01/09/2025

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Pausa para uma série: 'Duas Covas'


Uma obra audiovisual em que nada é o que parece. Assim podemos começar a falar de Duas Covas, a nova minissérie espanhola que alcançou ao Top 1 da Netflix logo em sua semana de estreia. Apesar de apresentar um episódio piloto apenas morno, consegue encontrar um rumo interessante quando mete o pé no acelerador numa trama que aposta nas surpresas escondidas pelo caminho. No papel principal, a ótima Kiti Máver da vida a uma avó angustiada que liga o modo detetive na busca da neta.

Isabel (Kiti Mánver) é um senhora aposentada que vive numa confortável casa no alto da belíssima cidade de Frigiliana, na província de Málaga. Tudo ia bem em sua vida até o dia fatídico em que sua neta preferida desapareceu, junto de uma amiga - filha do mafioso Rafael (Álvaro Morte). Anos após o ocorrido, ainda em busca de informações sobre o que aconteceu, Isabel começa a descobrir peças importantes desse quebra-cabeça.

O clima de suspense é constante, com a imprevisibilidade dos personagens se tornando uma ponte importante - mesmo que alguns deles não sejam tão bem desenvolvidos na trama. Do luto prolongado aos segredos de família e à incapacidade policial, o suspense encontra mais camadas que o drama.     

Parafraseando Confúcio, e colocando a vingança como ponto central, o projeto parte de disfunções familiares, esticando a corda dos acontecimentos com uma revelação atrás da outra. Presa totalmente ao ponto de vista da protagonista – o que limita o discurso –, Duas Covas parece apostar no chocar de uma violência marcante para trazer luz sobre as consequências ligadas à dilemas morais.

Com três episódios, todos já disponíveis na Netflix, Duas Covas é mais uma minissérie que tenta prender a atenção por seus mistérios, mas deixa uma sensação de que falta algo para que esse caldeirão de segredos se torne realmente inesquecível.

 

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Crítica do filme: 'Devo'


Pode ser que você – assim como eu – nunca tenha ouvido falar de uma banda formada no início da década de 1970 que, misturando música, teatro e principalmente, filosofia, conseguiu alçar voos dentro do movimento New Wave. Pioneiros no foguete de visibilidade que foi a MTV, o Devo, como eles próprios se definem, incompreendidos, merece ser redescoberto! E esse é justamente o trunfo de um documentário que acabou de chegar à Netflix.

Com um idealismo surgido há 50 anos, em meio a um cenário caótico dos EUA - em plena guerra do Vietnã - e refletindo cada vez mais sobre a arte como instrumento de ideias, por qualquer meio que seja, um grupo de amigos da Universidade de Kent State despertou para sua própria ideia após o absurdo assassinato de quatro estudantes. Com raízes no art rock, logo assumiram um viés subversivo, sem nunca perder a identidade: pensando de forma crítica, decidiram se expressar através da música.

O documentário Devo nos leva desde o início até os dias atuais dessa banda de décadas de importância – embora talvez não tão reconhecida quanto deveria. Com ótimo material de arquivos e entrevistas, vamos sendo guiados por uma narrativa fascinante, numa cronologia detalhista e repleta de conceitos que marcaram a trajetória de seus membros fundadores. Tendo a ironia afiada e os acordes intensos de suas guitarras, chegamos aos princípios básicos de uma banda que sempre criticou questões que norteiam – até hoje – a sociedade.

Adeptos do termo ‘Involução’ - na qual consiste em acreditar que a humanidade regredia, não evoluía - o Devo chamava a atenção por onde andavam, através de canções que pulsam sátira e os vícios constantes da hipocrisia. Caminhando na incógnita do sucesso, a banda seguiu jornadas nada comerciais e, por incrível que pareça, nunca perdeu sua identidade, fato que formou uma pequena, mas fiel, legião de fãs até hoje. 

