Quando a última saída é a solidão. Tendo como elemento importante para uma reviravolta chave um fato real marcante ocorrido na Argentina em julho de 1994, o longa-metragem Descanse em Paz, nos apresenta um doloroso personagem principal com um enorme peso na alma que a partir de suas escolhas vê rotações constantes de seu mundo. Dirigido pelo cineasta Sebastián Borensztein, produzido por Ricardo Darín e baseado na obra Descansar en paz: ¿nunca soñaste con dejar todo y empezar de nuevo? de Martín Baintrub, esse longa-metragem argentino enumera reflexões sobre várias formas de tragédias e suas consequências.
Na trama, conhecemos Sérgio (Joaquín Furriel) um empresário de classe média, pai de dois filhos
e casado com a dentista Estela (Griselda
Siciliani). Em meados da década de 90, sua situação é alarmante, dívidas e
mais dívidas se acumulam na sua frente, a mais complicada delas é a que fez com
um agiota chamado Brenner (Gabriel Goity),
esse último, um homem inescrupuloso que começa a ameaçar o protagonista.
Buscando alguma luz no fim do túnel, certo dia acaba passando na hora e lugar
de um atentando à associação Israelita (AMIA). Aproveitando a oportunidade em
meio ao caos instaurado, resolve fugir e acaba durante anos se afastando de
tudo e todos. Mas quando a vontade de reencontrar seus parentes bate à sua
porta, uma série de consequências acontecem.
O destino é traiçoeiro, o acaso uma oportunidade. Com uma
construção ligada ao foco no emocional destroçado de um homem e sua brusca
mudança de vida somos jogados para uma trama bem amarrada, onde a narrativa se
desenvolve de forma objetiva rumando gradativamente para os fortes conflitos
que se seguem a cada passo do protagonista. A fotografia do filme merece
destaque, a atmosfera das emoções ligadas aqui à uma solidão forçada são vistas
em cada canto captado pelas imagens.
A trajetória do personagem principal acaba estando associada
à muitos argentinos na questão econômica, numa década de 90 ainda preocupante
com os índices altíssimos de inflação, altos riscos em rendimentos de tempo
curto, além das manobras político-econômicas que se amontoavam na frente da
população. Pensando nesse ponto, é possível enxergar uma crítica interessante a
todo esse cenário mesmo que uma contextualização não seja efetivamente
mostrada. Taxado por muitos como caloteiro, o protagonista é um reflexo de seu
próprio país.
Antes de entrar na ficção e prestes a começar o segundo
momento da jornada de seu personagem principal, o roteiro encosta na realidade
ao retratar o atentado mais mortal em solo argentino, o ataque inesperado na
Rua Pasteur à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) em julho de 1994,
que deixou centenas de feridos e dezenas de mortes. Uma página triste da
história de nossos Hermanos.
O ‘descansar em paz’ do título é algo que ficamos pensamos
sobre. O amor vira saudade, a escolha vira desilusão, o sentido de família é
congelado. Existe realmente alguma paz nesse descansar? Sentimentos antagônicos
vão se misturando apresentando diversos olhares
para a tragédia pessoal de um homem que nunca soube lidar com seus conflitos e
deixando margens para mais reflexões. Exibido pela primeira no Festival de
Málaga, no início desse mês, Descanse em
Paz chegou ao mais poderoso dos streamings, a Netflix.