19/04/2021

E aí, querido cinéfilo?! - Entrevista #379 - Arthur Gadelha


O que seria de nós sonhadores sem o cinema? A sétima arte tem poderes mais potentes do que qualquer superman, nos teletransporta para emoções, situações, onde conseguimos lapidar nossa maneira de enxergar o mundo através da ótica exposta de pessoas diferentes. Por isso, para qualquer um que ama cinema, conversar sobre curiosidades, gostos e situações engraçadas/inusitadas são sempre uma delícia, conhecer amigos cinéfilos através da grande rede (principalmente) faz o mundo ter mais sentido e a constatação de que não estamos sozinhos quando pensamos nesse grande amor que temos pelo cinema.

 

Nosso entrevistado de hoje é cinéfilo, de Fortaleza (Ceará). Arthur Gadelha tem 24 anos, é produtor audiovisual do Jornal O Povo e presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine), foi um dos autores da Revista Movimento, curador da última edição do Festival de Jericoacoara e integrou júris da crítica em festivais como Cine Ceará, For Rainbow e Noia. Ministrou palestras, cursos e oficinas na área crítica, e dirigiu três curtas-metragens: Distante (2015), Como Chegamos Aqui (2016) e Capitais (2018), codirigido com Kamilla Medeiros e vencedor de Melhor Filme Universitário do 51º Festival de Brasília.

 

1) Na sua cidade, qual sua sala de cinema preferida em relação a programação? Detalhe o porquê da escolha.

Não há dúvidas de que a Sala 2 do Cinema do Dragão é minha favorita. A começar pelo formato: por não ser nem grande, nem pequena, há um aspecto bastante acolhedor, um local que antes da pandemia era minha segunda casa. Não à toa o maior evento cinéfilo do ano acontece neste cinema, que é a Mostra Retroexpectativa, programação que acontece sempre em janeiro exibindo filmes do ano anterior e filmes que ainda serão lançados. Há um cuidado de curadoria muito bonito. 

 

2) Qual o primeiro filme que você lembra de ter visto e pensado: cinema é um lugar diferente.

Num sábado à tarde, minha mãe me levou ao centro da cidade para assistir Harry Potter e o Cálice de Fogo (2004) no cinema mais antigo da cidade (e que existe até hoje), o Cineteatro São Luiz Fortaleza, local onde hoje acontece o Cine Ceará. Um clássico cinema de rua com direito a letreiro físico da programação e tudo. Percebi ali que o cinema era um acontecimento, um evento a ser respeitado como tal, quase um culto. A imperiosa sala do São Luiz dava essa sensação que, somada à minha ansiedade em ver o filme, concretizou a paixão em mim.

 

3) Qual seu diretor favorito e seu filme favorito dele?

Essa pergunta muda todo mês de resposta. Já foi Terrence Malick, Lucrécia Martel, Leon Hirszman, André Novais de Oliveira, mas hoje, nesse momento tão suspenso que ainda estamos atravessando, te responderia que é o Béla Tarr. Com ares de Tarkovski, o cinema dele, porém, não é transcendental, espiritual ou metafísico. Não fala de Deus, da angústia íntima, nem do passado ou do futuro. São filmes que desafiam o tempo enquanto traçam um vazio supremo na realidade, na vida, é um cinema tão melancólico quanto contraditoriamente esperançoso. Meu filme favorito dele ainda é As Harmonias de Werckmeister (2000), principalmente pelo personagem do Janós, andarilho de uma cidade sitiada e acanhada, testemunha de uma repressão da qual não faz parte. Um filme nada óbvio que me desconcerta sempre.

 

4) Qual seu filme nacional favorito e porquê?

Eles Não Usam Black Tie (1981), do Leon Hirszman. Adaptação de uma peça, esse filme é um assombro de roteiro e interpretação e, de fato, me assusta muito o quanto sempre é um filme contemporâneo. Na história, há um conflito entre pai e filho operários que discordam quanto a influência de uma greve para exigir respeito trabalhista. É um conflito dramático por si só que já renderia se fosse apenas um monólogo. Mas Leon recria uma dramatização desconcertante, sabe usar o máximo da potência do elenco: Fernanda Montenegro, Bete Mendes, Carlos Alberto Riccelli, Gianfrancesco Guarnieri... Indico sempre. Reassisto sempre. Acho que é um filme assustadoramente brasileiro.

 

5) O que é ser cinéfilo para você?