Exibido em alguns festivais de cinema pelo mundo, o documentário Devo é muito mais do que o retrato de uma banda de rock que foge do comum. Com ampla contextualização, traz reflexões sobre os caminhos da humanidade, encontrando importantes sentidos - críticas, certezas, afirmações – dentro da sempre conturbada cultura Pop.

 

 

 

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31/08/2025

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Pausa para uma série: 'Pssica'


É tão bom assistir a uma produção audiovisual brasileira com tanta qualidade! Esta, em especial, provoca reflexão atrás de reflexão! Baseada no livro homônimo do escritor paraense Edyr Augusto, a nova série da Netflix – Pssica – empolga do primeiro ao último episódio, conduzindo o público por um mosaico de violência, cujas peças se encaixam com certa precisão, ao apresentar uma tonelada de temas importantes. Somam-se a esse retrato, que escancara as feridas de uma sociedade dominada pela criminalidade, atuações viscerais de um elenco coeso.

Já vá se preparando: esta é uma daquelas séries que merecem uma maratona! Do drama à ação, embarcamos em histórias que correm em paralelo, com dinâmicas conturbadas entre pais e filhos atravessando toda o discurso. Personagens muito bem desenvolvidos, são levados ao extremo de qualquer limite moral, em um lugar dominado pela corrupção, por crimes violentos - um paraíso consumido pelo crime.

Tudo começa quando Janalice (Domithila Cattete), após uma situação que leva seus pais a deixá-la na casa da tia (Fátima Macedo), em Belém, é sequestrada por um grupo criminoso ligado ao tráfico de mulheres. Paralelamente, conhecemos outros personagens: um ex-policial em busca da afilhada; Preá (Lucas Galvino), um bandido que se apaixona e vê sua bolha ligada à crimes desmoronar; e Mariangel (Marleyda Soto), uma ex-militar colombiana que vê sua família despedaçar e parte em busca de vingança. Ao longo da trama, esses caminhos se cruzam, nos conduzindo a um desfecho imprevisível.

Com ritmo eletrizante, desde seu piloto brilhante, vamos percebendo que a complexidade do texto de Edyr Augusto é muito bem diluído em quatro episódios com cenas fortes que vão nos levando até um mar de inconsequências. As protagonistas são nossos maiores guias nessa história. Uma adolescente sequestrada e vivendo horrores, busca encontrar soluções para a situação em que está. A outra, uma heroína sul-americana, com marcas no presente e no passado, que embarca numa sede de vingança.   

A narrativa busca seu caminho por meio das infinidades que o cinema pode provocar – inclusive com um achado que se soma ao desenvolvimento: a ilustração de trechos do livro, que volta e meia ganham espaço entre as cenas. A trilha sonora marcante e cenas, muito bem dirigidas pelo diretor Quico Meirelles, conduzem o espectador por paisagens empolgantes na fronteira amazônica, escancarando de forma intensa os diferentes tipos de corrupção que corroem o senso de humanidade.

Pssica, em seus quatro episódios já disponíveis na Netflix – nos apresenta o contraste de um pedaço do nosso país, do paraíso ao inferno. Uma minissérie provocante, que nos faz refletir bastante sobre nossa sociedade.

 

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25/08/2025

Crítica do filme: 'O Mapa que me Leva até Você'


Com seus quase 80 anos de idade – muitos deles dedicados à sétima arte e marcado com três indicações ao Oscar – o cineasta sueco Lasse Hallström já nos proporcionou emoções diversas: de excelentes filmes a outros um tanto sonolentos. Diretor de Sempre ao seu Lado, Regras da Vida, Chegadas e Partidas e Gilbert Grape - Aprendiz de Sonhador, o experiente artista lança agora seu novo trabalho direto no Prime Video: O Mapa que me Leva até Você. E olha... que decepção!

Com uma trama que se desenrola dentro da já conhecida ‘receita de bolo’ das histórias de amor – superficiais e apressadas – o filme caminha a passos largos para uma espécie de sessão de autoajuda. Baseado no livro do professor de inglês e escritor Joseph Monninger – falecido no primeiro dia de 2025 –, o projeto tenta se impor, em seu discurso, a ideia de ‘viver o presente’. Essa proposta, no entanto, acaba refletindo na narrativa como uma corrida desenfreada em busca de qualquer emoção imediata, sem muitas referências à exploração da  variável tempo.

