagem), como um blog de pílulas críticas. E foi crescendo, dia-a-dia. Eu brinco que foi o melhor e o pior presente que recebi. Um trabalho de formiguinha que ganhou a atenção do público. Quase 11 anos depois eu só tenho a agradecer por trocar informações e amor incondicional pela sétima arte. Cada ano eu busco uma reinvenção, inserir novidades e categorias. Hoje, o Vertentes do Cinema consegue manter a atualização diária. A pandemia alterou a rotina, visto que dos sete colaboradores, só três permaneceram (incluindo minha pessoa). Mas novidades vêm por aí. Novos críticos já estão no processo final de seleção. E isso é maravilhoso. Essa rotatividade ajuda a sempre manter o site em movimento e fazer com que os “vertenteiros” possam voar. O Pedro Guedes, por exemplo, criou um site muito bom, Depois do Cinema. Na pandemia, foram 20 especiais e três mostras de curtas-metragens, que por sinal, representam um dos pontos essenciais. E no meio disso tudo um curso de crítica cinematográfica na Escola Lume de Cinema do Maranhão. Só finalizando, o Vertentes é acima de tudo um site de crítica. De estudo e análise.

 

16) Você, anualmente, frequenta muitos eventos de cinema. Para você, qual o melhor Festival de Cinema do Brasil? E do mundo?

Pergunta difícil. Cada festival tem um olhar diferente. O Vertentes nasceu no Festival do Rio, após eu participar desde os primeiros anos. Brasília, uma “porrada” política, Mostra de São Paulo, um respiro de arte, Mostra de Tiradentes, a força do “brasileiro”. E com quatro anos, o Vertentes resolveu “dar o passo maior que a perna” e deu certo. Primeiro festival internacional foi Cannes. Comecei bem eu acho. Depois Veio Berlim, Toronto… E não parou mais. Como disse, cada festival é especial. Cannes é um tufão enlouquecedor. Berlim, uma ode ao cinema. Toronto, uma prévia do Oscar. Assim, nacional não consigo escolher de jeito nenhum. Mas do mundo, confesso que Berlim é o meu queridinho de coração.