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13/10/2023

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Crítica do filme: 'How to Have Sex'


Recortando a juventude e as badalações de uma fase de transição para a vida adulta com um alvo em expectativas, além de toda a frustração que chega de forma traumática, How to Have Sex é um poderoso drama que encosta no suspense, nos abalos psicológicos provocados pela violência contra a mulher. Dirigido pela cineasta britânica Molly Manning Walker, de apenas de 30 anos, em seu primeiro longa-metragem, o projeto tem uma reviravolta angustiante trazendo a reflexão sobre um forte tema.


Na trama, conhecemos três adolescentes britânicas que já pensando no futuro após a conclusão do ensino médio embarcam em uma viagem para Mália, na Grécia, um lugar paradisíaco de aventuras, bebedeira, possibilidades de relações. Só que uma delas, Tara (Mia McKenna-Bruce), começa aos poucos a perceber que a alegria e descobertas que esperava se transforma num enorme pesadelo com abalos traumáticos que levará por toda a vida.  


A narrativa esconde muito bem o que de fato traz pra refletir. O primeiro ponto é a amizade, um laço profundo aqui representado por três amigas que no meio do descontrole de um lugar sem limites vão descobrir mais sobre uma a outra. A sexualidade, a ação e inconsequência, a inveja, são tópicos que se somam. Poderia ser mais um filme sobre a juventude e o descontrole de ações impensadas. Mas o filme é muito mais que isso. Após um fato, a grande reviravolta do roteiro, começamos a caminhar no desespero de uma personagem que revela sua aflição pelo olhar e não se sente bem mais ali naquele lugar, transformando a alegria em uma marca para sempre de tristeza e aflição.


Um novo olhar para o mundo chega para Tara, a real protagonista dessa história. E tudo isso é mostrado com sequências que parecem confrontar sua nova visão sobre as relações, sobre os homens, o consentimento, o sexo, sobre o lugar onde está e também sobre as amizades com as duas amigas. A direção de Molly Manning Walker é estupenda, capta as emoções com maestria juntamente com uma trilha sonora que parece chegar como um complemento para tudo que assistimos.


Premiado no Festival de Cannes 2023, How to Have Sex estreia dia 15 de novembro nos cinemas e logo após entra no catálogo da MUBI.



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19/10/2022

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Crítica do filme: 'O Milagre'


Um mistério ligado à fé ou os deslizes pelas imperfeições da natureza humana? Exibido no Festival de San Sebastian desse ano, The Wonder nos leva para uma investigação profunda sobre o ser humano, mais profundamente em um recorte de um vilarejo que presencia uma situação incomum de uma jovem que deixou de se alimentar e continua viva. Seria isso um milagre ou alguma falcatrua ideológica que encosta nas interpretações da fé?  O excelente cineasta chileno Sebastián Lelio (de sucessos como: Desobediência, Uma Mulher Fantástica, Gloria) brilha na direção. Há um impacto sobre a narrativa, o modo como é contada essa história, desde a primeira cena que abre um leque de possibilidades. No papel da protagonista, uma das melhores atrizes da atualidade Florence Pugh, que mais uma vez desfila seu talento.


Na trama, ambientado por volta de 1860, na região de Midland, na Irlanda, conhecemos a enfermeira Lib (Florence Pugh, em mais uma destacada atuação), uma mulher com um pensar à frente do seu tempo que é selecionada por um conselho para ir até uma pequena vila e investigar algo de inusitado que está acontecendo: uma jovem de onze anos chamada Anna (Kíla Lord Cassidy) não se alimenta faz meses e continua viva, se tornando famosa na região e recebendo turistas, peregrinos, que querem presenciar esse possível milagre. Os que mandam e desmandam nesse vilarejo também estão de olho nessa situação, até mesmo os que defendem o lado religioso. Aos poucos, a enfermeira vai conhecendo melhor essa história, principalmente da família da jovem, e assim muitas surpresas vão aparecer durante sua estadia na região levando-a a dilemas.


Baseado em livro lançado em 2016, escrito pela irlandesa Emma Donoghue (que já teve adaptado para cinema outra de suas obras, A Quarto de Jack), The Wonder é um projeto que une um potente, impactante e artístico longa-metragem com apontamentos à assuntos como violência, a religião (aqui figura da fé) e o lado maternal, nesse último ponto um contraste entre o trauma e o poder das escolhas. O filme prende atenção. Seus mistérios são dissolvidos aos poucos dentro de uma chamativa narrativa (prestem bastante atenção desde os primeiros minutos de projeção) que nos apresenta um ponto de vista de uma protagonista com um passado que acaba a aproximando da situação presente que vive. Lelio detalha ao público seu inteligente olhar sobre as relações, aqui num foco maternal.


Thriller psicológico, drama familiar? O filme pode até ficar confuso se pararmos para associar sobre uma batalha entre o bem e o mal, mas não deixa de ter um certo sentido quando se revelam seus mistérios. Mas o projeto é mais profundo que isso. As imperfeições do ser humano aqui são descascadas, como se máscaras caíssem, em uma investigação também sobre o ser humano, os limites, o lado sombrio. The Wonder chega deve chegar ainda esse ano na Netflix, um filme que vai dar o que falar!



 

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16/10/2022

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Crítica do filme: 'Living'


É preciso saber viver... Adaptação britânica de um filme chamado Viver do genial cineasta japonês Akira Kurosawa, Living é um emocionante drama que nos mostra o recorte final de uma estrada dentro de um universo de possibilidades que se abrem, quando enxergar-se outros sentidos para vida, na trajetória de um burocrata que busca servir de exemplo, sem tempo para raivas ou arrependimentos. O cineasta sul-africano Oliver Hermanus consegue chegar à sua obra-prima da carreira, emocionando o público ao longo de inesquecíveis 102 minutos de projeção. As atuações de Bill Nighy e Aimee Lou Wood (a Aimee de Sex Education) são estupendas! Living pode ser a grande surpresa do próximo Oscar!


Baseado fielmente nas linhas escritas na década de 50 por Kazuo Ishiguro e Akira Kurosawa (só trazendo os paralelos para a Inglaterra), na trama conhecemos o Sr.Williams (Bill Nighy), um homem que trabalha quase toda vida no funcionalismo público, mais precisamente no departamento de obras públicas. Esse homem de fala mansa, pacato, parece ter um cotidiano robótico, monótono, com as responsabilidades bem demarcadas e um relacionamento distante com os filhos. No dia em que recebe a notícia de que está com uma doença terminal e tem poucos meses de vida, praticamente vê o filme de sua vida passar pelas suas memórias e nos dias seguintes vai buscar novos caminhos para sua estrada, se envolvendo em novas relações interpessoais e experiências, mesmo com o pouco tempo de vida que ainda tem.