Heather (Madelyn Cline) é uma jovem organizada e dedicada rumando para um futuro de sucesso na profissão que escolheu. Antes de entrar com toda força no mercado de trabalho, resolve fazer um mochilão pela Europa com as amigas Connie (Sofia Wylie) e Amy (Madison Thompson).  Em terras estrangeiras, acaba conhecendo o desbravador de emoções e aventuras Jack (KJ Apa). Logo, uma atração mútua chega com impacto. Esses dois apaixonados resolvem esticar a viagem, indo atrás dos lugares mencionados no diário deixado pelo avô de Jack. Em certo momento, percebemos que Jack esconde um segredo que colocará um ponto de interrogação no futuro dessa história.

Em muitos momentos, parece que estamos assistindo a um filme que já vimos. Esquisito, né? Nem tanto: a mesmice vem agarradinha à inúmeras produções lançadas todos os anos. Essa sensação estranha nasce do ‘mais do mesmo’, daquela receita de bolo que se joga em clichês, caminha para a previsibilidade e não expande pontos reflexivos. É sempre frustrante se deparar com uma obra que, no universo literário, tem fôlego, mas que no cinema se mostra completamente limitada pela falta de habilidade em encontrar soluções criativas na tela. 

É uma pena que falte emoção. O filme não alcança seu clímax em nenhum momento. O primeiro grande amor – um dos fortes elementos que se apresentam - é retratado de forma fria, em contraste com a protagonista, definida como cética. De romance com ar filosófico, o filme vira uma vitrine de pontos turísticos europeus, um caminho que se mostra decepcionante. Apenas simpático - muito graças à leve, mas eficiente, sintonia entre os dois personagens principais, O Mapa que me Leva até Você entrega uma história de amor cinematográfica igual a tantas outras, daquelas que esquecemos rapidamente.

 

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Crítica do filme: 'Quero Você'


Não é possível que, ainda hoje, uma história rasa, com atuações fracas e sem um pingo de reflexões inteligentes, consiga, de alguma forma, chamar a atenção do público. Nesta semana, chegou ao catálogo da Netflix um filme alemão que se propõe a discutir as desilusões amorosas de maneira atabalhoada, misturando um romance - que não se sustenta - a um thriller cheio de clichês.

A auditora fiscal Lilli (Svenja Jung) chega até a ilha de Maiorca para se reencontrar com a irmã Valeria (Tijan Marei). Chegando nesse paraíso, logo se depara com uma situação que não esperava: Valeria está em um relacionamento e ainda quer a sua assinatura para vender o imóvel da família. Tendo que absorver esse dilema, acaba conhecendo Tom (Theo Trebs), o gerente de uma boate badalada da região. Aos poucos, Lilli começa a perceber que as peças não estão no lugar, descobrindo um grande golpe.

Com roteiro escrito por Stefanie Sycholt e direção de Sherry Hormann, o projeto, que chegou à Netflix no dia 21 de agosto deste ano, transita por assuntos desconexos que se juntam num mix de achismos – algo que fica evidente na narrativa. Golpes mirabolantes de sedução, uma mal explicada especulação imobiliária e perdões por absurdos cometidos compõem uma série de elementos que não passam desapercebidos pelos olhos mais atentos. Outro ponto que incomoda é a desinteressante tentativa de estabelecer definições e conclusões sobre vilões e heróis em uma história sem pé nem cabeça, onde as coincidências surgem como num conto de fadas.

O roteiro ingênuo e superficial, parece tentar prender a atenção dos espectadores por meio da sensualidade de cenas picantes - que surgem repetidamente entre os arcos de desenvolvimento dos personagens. Sempre que a trama parece não saber como prosseguir, entra uma cena de intimidade, em um lopping eterno, sustentado por um discurso confuso e entediante. Nesse ponto, a vontade de desligar a televisão se torna cada vez mais frequente.

