As canções, as almas e os corações que sempre se deixam
emocionar. Após quatro décadas fora do Brasil, o cineasta Sérgio Tréfaut resolve buscar por suas memórias primárias até onde
lembra de estar no seu país através de um grupo de pessoas, em sua grande
maioria na feliz idade, que se reúnem nos jardins de um ponto turístico carioca
para uma seresta semanal. No karaokê popular da alegria instaurado, que
acontece faz muito tempo, ouvimos grandes clássicos de diversas gerações, de
Alceu e Elba até Wando, De Lupicínio Rodrigues à Moska, Caetano. Entre outros. Filmado
nos jardins do palácio do catete, pouco antes da pandemia, o filme apresenta um
reflexivo desfecho que se conecta com o momento atual do mundo, particularmente
do Brasil e alguns desses frequentadores.
Em menos de 90 minutos, o documentário busca resgatar
memórias dos personagens que aparecem mas também do cineasta. A solidão acaba
sendo uma testemunha ocular desse ‘Paraíso’ que remete ao título, aparece
quando estão sozinhos, ou em memórias nos depoimentos, mesmo isso sendo feito
sem muita profundidade, entre uma canção e outra a mensagem chega em nossos corações.
O bom humor e a descontração navegam no contraponto da constatação do estar
sozinho.
A seresta que participam é acontecimento semanal da vida
deles, a segunda casa de muitos. O palco é a sede do governo de nosso país até
a criação de Brasília, um lugar belíssimo, muito bem cuidado que de alguma
forma respira arte, até cinema possui. E como ia ser lindo ver esse filme
passando lá no cinema do Museu da República. Quem sabe né?
Selecionado para a Competição Internacional de Longas do Festival É Tudo Verdade 2021, Gorbachev.Céu
mostra opiniões e lembranças do oitavo e último líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, gestor de uma
grande reforma em sua parte comandada do mundo e que podemos dizer que deu um
nó no planeta, responsável pela Perestroika e Glasnost em meados da década de
80. Vamos sendo testemunhas oculares de sua rotina, agora já mostrando diversas
fragilidades que chegam com a idade avançada, além de termos uma grande aula
sobre história mundial através desse hábil contador de histórias, uma figura
histórica, mundialmente conhecida que ainda se vê como socialista tendo Lênin (Organizador do Partido Comunista
Russo) como seu Deus. Dirigido pelo cineasta ucraniano Vitaly Mansky.
A modelagem do documentário é bastante ágil e dinâmica, uma
entrevista cheia de caminhos e momentos de grande reflexão, praticamente a
história da Rússia das últimas décadas passando na frente de nossos olhos
através da opinião sempre firme desse ex-chefe de sua nação, filho de pai
ucraniano e mãe russa. Mesmo demasiadamente curioso nos detalhes do apartamento
do entrevistado, o documentário consegue preencher lacunas importantes sobre
muitas das figuras políticas mencionadas por Gorbachev, o que acaba virando um
ótimo complemento dos contextos detalhados de maneira bem simples e didática.
Alguns assuntos ficam com suas respostas jogadas pelas
inúmeras entrelinhas, mesmo quando o entrevistador faz perguntas bem incisivas,
como por exemplo a ampla questão sobre a democratização dos contornos
após o fim da União Soviética e os detalhes de seu encontro com o ex-presidente
norte-americano Ronald Reagan. Mesmo
com a Rússia voltando a não-liberdade como sua forma natural de existência,
vemos a todo instante seu brilho no olhar desse ex-advogado que governou a União
Soviética de 1985 até 1991, deixando o poder depois de traições e manobras
políticas de figuras conhecidas do enorme país que tem em Moscou como sua
capital.
Esse projeto deveria ser complemento escolar para todas as
gerações que estão estudando as décadas recém passadas e todos os rumos, seus
porquês, que o mundo tomou. Tem fatos que o cinema ensina em um ritmo fluente
de narrativa objetiva que muitas vezes gera a sensação de estarmos folheando
livros e mais livros.
A imersão profunda onde o tempo desaparece. Selecionado para
a Competição Internacional de Longas e Médias-Metragens do Festival É Tudo Verdade de 2021, Glória à Rainha, dirigido pelas cineastas Tatia Skhirtladze e Anna
Khazaradze conta a história de quatro das maiores enxadristas da história
desse esporte, todas elas Georgianas e contemporâneas. Concentração, silêncio,
o click do relógio. As dificuldades de deixar suas famílias para viajarem pelo
mundo, histórias do treinamento intenso (cada uma delas perdia cerca de meio
quilo durante um único jogo de xadrez), somos ouvintes de relatos/lembranças
dos tempos de seus respectivos momentos grandiosos como reconhecidas
enxadristas profissionais, algumas delas até disputavam torneios masculinos
contra grandes mestres da época. Uma interessante jornada com mais uma certeza
sobre a força das mulheres pelo mundo.