Na real, eu acho que ser cinéfilo é viver a angústia de uma linguagem infinita. Se eu não fosse cinéfilo, eu não perderia o sono ao perceber que morrerei ser ter visto 2% dos filmes produzidos, sem ter conhecido o contexto cultural dos vários cinemas em construção em cada um dos países que existem. Sabe? Isso é angustiante de verdade. Todo canto tem gente experimentando um novo tipo de cinema, contando histórias particulares, e acho que ser cinéfilo é ter a consciência dessa imensidão e ter vontade de ir mergulhando por aí, entender que o "cinema" não é só o que chega, não é uma ferramenta que atende a poucas perspectivas. Ser cinéfilo é entender a ignorância indissociável ao fato de ter os filmes como memórias de seus tempos, manifestações de pesos culturais tão grandiosos quanto aos quadros, as esculturas. É claro que esse processo é divertido ao se converter em entretenimento, mas o cinéfilo está sempre buscando entendê-lo para além disso.

 

6) Você acredita que a maior parte dos cinemas que você conhece possuem programação feitas por pessoas que entendem de cinema?

De forma abrangente, eu acredito que sim. Cinema é um evento cultural e o "conhecimento" não se atém apenas à linguagem como tal, mas também no pensamento de plateia, de contexto, então acho que numa visão geral claro que sim. Agora, se a discussão for sobre pessoas que põem em prática a curadoria na essência da palavra, de "curar", compreender os filmes como perspectivas de diálogos, reflexões e discussões, para além do critério financeiro, aí sim eu diria que são poucos. Os programadores de cinema de shopping entendem tanto os seus públicos quanto o programador da Sala 2 do Cinema do Dragão, por exemplo. São públicos e objetivos diferentes. É uma pena que a distância de atenção, dimensão e aporte seja absurdamente desigual.

 

7) Algum dia as salas de cinema vão acabar?

Impossível. Agora assim: se há 50 anos as salas eram a única maneira de ver novos filmes e hoje, definitivamente, não estão sozinhas, é claro que estamos passando por uma mutação - e a pandemia veio escancarar isso. Mas todo mundo concorda que a experiência da sala de cinema, tanto artística quanto social, é insubstituível. Isso me parece inegociável. Se essa sensação vai perder espaço central (coisa que eu também não acho que vá acontecer no meu tempo de vida), aí é coisa que deixamos para o futuro responder.

 

8) Indique um filme que você acha que muitos não viram mas é ótimo.

Linz - Quando Todos os Acidentes Acontecem (2013). Um filme cearense belíssimo, que inclusive está no youtube. A história parece que já nasce na fábula e acho isso incrível: um homem que vai fazer uma entrega em Tatajuba, cidade praiana próxima a Jericoacoara que foi sumindo à medida que o vento mudava as dunas de lugar. Então ele vai desaparecendo aos poucos tal qual a cidade e as pessoas que existiam ali. É um trabalho incrível, e bastante modesto, sobre pertencimento, tempo, sentimento que me lembra muito a última aventura niilista do Béla Tarr.

 

9) Você acha que as salas de cinema deveriam reabrir antes de termos uma vacina contra a covid-19?

Não. É um ambiente tão fechado e propício à circulação de ar...

 

10) Como você enxerga a qualidade do cinema brasileiro atualmente?

O Cinema Brasileiro é como um organismo vivo. Claro que se poderia falar isso de muitos cinemas, mas eu destaco esse pensamento para o que a gente produz porque eu amo perceber que não temos "uma cara". O nosso cinema não caminha pra ter uma identidade, não se importa com qualquer unicidade técnica ou narrativa, nossos filmes são muito particulares! Se já há um abismo entre os filmes sudestinos dos nordestinos, por exemplo, dentro das regiões é que as coisas se dividem ainda mais. Nosso cinema se preocupa em atualizar os conflitos étnicos da história dentro da contemporaneidade, nosso cinema sabe sonhar e viver fantasias, sabe construir horrores, sabe ficcionar e documentar as transformações políticas, sociais e urbanas. Tudo isso em formas particulares. Vale ressaltar, inclusive, que essa pluralidade pulsa muito mais nos curtas-metragens, filmes tão pouco difundidos para além dos festivais. Fazemos um trabalho invejável.

 

11) Diga o artista brasileiro que você não perde um filme.

Nos últimos anos venho me impressionando bastante com o trabalho da atriz e diretora Grace Passô. Sinto que a fisicalidade dela é um elemento sem parâmetro na história do cinema brasileiro, então todo novo trabalho em que ela está envolvida já pisca um alerta aqui em mim. Ano passado, seu curta-metragem "República" balançou com toda a comunidade cinéfila - e é um filme de quarentena gravado no próprio quarto, atuado apenas por ela mesma. Daí você percebe o nível de performance que essa artista tem.

 

12) Defina cinema com uma frase:

Vou deixar uma citação do Béla Tarr sobre a relação do cinema com o tempo:

"O tempo, de qualquer forma, faz parte da nossa vida. Tempo e espaço, e você não pode ignorá-lo. Eu sei que a maioria dos filmes está ignorando o tempo, porque eles estão apenas passando o enredo, estão apenas contando a história. Mas não sabemos o que está acontecendo no mundo, realmente. E eu estou interessado no mundo, não apenas em filmá-lo" — Béla Tarr

 

 

13) Conte uma história inusitada que você presenciou numa sala de cinema:

Inesquecível a experiência de assistir ao filme paraibano "Sol Alegria", de Tavinho e Mariah Teixeira, na Sessão da Crítica promovida pela Associação Cearense de Críticos de Cinema dentro do 28º Cine Ceará, no Cinema do Dragão. Ao contar a história de refugiados políticos num convento de freiras que vangloriam o prazer sexual e cultivam canabis... o filme encontra na comédia um riso de autojulgamento. Rir da destruição da moralidade faz parte do contexto. Durante esse tempo, a sessão foi um ótimo teste sobre a recepção porque pouca gente ali sabia qual o verdadeiro tom da obra, e ninguém se sentiu à vontade de rir, seja por vergonha ou constrangimento inesperado. Com esse julgamento imediato, a obra coloca a plateia mais próxima da repressão conservadora do que da liberdade; uma contradição curiosa de se testemunhar.

 

 

 

14) Defina 'Cinderela Baiana' em poucas palavras...

O nosso Plano 9 do Espaço Sideral.

 

15) Muitos diretores de cinema não são cinéfilos. Você acha que para dirigir um filme um cineasta precisa ser cinéfilo?

Não acho que precise impor qualquer obrigação sobre alguém que queira filmar. Quem quer filmar, e tem ferramentas para isso, filma, e tá tudo bem. Porque imagina só se uma pessoa sem acesso às bibliotecas oficiais ou clandestinas de cinema tiver a oportunidade de, mesmo assim, produzir um filme? Claro que, do lado de cá, talvez a plateia perceba quando um filme é desconectado da realidade cinematográfica que o precedeu - aí o julgamento ganha ares improváveis.

 

 

 

16) Qual o pior filme que você viu na vida?

A Serbian Film. Odeio tanto a experiência traumática desse filme que nem vou me ater muito a falar sobre ele. Digo apenas que é um filme que se transforma em algo desonestamente pior do que aquilo que "acusa".

 

17) Qual seu documentário preferido?

Essa resposta é complicada para se dar assim de forma tão solitária. Então vou te responder com o último documentário impressionante que assisti: Babenco - Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, da Bárbara Paz. Dando adeus às cabeças falantes e a rebuscada cronologia para retratar a relevância do diretor argentino-brasileiro, esse filme é como uma carta de amor que ganhou forma e, de repente, pareceu boa ideia compartilhá-la com o mundo. Quem conta a vida e morte de Babenco é ele mesmo, seus filmes e, em certo grau, este se torna um projeto dividido emocionalmente com quem o dirige. Sobre a lucidez do diretor diante do fim da própria vida e a necessidade de torná-la cinema, Bárbara constrói uma ficção desse sentimento atravessado pelas obras e, principalmente, pelo amor dos dois. Mesmo que seja sobre a morte do marido, essa história é muito mais sobre o que ficou vivo; sejam os filmes, as memórias ou até mesmo as ilusões.

 

18) Você já bateu palmas para um filme ao final de uma sessão?  

Eu já bati palma até no meio do filme hahaha Eu nunca esperei fazer isso na vida, mas foi absolutamente inevitável. Foi na sessão de pré-estreia de Bacurau, aqui em Fortaleza, com a presença dos diretores Kléber e Juliano. A plateia reagiu de forma muito fervorosa durante todo o filme e eu não tive escolha. Ali o cinema se tornou um corpo só, vivo e bastante barulhento. Foi emocionante e único.

 

19) Qual o melhor filme com Nicolas Cage que você viu?

Presságio. Amo esse filme, apesar do desfecho pavoroso!

 

 

20) Qual site de cinema você mais lê pela internet?

Gosto de ser assíduo em sites cujas linguagens são amplamente distintas. Então a Revista Cinética, Cinema em Cena, Multiplot!, Cinema Escrito... São alguns desses sites.