Quero Você é mais um passatempo desinteressante que chega ao universo dos streamings. Provavelmente vai estar incluído em várias listas de piores filmes neste ano. É um show de mesmices e clichês, com atuações nada competentes.

 

 

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Pausa para uma série: 'Magreza na TV: A Verdade de The Biggest Loser'


Buscando refletir sobre o caos de alguns veículos de mídia que insistem em se arriscar no polêmico universo do ‘tudo pela audiência’, a nova minissérie da Netflix Magreza na TV: A Verdade de The Biggest Loser conduz o espectador a uma análise relativamente profunda, guiada por depoimentos marcantes de pessoas envolvidas em um controverso reality show que deu o que falar ao longo de 17 temporadas, num dos principais canais de televisão nos Estados Unidos.

Dirigido pela cineasta norte-americana Skye Borgman – responsável também pelo ótimo documentário, da Netflix, A Garota da Foto –, a minissérie busca não fugir do seu foco que tem duas estradas: a questão da obesidade e as polêmicas em torno do programa. Cada episódio amplia o debate, e em alguns casos, embates de opiniões entre os entrevistados, algo que de alguma forma reforça os dramas reais expostos na série.

O The Biggest Loser foi um programa altamente rentável, que explodiu de sucesso entre os anos 2004 a 2016. O foco eram participantes de diferentes faixas etárias com obesidade, que competiam por uma grande quantia em dinheiro: vencia quem alcançasse o menor peso ao final. Os escolhidos eram divididos em grupos e guiados por treinadores que exigiam o máximo de cada pessoa – muitas vezes ultrapassando limites em relação a agressões verbais e outras práticas questionáveis.

Dividido em três episódios, o projeto se propõe em sua narrativa explorar a curiosidade, e revelar detalhes nunca mostrados, trazendo relatos de ex-participantes, de um dos treinadores, ex-produtores, e do médico responsável. Dessa forma, contextualiza bastidores e o reflexo da experiência na vida dessas pessoas após o programa.

Desde a apresentação de personagens importantes para os pontos reflexivos, passando pelas provas exigentes que o programa permitia, até os problemas com a forte opinião pública em relação ao que era feito no programa, somos colocados de frente com pontos de vistas deixando mais fácil cada um de nós tirarmos nossas próprias conclusões.

A obesidade é um tema importante, não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Ao levar a questão para milhões de televisores através de um reality show, a exposição constante acaba rompendo barreiras morais, deixando o lado comercial falar mais forte que qualquer debate inicial. Acesse a Netflix e veja, tire suas próprias conclusões.

 

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Pausa para uma série: 'A Mulher da Casa Abandonada'


Um fato jornalístico relevante, trazido através de um podcast, logo se transforma em matéria de diversos jornais, ganhando ampla repercussão. No centro do debate está um caso macabro que envolve um casarão - que parecia abandonado -, uma foragida da justiça norte-americana e uma subtrama que se desenrola entre o Brasil e o Estados Unidos, ao longo de anos. Esses são alguns dos principais elementos da nova minissérie do Prime Video, A Mulher da Casa Abandonada.

Criado pelo jornalista Chico Felitti, o podcast homônimo em que se baseia esse projeto foi um enorme sucesso no ano de 2022, tornando-se um dos mais ouvidos em todo o país. Com a grande divulgação dos fatos apresentados nesse produto digital, um casarão em Higienópolis – um bairro de alto padrão em São Paulo – passou a atrair as atenções de todos. Foi assim que chegamos ao nome de Margarida Bonetti, figura central da trama e moradora da tal casa abandonada.

Com a polícia abrindo investigações a partir de denúncias, novos fatos são revelados, nos levando para uma história aterrorizante que envolve patrões submetendo uma mulher, longe de casa, a condições desumanas. Assim, um elo jurídico é construído entre dois países tendo as mesmas figuras como elementos principais.

