18/12/2022

Crítica do filme: 'As Linhas Tortas de Deus'


Quando nada é o que parece ser. Despretenciosamente chegou no catálogo da Netflix nesses últimos dias um suspense espanhol que por meio de uma narrativa pra lá de detalhista consegue transformar em um espetáculo cinematográfico as minuciosas linhas de uma obra (Los Renglones Torcidos de Dios) de 409 páginas, escrita em 1979 pelo jornalista Torcuato Luca de Tena, que entre outros pontos desossa as esquinas umbrosas da mente humana de forma a manter nossa atenção por quase três horas de projeção. Dirigido pelo excelente cineasta espanhol Oriol Paulo, que já conquistara a atenção dos cinéfilos em outros dois filmes misteriosos que também estiveram no catálogo da Netflix (Um Contratempo e Depois da Tormenta), As Linhas Tortas de Deus é uma jornada hipnotizante, que requer muita atenção do espectador, onde cada um pode interpretar de forma diferente seu desfecho arrepiante.


Na trama, conhecemos Alice (Bárbara Lennie, simplesmente fabulosa no papel) uma investigadora muito inteligente, que está em um momento conturbado no relacionamento com o marido, e resolve aceitar uma investigação de um crime em um hospital psiquiátrico. Para tal, resolve inventar uma personagem com determinado sintoma (aqui, a paranoia) e se internar por livre e espontânea vontade. Durante sua estadia nesse lugar, investigando de perto médicos e pacientes, passará por situações onde descobrirá segredos que aos poucos vão colocando tudo que ela própria pensa em xeque.


Uma minutagem que se justifica. Com quase três horas de duração esse eletrizante suspense encaixa suas peças com muita calma dentro do labirinto que se torna o ponto de vista da protagonista. Num primeiro momento, compramos a ideia de que estamos assistindo os rumos de uma investigadora em busca da solução de determinada situação mas com as surpresas que a narrativa coloca no filme há um desembocar em uma estrada contraditória, onde, com tudo que reunimos de informações, precisamos escolher entre uma internação forçada ou um intenso distúrbio mental (pode ser que encontrem argumentos até mesmo para as duas questões em conjunto). Oriol Paulo sabe como poucos na atualidade dentro do audiovisual levar o espectador até as garras das surpresas, do choque das reviravoltas, dos impactantes e interpretativos desfechos.


Há vários fatores que nos levam para o tão aguardado Plot Twist que se modela a história. A descrença da própria protagonista quando paralelos com o lado maternal são acionados através das descobertas do real foco da investigação é um ponto a ser refletido, até mesmo a falta de clareza no relacionamento com o marido. Nessas partes, podemos até não saber com exatidão na hora, mas já entramos no campo dos sentimentos e percepções da psique humana principalmente no acionamento de um provável mecanismo de defesa de um inconsciente em conflito dentro de uma fantasia. As Linhas Tortas de Deus é um fascinante estudo sobre a mente, um filme que é um deleite para psicólogos e amantes dos estudos sobre os processos mentais.