A visão do outro sobre a situação do protagonista é fundamental para que o filme encontre sentido aos nossos olhos. Os ótimos coadjuvantes que compõe a mesa de trabalho do departamento do Sr. Williams contribuem para uma rápida construção do maçante momento do seu dia a dia. Uma dessas personagens, a sonhadora e atenciosa Margareth (Aimee Lou Wood, em grande atuação) parece entrar em uma desconstrução quando passa a olhar de forma diferente para o chefe, num primeiro momento um zumbi, depois a delicadeza e a troca mútua o transformam em um realizador de momentos. Há um mutualismo nítido nessa relação, um chega com a atenção, o outro com exemplos de sua vasta experiência. Cenas emocionantes surgem nesses diálogos.


O protagonista se apega nas memórias para de libertar, no início é uma navegação sozinha, solitária. Partindo do cotidiano do trabalho, rotina bem construída pelo roteiro, vamos entendendo alguns porquês perdidos na personalidade tímida que muitas vezes não parece ter forças para um sonhar. A disciplina que se mistura com a mesmice, logo se transforma em agarrar o pouco tempo de vida que ainda tem. Ele experimenta a boemia, o presentear pessoas de bem, tirar do estado de indecisão uma obra de um parque que se concluída vai gerar futuras lembranças em outros. Em falar em lembranças, é exatamente por aí o início de seu despertar. Uma das cenas mais lindas de 2022, esse homem sentado em um balanço, sabendo que já se vai, uma emoção que transborda para nossos corações, quanta coisa é dita apenas com o olhar. Nesse momento (e em tantos outros) brilha o veterano Bill Nighy. Não há palavras para definir essa atuação.


Living chega com muita força na corrida ao próximo Oscar, em algumas categorias. O projeto, que ainda conta com uma belíssima trilha sonora assinada pela compositora francesa Emilie Levienaise-Farrouch, nos faz refletir constantemente sobre como vivemos a nossa própria vida. Imperdível!

 

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Crítica do filme: 'Bem-Vinda, Violeta!'


Para contar uma história é preciso desprender-se da realidade e embarcar na ficção? Partindo de uma análise bastante ampla sobre o universo sempre peculiar do processo criativo, Bem-Vinda, Violeta! , inspirado no romance ‘Cordilheira’ do escritor brasileiro Daniel Galera, é um filme que navega nas turbulências emocionais de uma protagonista que se descobre em crise através da personagem que está criando para seu novo livro. Fernando Fraiha, um dos diretores do famoso programa Choque de Cultura, volta à direção de um longa-metragem de ficção, após o ótimo La Vingança (2016), nesse filme que é pura reflexão sobre os sentidos da existência humana.


Filmado em Ushuaia, na Patagônia argentina, na trama conhecemos a escritora Ana (Débora Falabella) que resolve embarcar em uma viagem para uma espécie de laboratório criativo onde ela e outros escritores participam de dinâmicas comandadas pelo enigmático Holden (Darío Grandinetti), um homem cheio de personalidade que ficara famoso no mundo literário após queimar exemplares dos seus livros no dia do lançamento. Os dias nesse lugar são intensos e provocantes, há uma necessidade de um abandono de si mesmo e um embarque na personalidade dos principais personagens das respectivas obras. Aos poucos, a forte protagonista começa a se perder, se descontruindo em torno de uma de suas personagens do seu último livro.


O maravilhoso nesse interessantíssimo projeto, que é ambientado na cordilheira dos andes, são as diferentes formas de enxergar todo esse processo criativo. Cada um de nós vai chegar ao desfecho (que tem uma cena emblemática) interpretando o que viu de maneiras diferentes. A produção de ideias em busca de uma certa originalidade é o foco de quem procura os aulões de Holden. Completamente isolados, os escritores passam o pente fino na sua própria personalidade e experiências de vida. A questão para Ana é: embarcar ou não na proposta? Voltar ao passado e enfrentar traumas e situações que estão presas num subconsciente pode ser uma jornada dolorosa que impactará com o seu presente (vemos isso com a desconfiguração do seu relacionamento com o marido).


Um misto de loucura em contraponto ao autoconhecimento chega para a personagem quando se vê perdida, curiosa sobre suas aflições. Bem-Vinda, Violeta não é um filme fácil, ele vai acontecendo aos poucos, então a atenção redobrada é necessária para uma melhor imersão nos momentos reflexivos que chegam pelas entrelinhas, na investigação artística, nos caminhos conflituosos da mente e emoções humanas. Profundo, reflexivo, aborda algumas das infinitas maneiras de explorar a criatividade e ao mesmo tempo chegar em incontroláveis abismos emocionais.



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15/10/2022

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Crítica do filme: 'Noites de Paris'


Coração de mãe, sempre cabe mais um. Explorando o início, meio e fim da década de 80 numa França agitada em vários campos, na visão de uma mulher com um lado maternal forte, o cineasta parisiense Mikhaël Hers nos apresenta um longa-metragem quase em forma de crônicas que coloca a família no centro dos conflitos. Exibido no Festival do Rio 2022, o drama intimista Noites de Paris é protagonizado pela atriz Charlotte Gainsbourg.


Na trama, conhecemos Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), uma mulher de fala mansa, culta, que estudou psicologia e se separou recentemente de um homem que a abandonou. Ela mora com os filhos, Judith (Megan Northam) e Mathias (Quito Rayon Richter) num belo apartamento, com uma esplendorosa vista para uma grande cidade francesa. Mas a situação deles não é tão confortável assim, passando por várias fases e apertos financeiros. A protagonista tem certa dificuldade de adormecer, nessas horas assiste a um programa no rádio e tempos depois, quando procurava diariamente um emprego, acaba conseguindo um trabalho na equipe desse programa. Um dia, durante o período em que busca um mais amplo sentido para sua trajetória, chega na vida dessa família Talulah (Noée Abita), uma jovem que tem problemas com drogas que acabará se sentindo aceita nessa família, mesmo com idas e vindas ao longo de toda a década de 80.


Numa época em que os cinemas franceses não deixavam ninguém mais entrar nas sessões após cinco minutos do início do filme, é o pontapé inicial dessa história onde já conhecemos a protagonista em um momento onde sente que precisa estar próxima dos filhos, ou até mesmo saber ouvir o que eles tem a dizer sobre ela. Há um foco na mãe e no filho (a filha é apenas uma figurante na história). A relação maternal é uma constante evidente que ganha novos caminhos com a chegada de Talulah. Elisabeth se identifica com ela muito por conta da fragilidade (que na protagonista até se desenvolve em coragem ao longo do tempo), algo que as duas tem em comum. A linha temporal segue por dentro da década de 80 onde conflitos ligados à pais e filhos são vistos.