Com três episódios, com cerca de 30 minutos de duração, A Mulher da Casa Abandonada, busca, num primeiro momento, relatar os fatos base do caso que chocou o país. Como apoio à narrativa, entrevistas com o jornalista que jogou luz ao caso, com Margarida, com forças policiais que acompanharam o caso – tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos – além de um depoimento exclusivo da vítima dos maus-tratos praticado pelos patrões.

A questão é que, nos episódios que se seguem, com tanto material para ser colocado em evidência – e novas informações surgindo -, o projeto acaba soando como um complemento do podcast. Quando percebemos isso, e pra quem nunca tinha ouvido o que foi esmiuçado pelos aúdios que correram o país, a minissérie parece confusa e com aprofundamento apressado. Algo que limita mas não diminui a importância do registro realizado.

Do subúrbio de Washington a uma área nobre da maior cidade do país, tendo o abuso psicológico e físico como um dos importantes tópicos a serem refletidos, A Mulher da Casa Abandonada busca, ainda que pela superfície, apresentar uma história real: um true crime chocante que envolve muitas variáveis que conduz para um recorte sociológico relevante e que – felizmente – foi registrado, podendo gerar valiosos debates e reflexões sobre nossa sociedade.

 

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20/08/2025

Crítica do filme: 'A Noite Sempre Chega'


Baseado no livro escrito por Willy Vlautin, o novo drama da Netflix, A Noite Sempre Chega, é um retrato caótico das inconsequências que busca ligar os pontos de um drama pessoal ao processo de gentrificação, ampliando seus horizontes por meio dos respiros de sobrevivência. Com uma das grandes atrizes da atualidade interpretando a personagem principal - Vanessa Kirby – o longa-metragem não oferece respiros, nem almeja o clássico final feliz; busca trazer um recorte visceral e ‘pés no chão’ do viver à margem da sociedade.  

Lynette (Vanessa Kirby) precisa sobreviver em um contexto familiar complicado, convivendo com a mãe, Doreen (Jennifer Jason Leigh), e o irmão mais velho, Kenny (Zack Gottsagen). Quando ficam à beira de perder a casa onde moram, a protagonista precisa arranjar uma alta quantia em apenas 24 horas. Percorrendo, noite adentro, o submundo de uma cidade de oportunidades perdidas, ela é obrigada a confrontar o passado e ultrapassar qualquer limite de inconsequência.

Até onde você iria para salvar sua família? Através dessa pergunta - que parece cair em um senso cada vez mais comum no mundo do cinema -, o discurso acoplado ao roteiro busca reflexões sociais, apoiado por uma contextualização social que se mostra eficiente ao unir gêneros cinematográficos em uma saga de sobrevivência construída a partir de personagens e seus conflitos.

Do drama de perder a casa (uma crítica à gentrificação) aos conflitos internos familiares (pena  Jennifer Jason leigh ser tão pouco aproveitada) e à necessidade de encarar as verdades que a assombram, a protagonista é como um pêndulo cuja trajetória que desce ao inferno várias vezes, mas nem alcança a beira do céu, andando muito longe de qualquer rastro de esperança.  

Para chegar a esse resultado, a narrativa busca um ritmo dosado, acelerando aos poucos, com uma fotografia que reforça a sensação de melancolia e introspecção. Nada fica pelas entrelinhas. Nosso guia pela história, a machucada personagem principal, reage não apenas com a razão: busca as emoções lá do fundo, gerando um mar de incertezas. Dentro desse caos emocional, a trama se desenrola, sustentada pela força da atuação de Vanessa Kirby, que mantém a atenção para essa complexa personagem.     

Dirigido pelo cineasta britânico Benjamin Caron, que tem em seu currículo a direção de episódios de badaladas series recentes como Andor, Sherlock e The Crown, esse projeto é um duro soco no estômago: incomoda, cutuca feridas, e apresenta um retrato profundo da infelicidade e dos momentos em que nos vemos sem saída.

 

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19/08/2025

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Pausa para uma série: 'Cortina de Fumaça'


Desde Sobre Meninos e Lobos, passando por Ilha do Medo, o escritor norte-americano Dennis Lehane vem, cada vez mais, buscando em seus trabalhos um olhar para camadas profundas do ser humano e seus comportamentos em uma sociedade que se transforma e caminha a passos largos ao descontrole. Em Cortina de Fumaça, nova série da Apple TV+, ele retorna a essa análise complexa – e por que não dizer, também fascinante - através de personagens à beira do precipício moral.

Com nove episódios nessa primeira temporada – não sabemos se haverá uma segunda – todos já disponíveis na plataforma mencionada, acompanhamos histórias de pessoas que, de alguma forma, estão nos limites – muitas vezes ambíguos - entre heróis e vilões. Tendo a reviravolta (plot twist) como uma carta na manga, exposta em fragmentos dos primeiros aos últimos episódios, a narrativa mergulha no sombrio da mente humana de forma envolvente.

No centro desse tabuleiro está o investigador de incêndios criminosos Dave (Taron Egerton), um homem que leva uma rotina comum, casado, bem-visto no trabalho, que se vê de frente com dois incendiários tocando o terror pela cidade. Sem conseguir avançar nas investigações, é designado para ajudá-lo a policial Michelle (Jurnee Smollett), uma mulher com traumas no passado. Essa dupla precisará encontrar o caminhos para chegar até aos criminosos. Só que há um detalhe, no final de um dos primeiros capítulos, nossos olhos se voltam para verdades inesperadas e passamos a acompanhar os desenrolares de outras perspectivas.      

Seguindo uma estrutura – a mais atraente ao público – de fazer episódios iniciais envolventes entregando prévias de desenvolvimento e indo direto à raiz do seu discurso, Cortina de Fumaça é o fogo fora do controle, em todos os sentidos. Esse preenchimento das lacunas, através de um alicerce contextual e de seus paralelos, nos apresenta ações e inconsequências que vão ao encontro das nossas reflexões sociais. Dos traumas do passado, passando pelo comportamento humano até o distúrbio de personalidade, o roteiro nos fisga a atenção em muitos momentos.

Para onde quer que viremos nossa atenção, encontramos peças de encaixe. O desenvolvimento dos personagens é algo que impressiona: todos tem espaço e se tornam elementos importantes para contar essa história. Partindo de duelos sugeridos, conforme avançamos nos episódios, percebemos respingos também sobre a ética, onde o certo e o errado encontram barreiras de compreensão. A grande graça desse projeto não é saber a identidade dos suspeitos, é muito mais que isso, são os caminhos que levam pessoas a atos no impulso, tendo o desprezo na ponta das atitudes.

Cortina de Fumaça se consolida, nessa primeira temporada, como um das gratas surpresas no universo das séries. Sem muita divulgação desde sua estreia, mal sabe o público o que o espera. É ver e se deliciar!

 

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17/08/2025

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Crítica do filme: '152 AB' [Mostra de Cinema de Fama]


Modelando uma narrativa simples e eficiente sobre as inquietudes urbanas, o curta-metragem 152 AB é um retrato sociológico do cotidiano de muita gente. Por esse gancho, a identificação já fisga rapidamente o público, trazendo paralelos com a realidade. Dirigido pela dupla Daniel Jaber e Jelton Oliveira, esse é um singelo recorte existencial, onde na estrada de desilusões as luzes de esperanças piscam e precisam, de alguma forma, serem aproveitadas.

Dois personagens e suas dificuldades, morando lado a lado, em um lugar onde os sonhos parecem se despedaçar. Ela, com dívidas de aluguel, prestes a ser despejada. Ele, com notícias terríveis e uma saudade de doer o peito. Num rápido encontro, desabafos e espasmos de luz do fim no túnel se mostram presentes.

Um muro dividindo histórias que se complementam. Através dos protagonistas e suas angústias, além os sonhos perdidos – completamente na corda bamba das emoções – a pergunta que logo nos fazemos é: O que fazemos na loucura cotidiana das responsabilidades e dificuldades? Através dos diálogos desses conhecidos de curto tempo, vizinhos que pouco se falavam, as peças de encaixe entre as duas histórias chegam em reflexões profundas sobre a vida.

