Coração de mãe, sempre cabe mais um. Explorando o início, meio e fim da década de 80 numa França agitada em vários campos, na visão de uma mulher com um lado maternal forte, o cineasta parisiense Mikhaël Hers nos apresenta um longa-metragem quase em forma de crônicas que coloca a família no centro dos conflitos. Exibido no Festival do Rio 2022, o drama intimista Noites de Paris é protagonizado pela atriz Charlotte Gainsbourg.
Na trama, conhecemos Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), uma mulher de fala mansa, culta, que estudou
psicologia e se separou recentemente de um homem que a abandonou. Ela mora com
os filhos, Judith (Megan Northam) e Mathias
(Quito Rayon Richter) num belo
apartamento, com uma esplendorosa vista para uma grande cidade francesa. Mas a
situação deles não é tão confortável assim, passando por várias fases e apertos
financeiros. A protagonista tem certa dificuldade de adormecer, nessas horas assiste
a um programa no rádio e tempos depois, quando procurava diariamente um
emprego, acaba conseguindo um trabalho na equipe desse programa. Um dia, durante
o período em que busca um mais amplo sentido para sua trajetória, chega na vida
dessa família Talulah (Noée Abita),
uma jovem que tem problemas com drogas que acabará se sentindo aceita nessa
família, mesmo com idas e vindas ao longo de toda a década de 80.
Numa época em que os cinemas franceses não deixavam ninguém
mais entrar nas sessões após cinco minutos do início do filme, é o pontapé
inicial dessa história onde já conhecemos a protagonista em um momento onde
sente que precisa estar próxima dos filhos, ou até mesmo saber ouvir o que eles
tem a dizer sobre ela. Há um foco na mãe e no filho (a filha é apenas uma
figurante na história). A relação maternal é uma constante evidente que ganha
novos caminhos com a chegada de Talulah. Elisabeth se identifica com ela muito
por conta da fragilidade (que na protagonista até se desenvolve em coragem ao
longo do tempo), algo que as duas tem em comum. A linha temporal segue por
dentro da década de 80 onde conflitos ligados à pais e filhos são vistos.
Com um roteiro escrito por três pessoas, uma delas o próprio
diretor, percebemos que possa haver uma certa proximidade do mesmo com pelo
menos uma parte do que assistimos. A ideia do programa de rádio, por exemplo,
um importante momento na trajetória da protagonista, foi adaptado a partir de
memórias de Hers sobre um programa antigo, da década de 70, que ficou 20 anos
no ar e era exibido ao vivo pelo rádio madrugada à dentro.
O cinema também tem seu cantinho no roteiro, num momento
metalinguístico onde até um dos melhores filmes de Nicolas Cage, Birdy (Asas da
Liberdade, no Brasil) é a escolha dos personagens para assistirem. A arte
parece andar com os personagens que são muito ligados às questões culturais que
se desenvolvem na cidade luz. O gosto pela poesia e a escrita de um dos
personagens acaba sendo algo que faz parte da trajetória, em todos os momentos,
dos diálogos mais felizes da família.
Indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim e rodado
quase todo no bairro Beaugrenelle, em Paris, lugar construído na década de 70, Noites de Paris nos trás uma série de lições
que podem servir de reflexão, principalmente para quem, com medo de perder,
mantém vivas memórias passadas sem conseguir viver o presente.