Com um roteiro escrito por três pessoas, uma delas o próprio diretor, percebemos que possa haver uma certa proximidade do mesmo com pelo menos uma parte do que assistimos. A ideia do programa de rádio, por exemplo, um importante momento na trajetória da protagonista, foi adaptado a partir de memórias de Hers sobre um programa antigo, da década de 70, que ficou 20 anos no ar e era exibido ao vivo pelo rádio madrugada à dentro.


O cinema também tem seu cantinho no roteiro, num momento metalinguístico onde até um dos melhores filmes de Nicolas Cage, Birdy (Asas da Liberdade, no Brasil) é a escolha dos personagens para assistirem. A arte parece andar com os personagens que são muito ligados às questões culturais que se desenvolvem na cidade luz. O gosto pela poesia e a escrita de um dos personagens acaba sendo algo que faz parte da trajetória, em todos os momentos, dos diálogos mais felizes da família.  


Indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim e rodado quase todo no bairro Beaugrenelle, em Paris, lugar construído na década de 70, Noites de Paris nos trás uma série de lições que podem servir de reflexão, principalmente para quem, com medo de perder, mantém vivas memórias passadas sem conseguir viver o presente.

 


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Crítica do filme: 'Segredos em Família'


Um clima de tensão constante, cenas chocantes, diálogos marcados pelo confronto, assédio sexual. O longa-metragem chileno Segredos em Família nos apresenta de maneira excruciante o retrato de uma família disfuncional, até mesmo parte preconceituosa, que fica presa em uma Ilha no sul do Chile. Exibido no Festival de San Sebastian em 2019 e no Festival do Rio desse ano, dirigido pelo cineasta Jorge Riquelme Serrano (em seu segundo longa-metragem na carreira), somos conduzidos até os conflitos de um ‘big brother’ instaurado que logo aflora o pior lado de relações já conflituosas, mostrando até mesmo uma parte sombria de seus personagens. No elenco, a excelente atriz Paulina García (do sucesso Gloria).


Um ambicioso casal em busca de um empreendimento, leva os pais de uma das partes para uma visita à uma ilha onde supostamente existe um ótimo lugar, onde não falta nada, e daria um ótimo hotel. O intuito desse convite é conseguir uma boa parte do dinheiro de entrada desse negócio. Acontece que o responsável pela casa na ilha, após algumas situações constrangedoras com elementos da família, acaba fugindo, deixando o restante das pessoas sem ter como sair da ilha. O que era pra ser um passeio agradável, regado à vinho e conversas descontraídas logo vira um ambiente hostil, tenso, onde facetas escondidas logo vem à tona.


Partimos do encontro de três gerações: os avós, os pais e os filhos. Só por isso, já dá pra imaginar iminentes conflitos. Os mais velhos parecem analisar o casal mais novo, destilando veneno pra todos os lados, se colocando como os senhores da razão em relação a todos os assuntos. As críticas que não são faladas ‘olho no olho’ vão nos mostrando as verdades de personalidades dúbias. O clima de tensão tem seu início na questão da sobrevivência, por estarem em um lugar inóspito, sem água e outras coisas básicas. Mas logo uma surpreendente questão vira palco de questionamentos, com os personagens já no seu desfecho não sabendo lidar com o ocorrido. O público é surpreendido nos minutos finais, com o roteiro deixando em entrelinhas rasas qualquer desdobramento sobre o chocante fato.


O ritmo é lento, mas há um sentido nisso, aos poucos vamos nos surpreendendo e chocados assistimos uma série de situações destrutivas, absurdas. Rodado na comuna de Calbuco, Região de Los Lagos, no Chile, o projeto bate na tecla de que as aparências enganam, do fato mais que lógico que não existe família perfeita, da pergunta filosófica que acaba fazendo total sentido aqui nessa história: Afinal, as pessoas nascem boas ou más? Ou é o seu caminho de escolhas que te leva para um lado ou outro?  



 

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14/10/2022

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Crítica do filme: 'Carvão'


Um choque entre dois mundos é a combustão que nos leva para uma estrada de diversos conflitos e escolhas, onde o paradoxo entre a impulsividade e a premeditação vira um reflexo dilacerante da natureza humana. Escrito e dirigido pela cineasta paulista Carolina Markowicz (em seu primeiro longa-metragem), Carvão joga na tela contradições camufladas de dilemas morais e a hipocrisia do julgamento para os que chegam e para os que estão no epicentro dessa história ambientada em uma casa humilde no interior de nosso país. Surpreendente até seu último minuto, somos testemunhas de mais uma grande obra do cinema brasileiro.


Na trama, exibida nos importantes Festivais de Toronto e San Sebastian, conhecemos Irene (Maeve Jinkings), uma mulher que vive com o marido (Rômulo Braga), o filho Jean (Jean de Almeida Costa) e o pai (esse já em estado bastante debilitado) em uma cidade isolada dos grandes centros, no interior do Brasil. A família vive uma vida simples onde a falta de dinheiro é algo frequente. Certo dia, uma mulher aparece com uma proposta inusitada, que consiste na família hospedar um misterioso visitante internacional chamado Miguel (César Bordón), em troca de uma boa quantia de dinheiro. Eles topam. Assim, se seguem dias de muitos conflitos, onde vamos entendendo melhor cada um desses personagens.


Há um raio-x intrigante sobre alguns personagens. Todos tem conflitos, e esses são muito bem aprofundados. Tem a esposa, religiosa, mãe, que começa a perceber uma mudança de comportamento no marido infiel, além de agir conforme o que acredita sobre a situação de seu pai. Tem o esposo, um acomodado, que vive de bicos, que vê na bolada ganha uma oportunidade de se desligar do mundo e agradar o seu verdadeiro amor. Temos o estrangeiro e sua fuga para bem longe dos grandes centros, mal sabia ele que a complexidade encontrada ali seria desafiante. Tem também a visão da criança sobre tudo que os adultos ao seu redor apresentam de exemplos. Essas sucessões de conflitos dos adultos nos levam para um olhar sobre a hipocrisia quase que frequentemente.


O sofrer pra dentro é uma característica marcante da protagonista Irene, interpretada por uma das grandes atrizes do nosso cinema, Maeve Jinkings. Nas tomadas de decisões mais chocantes que assistimos, Irene dribla qualquer compaixão, esconde as dores, busca de propósito não enxergar as verdades que sente. Nessa estrada de emoções não explícitas, isoladas, tudo que faz parte vira imprevisível. Irene marca seu nome como uma das personagens mais intrigantes dos últimos anos no cinema brasileiro.


Os acontecimentos marcantes são inúmeros, alguns destacados por dilemas morais. O roteiro parece abrir estradas na sua trajetória onde nos perguntamos a todo instante: o que vai acontecer na próxima cena?! As reflexões chegam por todos os lados, as cenas chocantes misturam um leque de descobertas sobre mais da personalidade dos envolvidos. Carolina Markowicz cria uma fórmula que explora até o último segundo o agir, o pensar e o sentir.