Através da liberdade criativa e infinidades de possibilidades do cinema, o projeto encontra seu norte com elementos simples. Esse não se arriscar deixa tudo mais ‘pé no chão’, focando em ótimos diálogos e mensagens diretas que modelam o desenvolvimento dos personagens. Mesmo com um excesso de trilha sonora - que acaba escapando da atmosfera de tom sóbrio lapidado por melancolia que conduz a narrativa – 152 AB deixa sua marca, explorando as muitas realidades da grande parcela da população dos centros urbanos.

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Crítica do filme: 'Um Amigo na Noite' [Mostra de Cinema de Fama]


Um transeunte perdido no seu pensamento que vaga pelas ruas em busca de alguma luz para seus problemas. Num primeiro momento, essa definição é a mais certeira quando pensamos no curta-metragem Um Amigo na Noite. Indo de encontro a um problema social bastante comum – as aflições do cotidiano – o projeto mineiro dirigido por Vinicius di Castro busca ir nas raízes de seu discurso com pontos interessantes, e outros nem tanto assim.

Um trabalhador brasileiro - aqui esgotado pela sua rotina num escritório de advocacia – resolve abandonar o comodismo de seu veículo e partir a pé rumo a qualquer lugar que não seja dentro da bolha que virou seus dias. Pelas ruas de uma grande cidade brasileira, vagando pela noite, em certo momento se depara com um cãozinho querendo sua atenção, um fato com consequências, que irá fazê-lo refletir sobre seu papel no mundo.

Uma batida nas teclas – de forma incessante - abre alas de um filme que busca o refletir de um estado de solidão, um paralelo com infelicidade que muitas vezes não se mostra, só se sente. Os tons carregados de amargura se projetam em uma fotografia com ambientes escuros, trazendo o clima para uma tensão. A fuga do concreto e as novas interpretações da observação do cotidiano viram alicerces de uma narrativa que tenta a todo instante alcançar camadas mais profundas através de um homem sem direção, caminhando despretensiosamente rumo ao inesperado.

Quando o projeto sugere e ataca o debate que propõe se mostra interessante, quando tenta definir ou mesmo encontrar sentido para a situação que se encontra o protagonista - pulando as entrelinhas - o filme força situações existenciais. Esse último ponto, grande calcanhar de aquiles da produção, nos coloca de frente com a pretensão de definições sobre estado de espírito, quase um precipício criativo de uma história com paralelos com muitas realidades. 

 


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Crítica do filme: 'Bijupirá' [Mostra de Cinema de Fama]


No primeiro dia de exibições das mostras competitivas da 8ª edição da Mostra de Cinema de Fama nos deparamos com um filme que navega pelo encontro de duas gerações e as formas de enxergar o mundo. Tendo a imensidade do mar e seus mistérios como plano de fundo, o curta-metragem carioca Bijupirá busca ampliar seus horizontes de reflexões ao duelar pelos contrastes das relações que vão da agonia à aflição, da curiosidade ao medo, tendo dois personagens num ping pong de emoções.

Um jovem navega pelas águas com seu companheiro de travessia, um experiente pescador. Ao se jogar em uma intensa curiosidade acerca de uma mutualidade ocorrida na vida de animais marítimos, o jovem acaba se desprendendo do barco - rumando às incertezas e inconsequências. Do outro lado, seu parceiro de jornada entra numa espiral de dúvidas.

No horizonte do oceano, as aflições correntes de duas pessoas de faixa etária diferentes são logo apresentados através de um intenso diálogo que valida o real entendimento sobre relações. Não sabemos qual o elo entre os dois personagens, algo que justifica toda a narrativa alegórica com paralelos que miram a mutualidade. Mesmo com as peças embaralhadas é possível encontrar um norte para compreensões e reflexões.