Em Rhodes, Grécia em 2019, no campeonato europeu de xadrez
sênior, que começa essa jornada sobre as memórias e realizações, além do
impacto social e de nomes no país que nasceram (muitos bebês na época de suas
conquistas foram batizados com seus nomes). Encontros em diversos torneios pelo
mundo, no vai e vem de lembranças sobre as carreiras de sucesso, principalmente
durante o período de Guerra Fria, e os impactos que possuíram sobre todo um
país que durante muito tempo pertenceu a União Soviética. Na Geórgia é comum
presentear com um jogo de xadrez à noiva como parte do dote, essa entre outras
curiosidades vamos acompanhando ao longo dos quase 90 minutos de projeção,
aprendemos muito sobre a cultura desse país considerado antigamente como a Califórnia
soviética, destino de muitos nas férias dentro da Antiga União Soviética.
O filme explora muito bem a força feminina da história desse
país muito desconhecido por aqui. Exemplos não faltam, como: Santa Nino, que
trouce o cristianismo para esse pequeno país antes do século V, o ‘Rei’ Tamar
que na verdade era uma Rainha mas chamada de rei na Idade Média, e, no século
XX as brilhantes enxadristas aqui mencionadas, famosas em todo o mundo pelo
Xadrez. Além desses fatos, vamos acompanhando as consequências positivas dos
feitos das esportistas não só para seu país e região mas também para esse
esporte muito machista durante bom tempo.
Há 18 trilhões de movimentos em um jogo de xadrez, já
imaginaram buscar controlar sua mente e seu corpo contra qualquer uma dessas
variáveis? E os movimentos externos, guerra fria, união soviética, pressão,
marketing unilateral feito pelo governo...? Glória à Rainha é um documentário atemporal que mostra muito
através do olhar de corajosas e inteligentes mulheres.
A amizade como ajuda na cura de feridas do passado. Baseado
em fatos reais, uma história muito próxima do diretor desse projeto, o cineasta
dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, consegue
ser muito criativo usando a técnica de animação para criar um ambiente
respeitoso e criativo para um homem pronto para contar sua história, esse que
escrevia em um caderno velho suas verdades até aqui agora às vésperas de casar
ele precisa enfrentar seu passado. Por meio de memórias e até algo parecido com
um relaxamento, quase em ponto de hipnose, voltamos ao ano de 1984 em Cabul
(Afeganistão), onde toda avalanche de situações dramáticas deram início na vida
do protagonista. Descoberta de sua sexualidade, guerras civis, países saindo do
comunismo, fugas e mais fugas. Somos testemunhas de uma incrível história que
passa por muitas questões globais. Fuga,
ou Flee no original, foi o filme de
abertura do Festival É Tudo Verdade de 2021.
Não deixa de ser uma história contada por conta da amizade
entre o diretor e seu protagonista, um velho amigo desde os tempos onde não
muitos imigrantes chegavam na capital da Dinamarca, Copenhage. Amin, nosso
protagonista, é um homem já pensando no pós-doutorado em Princeton (EUA) mas
que ninguém perto dele sabe sobre seu passado, só que é afegão e chegou na
Dinamarca e de lá nunca mais saiu. Decidido em enfrentar seu passado para poder
oferecer seu amor em 100% ao seu namorado com quem pretende construir uma
família e morar junto, ao amigo dos tempos de colégio resolve contar as suas
verdades sobre como chegou até ali. Passamos a conhecer o Afeganistão e sua
relação com a família, o misterioso sumiço do pai e uma fuga desesperada para
fugir dos novos domínios da região onde vivia. Chega em Moscou, nessa fuga,
enfrenta outro fato histórico mundial, na época que chega, um ano após o
comunismo e testemunha de situações tristes: pessoas morrendo de fome, mercados
sem nada, moeda desvalorizada, muitos crimes, polícia impiedosa. Nesse período
até a chegada do Mc’Donalds à Rússia ele testemunha.
Paralelo as fugas que dominaram grande parte de sua vida, vamos
conhecendo os pensamentos de Amin desde cedo. As histórias de aviação da irmã,
mesmo que pudessem ser enormes invenções o deixava com as asas prontas para
sonhar, sem nunca pensar que seus próximos dias, semanas, meses e anos seriam
como se fossem um enredo de filme dramático, praticamente lutando para existir,
fugindo de muitos males que encontra pelo caminho, buscando uma identidade
mesmo que para isso a jornada tenha que ser feita sozinha, longe de todos que
ama. Passa por dezenas de constrangimentos, se enche de vergonha sem saber ao
certo como sobreviver em meio ao mundo que consegue enxergar até ali. Descobre
sua sexualidade cedo, mesmo que até a adolescência ainda seja confuso para ele
pois no Afeganistão os homossexuais ‘não existiam’, davam vergonha para a família,
um lugar difícil de se aceitar ser gay.
Fuga (Flee) nos
provoca reflexões que vão desde as políticas mundiais, os horrores de uma
guerra civil descontrolada, sangrenta e impiedosa, o capitalismo, até os
traumas que vivem dentro de nós e muitas vezes nos travam de seguir em frente.
Contando suas verdades, Amin se liberta. É lindo ver isso diante de nossos
olhos, como testemunhas de mais esse renascimento de um homem que merece demais
que a paz e a felicidade nunca mais deixem de estar por perto.