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Crítica do filme: 'Última Dança'


O luto e as maneiras que o protagonista encontra para passar por essa situação acabam sendo o grande ponto de partida do projeto que foi exibido no Festival de Locarno, Festival do Rio 2022 e foi o filme de abertura do Nono Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, Última Dança. Escrito e dirigido pela cineasta suíça Delphine Lehericey, o filme possui um leve toque de comédia mas não chega às barreiras do melodrama, leva o público por um caminho bastante objetivo encontrando soluções lógicas para os conflitos, além de refletir sobre a aproximação da arte através da saudade.

Na trama, conhecemos o ocioso Germain (François Berléand), um homem já com certa idade, beirando aos 70 e poucos anos, que gosta de escrever e vive dias tranquilos com a esposa em uma casa confortável. Quando ela é chamada para uma remontagem de um espetáculo de dança, dias antes de começar os ensaios, acaba falecendo. Seus filhos se mobilizam para ajudá-lo a passar por essa perda tão recente. Germain fica arrasado e para lidar com o luto, passando por todos os seus estágios, resolve participar do espetáculo no lugar da esposa. Só que ele faz isso escondendo a informação dos filhos, situação que gera mais alguns conflitos.


Há um certo romantismo durante esse recorte sobre o luto, também nas maneiras que o corpo pode representar os sentimentos. Esse rompimento do vínculo do amor, da pessoa que está mais próxima de Germain durante toda sua vida, é a força dessa história. O roteiro explora o abstrato (buscando encontrar sentidos), amor, a ausência, uma redescoberta do viver, também a saudade em alguns momentos. Há um protagonista em conflito, confuso, que usa de sua teimosia para cumprir com o desejo da esposa. A sua caminhada chegando pela arte no combate ao ócio é uma questão existencialista que fica implícita.


Delphine Lehericey conduz com muita delicadeza essa história que esbarra nos clichês mas sem deixar de lado um carisma contagiante. O desabrochar para o fascinante universo da dança não deixa de ser uma inspiração. Germain, que antes de ter coragem para convidar a futura esposa para sair pela primeira vez, trocou cartas com a amada por um ano, era um acomodado, descrente, que acaba descobrindo na dança uma maneira de sempre estar com as lembranças presentes de um alguém que nunca deixará de amar.


 

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13/10/2022

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Crítica do filme: 'A Porta ao Lado'



As dores de um viver no sufocamento constante. Explorando as relações amorosas, as formas de enxergar o amor, o companheirismo, as duras batalhas pela liberdade dentro de um autoconhecimento, a cineasta Julia Rezende nos apresenta uma história guiada por uma protagonista em crise no seu presente que acaba se jogando em uma nova estrada de oportunidades ligadas ao desejo. Caminhando em passos largos dentro de uma previsibilidade, há ótimas atuações mas sem momentos brilhantes, guiados por um roteiro que se atrapalha no detalhismo e demora para acontecer.

Na trama, que teve sua primeira exibição nacional no Festival do Rio 2022, conhecemos Mari (Letícia Colin), uma jovem chef de cozinha, que tem seu próprio restaurante e vive seus dias monótonos e até mesmo distantes com o marido Rafa (Dan Ferreira) em um apartamento confortável de uma grande cidade do Brasil. Um dia, Fred (Túlio Starling) e Isis (Bárbara Paz), se mudam para o prédio dela, o que acaba mexendo com sua rotina, principalmente quando começa a demonstrar interesse por Fred e automaticamente se distanciando ainda mais do marido. Há um olhar profundo para a complexa protagonista, interpretada pela excelente Letícia Colin. Mesclando em partes momentos dentro de uma não lineariedade, vai sendo construída essa personalidade marcante que se enxerga presa (mas não demonstra) em um relacionamento onde ela tem tudo e mesmo assim fica longe de ser feliz. Mas o que seria esse tudo?


A desconstrução do casamento vai sendo vista aos poucos, o estopim chega na maneira de enxergar a relação dos novos vizinhos, esses com um relacionamento aberto. E essa tal liberdade acaba sendo algo que a protagonista nunca experimentou, talvez caminhando nesse sentido em um presente impulsionada pela desconfiança das mensagens que o marido troca, até mesmo dos compromissos dele até tarde no trabalho. O roteiro consegue chegar em seu objetivo que pode ser entendido como mostrar a desconstrução e um início da construção dessa personagem dentro de um processo de autoconsciência, mesmo que o excesso de detalhes direcionado somente à uma personagem acabem atrapalhando o topo dessa jornada que seria a compreensão pelo público de seu estado emocional.


A iminência acaba se encontrando com a previsibilidade. Com coadjuvantes apenas sendo vistos de forma superficial (há pouco desenvolvimento do importante conflito que enfrenta Isis, por exemplo), vemos uma protagonista em processo de se libertar de uma aflição que teve na porta ao lado seu início, seu meio e quem sabe seu recomeço.



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12/10/2022

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Crítica do filme: 'O Clube dos Anjos'


Você tem fome de quê? Baseado na obra homônima do escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo, O Clube dos Anjos nos apresenta um inusitado recorte sobre a gula, onde a amizade, o posicionamento político, questões existenciais, reflexões sobre o luto e a morte acabam sendo inseridos em banquetes que geram diversas interpretações. Navegando pelo drama de alguns acontecimentos, o projeto tem sua essência e força na comédia. Exibido, em sessão única, no Festival do Rio de cinema, o longa-metragem é dirigido pelo cineasta niteroiense Angelo Defanti, em seu primeiro filme de ficção.


Na trama, exibida pela primeira vez durante o Festival de Gramado, conhecemos um grupo de amigos, desde os tempos do colégio que por conta do gosto em comum pela comida, criaram um grupo onde se encontravam todo mês para se deliciarem com o melhor da culinária. Mas ao longo do tempo, e com o falecimento do chef que cozinhava para eles, o afastamento foi algo lógico. Só que um deles, Daniel (Otávio Müller), inusitadamente conhece um misterioso chef chamado Lucídio (Matheus Nachtergaele) e assim convida novamente todos os integrantes do grupo para se reunirem mais uma vez. Após o encontro, e de toda comilança, um deles amanhece morto. Buscando entender o que houve, eles entram em grandes debates e nas dúvidas se devem se reunir novamente.


Adaptações de livros para cinema, um fato recorrente ano após ano, sempre tem muito da visão de quem escreve o roteiro e dirige o filme, principalmente em tramas que podem levar ao público inúmeras interpretações. Em Clube dos Anjos, o sarcasmo rola solto, seja na polarização política (que vemos muito nos dias atuais), nos embates sobre a morte, as maneiras de lidarem com o luto, nos conflitos e escolhas de amigos que possuem a comida como um elo na história deles. O público ri e reflete, a interação é constante, da Paella aos Bifes mais saborosos, é fácil embarcar nessa loucura que escancara a natureza humana. Com pouco mais de 100 páginas, lançado no final da década de 90, o livro de Veríssimo pode ser uma boa de se conferir caso você queira traçar paralelos com o que refletiu sobre o filme.


Ao longo do filme, impossível não pensarmos naquela letra de uma música famosa escrita por Arnaldo Antunes, Sergio Britto e Marcelo Fromer... ‘A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte!’ Questões que envolvem a sociedade e suas ansiedades (fator muito ligado à gula) são vistas nas características dos personagens. As escolhas estão à disposição todo instante, se colocam à frente, mostrando os limites do ser humano, até com uma visão pessimista sobre os poucos momentos onde sentem o prazer de viver, aqui representado pela comida.


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Crítica do filme: 'Visão de uma Borboleta'


Exibido na edição desse ano da Mostra Um Certo Olhar em Cannes, um dos filmes mais impactantes da edição 2022 do Festival do Rio de cinema, o longa-metragem ucraniano dirigido por Maksym Nakonechnyi, Visão de uma Borboleta, nos mostra a história de uma mulher que sofreu como prisioneira de guerra durante meses e luta para se readaptar ao convívio do noivo e da família. Um recorte impressionante sobre os horrores de uma guerra, assunto mais do que atual, já que o longa aborda as tensas relações em uma região no extremo leste da Ucrânia e sudoeste da Rússia.


Na trama, conhecemos Lilya (Rita Burkovska) uma oficial do batalhão voluntário de Bakhmut, especialista em reconhecimento aéreo, que acaba sendo presa por forças militares à favor da Rússia e passa alguns meses em cativeiro. Após uma negociação, ela é libertada. Aos poucos busca o recomeço da sua vida perto das pessoas que ama, só que ela descobre estar grávida após ser vítima de estupro no período em que estava presa. A partir daí, uma série de situações à levarão de frente para escolhas que vão influenciar todos ao seu redor.


No retorno para casa, é rotulada por alguns como heroína, por outros como vítima. As antíteses encontradas aqui acabam sendo o que aparecem na trajetória da protagonista em busca da redescoberta das relações com quem ama. As marcas da violência expostas no corpo deixam implícitos torturas físicas e emocionais, algo difícil de lidar, principalmente em uma região consumida pela guerra. Os dilemas e principalmente a questão da maternidade se misturam em um entrelaçado com a tristeza onde fica notório que uma série de tragédias vão se suceder. Não há como ter final feliz, não importa o caminho que seguir. A dor da personagem nessas escolhas acaba sendo também sua fortaleza, seu necessário ponto de uma solitude que se torna incontrolável.


O longa-metragem, primeiro da carreira de Maksym Nakonechnyi, também abre espaço para  os multirecortes sobre os pensamentos da população ucraniana em conflito em uma região explosiva, repleta de tensão, na muito falada Donbass. Com a guerra entre Ucrânia e Rússia ainda em andamento, um filme como Visão de uma Borboleta traz uma importante reflexão sobre os tempos atuais e muitos traumas que nunca serão deixados pelo caminho.



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Crítica do filme: 'Wildhood: Busca Pelas Raízes'


As raízes que contam várias histórias. Selecionado para o Festival do Rio 2022, o longa-metragem canadense Wildhood: Busca Pelas Raízes nos apresenta em sua trama um emocionante road movie que navega na troca de perspectiva sobre a vida através de um recorte sobre sexualidade e família na visão de um adolescente. O projeto também mostra um profundo destaque para os Mikmaq (indígenas do leste do Canadá), principalmente o lado cultural. Esse é o primeiro trabalho de longa-metragem, de Bretten Hannam, roteirista e cineasta canadense, não-binário, de raízes Mi'kmaq.


Na trama, conhecemos Link (Phillip Lewitski), um jovem adolescente com raízes indígenas, que mora no Canadá e tem um cotidiano de conflitos com muitas discussões e violência no relacionamento com o pai. Certo dia, ele descobre que sua mãe (que ele pensara estar morta) está viva e morando em um lugar longe dali. Ele resolve ir atrás dela, e leva seu irmão caçula junto. Ao longo dessa viagem cheia de surpresas acaba encontrando outro jovem, Pasmay (Joshua Odjick), que embarca com eles nessa jornada.


Ao longo de quase 110 minutos de projeção, caminhamos pelas estradas sempre tumultuadas das descobertas e redescobertas. O protagonista é um jovem solitário, com uma rebeldia presente, se vê em conflito pelas suas relações familiares (evidente na relação com o abusivo pai) e também por não conseguir liberdade para expressar sua sexualidade em um universo machista que está inserido. A troca de perspectiva, onde o personagem se descontrói para se construir novamente é oriunda da necessidade de conhecer sua mãe e entender mais sobre sua história com raízes em um povo indígena que foram um dos primeiros povos a habitarem a região Atlântica do Canadá. Esse olhar mais próximo sobre as tradições indígenas caminha junto com a história de Bretten Hannam com inspiração na própria caminhada.


O olhar para a sexualidade do protagonista também é algo destacado no longa-metragem (sem previsão de estreia no Brasil). A descoberta do amor, do desejo, a partir da amizade com Pasmay é algo que surge aos poucos produzindo belíssimas cenas. Exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Wildhood: Busca Pelas Raízes é um delicado trabalho, repleto de poesia, que fala sobre auto descobertas, desejos, sonhos tudo isso numa fórmula poética que combina diálogos com significados. 



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11/10/2022

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Crítica do filme: 'Canção de Ninar'


Exibido na Mostra Panorama do Festival de Berlim e selecionado para o Festival do Rio, Canção de Ninar nos leva para uma jornada profunda de uma forte protagonista, cheia de conflitos sobre a chegada da primeira filha, e também do reencontro com o seu passado além das surpresas que chegam na sua trajetória. Escrito e dirigido pela cineasta espanhola Alauda Ruiz de Azúa, o filme, extremamente sensível, delicado, que se entrega à melancolia de forma inteligente, é um recorte contemporâneo da maternidade.


Na trama, conhecemos a jovem Amaia (Laia Costa), de cerca de 30 e poucos anos, que acaba de ser mãe de primeira viagem. Após o nascimento da criança, ela passa por diversas fases, como: a relação com o seu lado profissional agora sendo mãe e os conflitos com o marido Javi (Mikel Bustamante) muitas vezes ausente. Em todos esses momentos, seu pai Koldo (Ramón Barea) e sua mãe Begoña (Susi Sánchez, em grande atuação) se mostram presentes e em certo momento onde já não consegue mais lidar com tudo que vem passando sozinha resolve passar um tempo com eles na casa onde morou quando pequena. Esse período será de grande aprendizado e também trará grandes surpresas.


As dificuldades da primeira gestação é o abre alas desse interessante projeto que vai apresentando ramificações mas que não chega a ser um conflito de gerações, os intensos diálogos nos mostram paralelos entre mãe e filha talvez aí um embate implícito dentro do olhar maternal. Não chega a ser uma reviravolta mas o roteiro apresenta surpresas onde quem ajuda e é ajudado se inverte levando esse projeto para outras questões onde o olhar da protagonista se reconstrói chegando à conclusão que a perfeição é algo inalcançável. Em muitos desses momentos brilha o talento de Laia Costa e do grande destaque do filme Susi Sánchez. Impressiona a carga dramática alcançada das duas em cena, nosso olhar fica atento a cada diálogo entre as duas.


Em seu primeiro longa-metragem da carreira, após uma série de curtas que ganharam mais de cem prêmios nacionais e internacionais, Alauda Ruiz de Azúa, que é formada em Filologia (o estudo da linguagem por meio de fontes históricas), consegue passar ao público as fases emocionais mais intensas de um período na vida de sua protagonista, as descobertas, aprendizados e principalmente as várias formas de enxergar o amor.



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Crítica do filme: 'Os Piores'


Vencedor da Mostra Um Certo Olhar em Cannes, o longa-metragem francês Os Piores nos leva a uma gangorra de emoções em uma história profunda sobre alguns jovens de um bairro francês que são chamados durante o verão para realizar um longa-metragem. A questão aqui é que seus personagens no filme acabam de alguma forma tendo uma relação impactante com a realidade deles em um mundo repleto de altos e baixos. Um primoroso trabalho das cineastas Lise Akoka e Romane Gueret. Um dos melhores filmes da seleção do Festival do Rio desse ano.


Na trama, conhecemos Lily (Mallory Wanecque) e Ryan (Timéo Mahaut), dois jovens que moram no mesmo bairro e após uma seleção são selecionados para interpretar personagens em um filme chamado ‘Pissing in the North Wind’ que será rodado no bairro com direção do cineasta belga Gabriel (Johan Heldenbergh). Lily é uma jovem que possui um terrível trauma na sua vida, seu irmão pequeno, a quem era muito ligada, faleceu de câncer recentemente e no bairro é alvo de bullying. Já Ryan, meio rebelde, parece segurar suas emoções, é um jovem que não mora com a mãe e vê na irmã uma força maternal. Os dois, no filme vão interpretar irmãos e durante as gravações muitas emoções irão surgir e também novos conflitos.


A metalinguagem aqui proposta é um impulso para identificarmos os paralelos entre o filme dentro do filme e a realidade dos personagens nos seus cotidianos durante o processo de filmagens. E isso é feito sob algumas perspectivas. Tem a visão dos moradores do bairro que, em sua maioria, acha que a produção do filme está escolhendo os jovens mais problemáticos (daí o título do filme). Tem a visão da própria produção do filme que precisa lidar com os protagonistas não profissionais e todo o estresse do diretor durante as filmagens. E a visão dos próprios protagonistas e tudo que aprendem nos intensos dias de filmagens durante o verão. As cineastas Lise Akoka e Romane Gueret parecem ter uma grande observação sobre esse olhar focado nos bastidores de uma produção cinematográfica. Elas já haviam feito um curta-metragem de 28 minutos chamado Chasse Royale (2016), tratando sobre uma audição para um filme.


A curva de aprendizado para os envolvidos acaba sendo um destino que a princípio parecia improvável mas que aos poucos vamos vendo na tela. Temas como sexualidade, bullying, maternidade, amizade, referências na vida, ética, moral, são vistos nos ágeis diálogos do ótimo roteiro (que também é escrito pelas diretoras e Elénore Gurrey). Se o objetivo desse projeto era conseguir nossa atenção sobre a questão de um processo de filmagens, Os Piores consegue mais que isso, consegue nossa atenção para um recorte onde a maturidade corre em passos largos para combater as desilusões que aparecem sem avisar.



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09/10/2022

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Crítica do filme: 'Pérola'

Créditos fotos: Marcinho Nunes

Abalou Bauru! Baseado em uma peça de teatro, de enorme sucesso em todo o Brasil, escrita pelo dramaturgo Mauro Rasi, Pérola, segundo trabalho de Murilo Benício como diretor de um longa-metragem, é um projeto cativante, que através de lembranças, memórias, nos leva a olhar pelo buraco da fechadura no campo das emoções e conflitos de uma família, de Bauru, do interior de São Paulo. O principal mérito do roteiro é conseguir fazer rir e chorar de forma constante em uma história de sentimentos diversos ao longo de um recorte de muitos anos. Drica Moraes, uma força da natureza em cena, domina sua personagem com maestria, uma baita atuação dessa fantástica artista brasileira.


Na trama, conhecemos Mauro, já adulto, que recebe uma notícia que o faz refletir sobre uma das pessoas mais importantes de sua vida, sua mãe, Pérola (Drica Moraes). Essa, uma mãe de família, esposa carinhosa, com dois filhos, moradora de Bauru, que tem uma personalidade forte mas nunca deixa de ser amável. Ao longo de alguns anos, onde, entre outras questões, vemos uma curiosa e demorada construção de uma piscina, vamos entendendo os grandes embates dessa família como tantas outras pelo Brasil, que brigam, fazem as pazes, buscam se entenderem nos conflitos mas nunca deixam de se amar.


Nessa comédia dramática, que traça seu objetivo principal em emocionar possui na sua trajetória um encontro com a comédia de maneira brilhante, uma fórmula mágica que parece ser transferida do teatro para a tela grande sem perder sua força. Se no teatro Vera Holtz, Sergio Mamberti e outros excelentes artistas brilharam nesses personagens, nessa adaptação para as telonas não é diferente, com um elenco maravilhoso com destaque para a fabulosa interpretação de Drica Moraes. Impossível não se emocionar!


A passagem temporal é grande e os pontos principais dessa família não se limitam a pai, mãe e filhos, como também há o genro religioso, as tias fofoqueiras, a vovó já idosa que precisa morar com eles, entre outros. Parece que estamos abrindo a janela e assistindo ao desenrolar da trama, como se de alguma forma tudo que vemos já ouvimos por aí, o que transforma a experiência em algo nostálgico. Rasi começou a escrever esse texto para o teatro no dia em que sua mãe faleceu, nos palcos o narrador era Emilio, um alter ego do autor, aqui na adaptação cinematográfica o nome é o do criador dessa história, uma homenagem ao dramaturgo que nos deixou em 2003.


O abstrato universo da lembrança, da memória, é por onde o filme navega, o grande ponto intercessor, com um narrador presente, que nos mostra suas angústias que vão desde conflitos pelo sonho em ser um escritor de peças de teatro até os medos por questões de sexualidade.


Pérola não deixa de ser uma homenagem de Murilo Benício também ao Teatro Brasileiro, como já fizera em seu primeiro longa como diretor, O Beijo no Asfalto baseado na obra de Nelson Rodrigues.




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Crítica do filme: 'Regra 34'


Vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno nesse ano, o longa-metragem brasileiro Regra 34 é um chocante projeto que consegue unir em uma mesma trajetória reflexões importantes de nossa sociedade, desde de interpretações sobre leis, dos direitos das mulheres, da violência sob alguns pontos de vistas, até o infinito universo dos desejos ligados aos impulsos virtuais. A cineasta Julia Murat consegue com sua forte protagonista (interpretada pela ótima Sol Miranda) nos levar à 100 minutos de impactantes diálogos e ações. Regra 34 é um filme que demora a sair de nossas mentes, há uma reflexão constante sobre os ótimos temas abordados, principalmente sobre as várias óticas da violência. O projeto faz parte da seleção do Festival do Rio 2022 e também da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do mesmo ano.


Na trama, conhecemos Simone (Sol Miranda), uma jovem negra, de vinte e poucos anos, que, após a faculdade de direito, está iniciando seu caminho na Defensoria Pública no Estado do Rio de Janeiro. Seu cotidiano é intenso, precisa lidar pelas possibilidades da lei sobre vários tipos de violências quase sempre contra mulheres. De noite, ela é Camgirl, faz performances sexuais online, buscando expor seus desejos e também os desejos do público que já a acompanha faz tempo. Quando ela se vê em um certo descontrole quanto a violência (e até mesmo os limites) de suas apresentações na internet, escolhas precisarão serem tomadas.


Em Regra 34, a violência é o ponto chave para refletirmos sobre os dois mundos vividos pela protagonista. Como Camgirl, a protagonista, cada vez mais explorando seus impulsos sexuais se vê em um dilema dentro do seu refletir quando embarca em práticas BDSM (sigla para Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e começa a sentir o desconforto com a violência do público em relação às suas apresentações. Como advogada, Simone se impõe para ajudar mulheres que sofrem de violência doméstica, inclusive se revoltando em muitos momentos com os absurdos presenciados. Nos debates que tem, no seu início de vida profissional na defensoria pública, se vê constantemente em volta da hipocrisia de outros profissionais que tiveram uma trajetória bem diferente dela até ali, sem sentir nem observar tudo que ela viu.


O título do filme chega para trazer uma interpretação sobre essa curiosa Regra 34 criada pelo mundo virtual (quase um universo paralelo que só se expande) que se define em: ‘Se alguma coisa existe, há também uma versão pornô dela. Sem exceções’. Refletimos muito sobre essa questão pelos dilemas de Simone principalmente quando seus desejos sexuais perigosos a aproximam de uma violência, de um machismo que combate na sua realidade.


Como usar o direito para mudar a sociedade? Os debates sobre leis e sociedade são excelentes, temas debatidos por professores e alunos prendem nossa atenção e nos fazem pensar através do olhar de Simone. Seria muito importante esse filme ser exibido para estudantes de direito, tem muitos temas que podem gerar debates importantes.


Desde o poderoso Terra Transe, do inesquecível Glauber Rocha, que o Brasil não ganhava um importante prêmio em Locarno (um dos grandes festivais do universo cinema). E o Leopardo de Ouro não poderia estar em melhores mãos, Regra 34 busca através de seu impactante contexto, os temas que joga ao nosso refletir, recortes da sociedade e o desconsolo quanto à violência.



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07/10/2022

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Crítica do filme: 'Império da Luz'


A Solidão e a Solitude. Filme de abertura do Festival do Rio 2022, Império da Luz é um interessante recorte de uma Inglaterra nos anos 80 onde conhecemos uma linda história de amor que tem um cinema como grande palco. A intensidade da paixão, a diferença de idade, o preconceito, o assédio, a literatura, o cinema, são vários os elementos reunidos nessa história brilhantemente escrita e dirigida pelo excelente cineasta britânico Sam Mendes. Emocionante em muitos momentos, com uma atuação digna de Oscar da fabulosa Olivia Colman, o filme nos leva a refletir também sobre a linha tênue entre a solidão e a solitude.


Na trama, conhecemos Hilary (Olivia Colman), uma mulher introspectiva que trabalha em um lindo cinema de frente para o mar em uma Londres dos anos 80. O cinema em que ela trabalha é administrado pelo Mr. Ellis (Colin Firth), com quem a protagonista tem um caso. Certo dia, um jovem e super carismático chamado Stephen (Micheal Ward) é contratado para trabalhar no lugar e aos poucos vai se aproximando de Hilary. Dessa aproximação, surge uma linda história de amor que terão alguns intensos capítulos ao longo das duas horas de projeção.


O amor aqui é mostrado de forma intensa, com o equilíbrio chegando de forma sutil através de gostos em comum pela literatura e as maneiras diferentes de se enxergar a vida. A diferença entre as idades nos leva a entender melhor os personagens, uma mulher sem muitas expectativas de mudanças em sua vida com conflitos emocionais provocados por alguns traumas e esse jovem sonhador, de atos bondosos, que se abala a cada novo episódio de racismo que sofre em qualquer lugar. Ela, anda na linha tênue entre a solidão e a solitude, mais do segundo, dentro de um estado de privacidade, quase um isolamento involuntário. Ele, usa a solidão como fortaleza quando precisa mas sem deixar de encaixar pitadas de esperança em sua estrada. Esses dois corações se compreendem, se encaixam, fazendo muito sentido o sentimento que nasce entre os dois mesmo com o destino batendo à porta, onde escolhas precisarão serem tomadas.  


No roteiro escrito por Mendes (primeira vez que ele dirige a partir de um roteiro que escreveu sozinho), há uma tentativa de profundidade sobre a época em que o filme é ambientado, o início dos anos 80, em uma Londres repleta de ebulições em várias áreas, com os primeiros anos de Margaret Thatcher como primeira ministra. O preconceito, o racismo, desses tempos é sentido mais forte por um dos protagonistas, um carismático jovem, negro, que sonha em entrar na faculdade de arquitetura mas sofre por cada ação de mentes preconceituosas e violentas que andavam pela cidade.


A magia do cinema acaba encontrando seu cantinho em muitos momentos por aqui, citações à grandes clássicos do cinema, o dia-a-dia de um mercado exibidor sempre muito dinâmico naqueles tempos, os clientes malas, os clientes legais, aquela ansiedade que todos nós sentimos quando esperamos muito a estreia de um lançamento, a descoberta dos próprios funcionários pelo grandioso universo de emoções que aparece quando assistimos a um filme.


Império da Luz nos faz refletir sobre a sociedade de outros tempos e do atual, também sobre o abstrato mundo do amor, do companheirismo, do querer o bem mesmo com obstáculos pelo caminho. Sam Mendes emociona com sua obra. Todo bom filme nunca deveria encontrar um fim em nosso refletir.



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29/09/2022

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Crítica do filme: 'A Acusação'


Não é não. Chega aos cinemas nas primeiras semanas de outubro um filme que mostra os desenrolares de uma denúncia de agressão sexual e os conflitos que surgem para todos os envolvidos e suas famílias. A Acusação, dirigido pelo cineasta israelense Yvan Attal é um profundo drama que aborda os olhares da lei, das famílias, da opinião pública, sobre um caso de estupro. Um filme impactante que deveria ser exibido em muitos lugares e com debates sobre suas reflexões.


Na trama, conhecemos Alexandre (Ben Attal) um arrogante, privilegiado, com sentimento de superioridade, mimado, estudante francês de 22 anos que mora nos Estados Unidos e estuda engenharia em Stanford que durante sua passagem pela França, para visitar seus pais, um famoso apresentador de TV chamado Jean (Pierre Arditi) e uma ensaísta chamada Claire (Charlotte Gainsbourg), é acusado de estupro. Quem faz a acusação é Mila (Suzanne Jouannet), uma jovem de 17 anos que é filha de Adam (Mathieu Kassovitz), um professor de literatura e Valérie (Audrey Dana), uma protética dentária. Para complicar mais ainda a situação, Claire e Adam são namorados. A situação é levada aos tribunais, onde as versões do fato são ouvidas e julgadas pela lei.


De 20 minutos à perpetuidade. Uma séria acusação, um trauma para toda uma vida. Quais os argumentos para se duvidar de uma jovem que alega ter sofrido um abuso? O constrangimento é evidente, logo na denúncia Mila precisa detalhar para dois policiais homens o que houve, depois é exposta no jogo das lei, onde o advogado de defesa expõe intimidades e outros traumas. Presenciamos um pesadelo sem fim de uma jovem que procurou a justiça para ajudá-la com sua dor.


Vamos sendo guiados pelas óticas dos personagens, não só as dos dois jovens, mas também de seus pais.  Do lado de Alexandre, onde os parentes mais tem aprofundamento, vemos o pai, figura pública, controlador, mulherengo, inclusive se relaciona com a estagiária do seu trabalho, parece ter uma relação distante com o filho mas sem deixar de lhe proporcionar uma vida confortável. A posição da mãe nessa história é delicada. Ela é uma ensaísta que sempre defendeu a condenação de qualquer tipo de abuso sexual e ainda por cima a acusação é feita pela filha do seu atual namorado. Será suas atitudes algum tipo de reflexo de sua criação?


Vidas despedaçadas, julgamentos sociais. Logo a trama se caminha para um drama de tribunal onde o que realmente aconteceu se torna algo em segundo plano pois fica evidente que uma agressão ocorreu, um ato unilateral, uma ação sem consentimento. Pelo lado da lei, advogados travam batalhas de argumentos, colocando em exposição a vida íntima de agressor e vítima.  


A palavra de um contra a palavra do outro. Houve consentimento aos olhos da lei? Qual a verdade jurídica? A Acusação faz o espectador refletir sobre cada conflito que se segue, mesmo com duas percepções de uma mesma cena, acompanhamos os rumos de um veredito em relação à lei mas na parte moral a verdade é uma só.



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08/04/2022

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Crítica do filme: 'Belchior – Apenas um Coração Selvagem'


O grito de um poeta quase indecifrável da música popular brasileira. Exibido no Festival é Tudo Verdade 2022, Belchior – Apenas um Coração Selvagem nos mostra por meio de depoimentos do próprio ao longo de muitas entrevistas que concedeu ao longo de sua carreira parte da trajetória desse compositor, cantor, letrista que usava sua música para falar sobre a vida, a juventude, sobre o cidadão comum sujeito a vida, não interessado em nenhuma teoria, com foco em ajudar a refletir. A fama, o sucesso, o sumiço, também geram pensares, reflexões. O posicionamento dos artistas sobre questões sociais também. Em um momento onde a cultura é diariamente ferida por um governo que não enxerga o poder de transformação da arte na vida das pessoas, sempre bom lembrarmos ou até mesmo conhecermos pessoas que dentro do seu refletir reproduziram a essência existencial de um Brasil atemporal.


Nascido no norte do Ceará, um dos filhos de 23 irmãos, o mais bem sucedido deles, foi para São Paulo, viver de sua arte. Vivia o dia, vivia a noite sem precisão na sua definição artística, que era uma soma de muitas influências. Em cerca de uma hora e meia de projeção, acompanhamos sua impactante chegada na música popular brasileira, seu modo de pensar caminhando para a morte pensando em vencer na vida.


Pela dor e a incerteza há como descobrir o poder da alegria? Dono de um pensar carismático sobre o que enxergava sobre a vida, refletia sobre a vida do nordestino na cidade grande, principalmente quando chegou em São Paulo para ganhar a vida no mundo das artes. Há um recorte do nordestino na visão de um homem que refletia a todo instante sobre sua origem. A religião como influência, o canto popular nas festas das cidades, o seu olhar sobre uma região, um povo, tudo que viveu, viu, leu, da poesia para a música. Afirmação de ideias e sentimentos dentro de um trabalho contemporâneo, atemporal e nordestino ao mesmo tempo que era devoto de que os homens não tinham raízes permanentes. Em alguns momentos do documentário poemas e letras do artista são declamadas pelo ator cearense Silvero Pereira.


Uma aventura cheia de romantismo? Uma encarada como ofício? Emergindo do underground, sua chegada na música como ofício é guiada por um forte sentimento poético, além de referências como: Luiz Gonzaga, Joao do Valle, Jackson do Pandeiro, o movimento da Tropicália, Os Beatles, e mais da música popular de sua época. Seus encontros com grandes nomes da música, como com a cantora Elis Regina, que gravou uma de suas composições mais conhecidas, Como Nossos Pais, são mostrados rapidamente.


O filme atravessa alguns detalhes de seu álbum mais consagrado, Alucinação, lançado em em meados da década de 70 e que de alguma forma inaugura a distância da maçante metáfora da época dentro de um discurso não claro, um trabalho de confronto com a realidade onde não apenas os rapazes latino americanos sem dinheiro banco se sentiam representados mas todos que de alguma forma enxergavam que para viver é necessário a resistência de seus sonhos e no acredita.  


Bocejos ou sonhos matinais? Delírio dentro de suas experiências com coisas reais? Participante de movimentos democráticos, Belchior, adepto do amar e o mudar, dava luz aos problemas da até então nova geração, dentro de um quase paradigma do que seria a básica ação de suportar o dia a dia sem comprometimento com o passado.


A fórmula de buscar decifrar o artista numa espécie de ‘Belchior por Belchior’ é mais que certeira. Você pode terminar esse documentário e querer sair correndo para conhecer as canções de Belchior, eternizadas no universo constante e radiante da Música Popular Brasileira. Um belíssimo trabalho dos diretores Natália Dias e Camilo Cavalcanti.




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