Muito bem filmado, com ritmo dosado e que prende a atenção, esse projeto dirigido por Eduardo Boccaletti também se apoia em uma fotografia que amplifica elementos que representam a natureza. Esse, que é mais um elo numa corrente que joga suas fichas num desenvolvimento nada evidente dos protagonistas, é um dos pontos altos de uma trama que na sua simplicidade cria caminhos interessantes para intrigantes raciocínios - mesmo dando a impressão que com mais peças a harmonia do discurso chegaria com mais força.

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Crítica do filme: 'Procissão' [Mostra de Cinema de Fama]


Um dos filmes mais interessantes da Mostra de Cinema de Fama 2025, o curta-metragem cearense Procissão, é uma viagem hipnotizante rumo à construção de identidades fazendo refletir através de jornadas atemporais de vidas que se entrelaçam pela fé. Contemplativo, deixando margens pra imaginação e caminhos para suas interpretações, atravessa a criatividade com seu discurso certeiro aplicado a uma narrativa que preza pela sincronia visual impressionante - que causa impacto.

A reunião de elementos, e suas inter-relações, juntamente com traços marcantes de técnicas de animação impecáveis em sua reprodução na tela se agrupam para contar um amplo contexto, dentro de um recorte plural. De marchas de caráter comemorativo, chegamos até formações de cidades, de bolhas que encontram seus pontos em comum. Tudo isso feito com um ritmo dosado que deixa nosso pensar borbulhando de opções para embarcar no que assistimos.  

Com figuras caracterizando personagens – e todos tendo função como um todo - andando em direção a contar uma história sobre devoção e formações sociais que moldam regiões, o projeto nos leva em 16 minutos a pensar sobre a religiosidade com uma lupa social acoplada. Impressiona também como o tempo se torna um trunfo da narrativa, que explora o começo, meio e fim de ciclos, esse último através das memórias.

O artista visual e animador Álisson Pereira Flor é o responsável por esse curta-metragem criativo, nada pretencioso, que se coloca num papel inteligente de observador dos laços criados através da religiosidade popular. A fé, os encontros, as memórias, são colocados num liquidificador sociológico se tornando um filme com ótimos pontos para debate.   

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10/08/2025

Crítica do filme: 'Sombras do Passado'


Apesar de partir de uma premissa aparentemente frágil — uma mãe solteira que descobre nunca ter tido um irmão — o longa holandês Sombras do Passado ultrapassa as camadas superficiais dos conflitos para nos conduzir a um drama intenso, marcado por uma reviravolta surpreendente. Embora exija um pouco de paciência no início, o filme aos poucos conquista o espectador.

Sob a direção de Diederik Van Rooijen, a obra combina elementos de thriller jurídico com descobertas comoventes, mantendo o suspense sempre presente. Além disso, aborda temas profundos e relevantes, como autismo, maternidade, bullying e as complexas surpresas que permeiam os laços familiares.

Iris (Angela Schijf) é uma advogada e mãe de um filho autista que, inesperadamente, descobre a existência de um irmão (Fedja van Huêt) até então desconhecido — e, para sua surpresa, ele está preso, acusado de assassinato. Movida pela urgência de entender essa história, ela se lança em uma corrida contra o tempo, desvendando segredos profundos ligados ao crime e, sobretudo, à sua própria família.

Com o autismo como tema central, acompanhamos duas gerações de mães e suas distintas percepções sobre o assunto. Nesse cenário, a narrativa mergulha no suspense, onde cada nova descoberta da protagonista revela uma peça fundamental de um complexo tabuleiro emocional, marcado pelas consequências dos atos do passado. No embate entre presente e passado, dilemas e surpresas surgem constantemente, mantendo a tensão viva. A excelente fotografia intensifica e reflete essas emoções profundas, potencializando ainda mais a experiência do espectador.

Uma das grandes sacadas deste filme é direcionar a trama para um plot twist totalmente inesperado, sem oferecer nenhuma pista antecipada. Prepare-se para ficar de queixo caído! É aquele tipo de obra que merece sua atenção até os últimos segundos, pois a surpresa está garantida. