Quando nada é o que parece ser. Despretenciosamente chegou no catálogo da Netflix nesses últimos dias um suspense espanhol que por meio de uma narrativa pra lá de detalhista consegue transformar em um espetáculo cinematográfico as minuciosas linhas de uma obra (Los Renglones Torcidos de Dios) de 409 páginas, escrita em 1979 pelo jornalista Torcuato Luca de Tena, que entre outros pontos desossa as esquinas umbrosas da mente humana de forma a manter nossa atenção por quase três horas de projeção. Dirigido pelo excelente cineasta espanhol Oriol Paulo, que já conquistara a atenção dos cinéfilos em outros dois filmes misteriosos que também estiveram no catálogo da Netflix (Um Contratempo e Depois da Tormenta), As Linhas Tortas de Deus é uma jornada hipnotizante, que requer muita atenção do espectador, onde cada um pode interpretar de forma diferente seu desfecho arrepiante.
Na trama, conhecemos Alice (Bárbara Lennie, simplesmente fabulosa no papel) uma investigadora
muito inteligente, que está em um momento conturbado no relacionamento com o
marido, e resolve aceitar uma investigação de um crime em um hospital psiquiátrico.
Para tal, resolve inventar uma personagem com determinado sintoma (aqui, a
paranoia) e se internar por livre e espontânea vontade. Durante sua estadia
nesse lugar, investigando de perto médicos e pacientes, passará por situações
onde descobrirá segredos que aos poucos vão colocando tudo que ela própria
pensa em xeque.
Uma minutagem que se justifica. Com quase três horas de
duração esse eletrizante suspense encaixa suas peças com muita calma dentro do
labirinto que se torna o ponto de vista da protagonista. Num primeiro momento,
compramos a ideia de que estamos assistindo os rumos de uma investigadora em
busca da solução de determinada situação mas com as surpresas que a narrativa
coloca no filme há um desembocar em uma estrada contraditória, onde, com tudo
que reunimos de informações, precisamos escolher entre uma internação forçada
ou um intenso distúrbio mental (pode ser que encontrem argumentos até mesmo
para as duas questões em conjunto). Oriol
Paulo sabe como poucos na atualidade dentro do audiovisual levar o
espectador até as garras das surpresas, do choque das reviravoltas, dos
impactantes e interpretativos desfechos.
Há vários fatores que nos levam para o tão aguardado Plot
Twist que se modela a história. A descrença da própria protagonista quando
paralelos com o lado maternal são acionados através das descobertas do real
foco da investigação é um ponto a ser refletido, até mesmo a falta de clareza
no relacionamento com o marido. Nessas partes, podemos até não saber com exatidão
na hora, mas já entramos no campo dos sentimentos e percepções da psique humana
principalmente no acionamento de um provável mecanismo de defesa de um
inconsciente em conflito dentro de uma fantasia. As Linhas Tortas de Deus é um fascinante estudo sobre a mente, um
filme que é um deleite para psicólogos e amantes dos estudos sobre os processos
mentais.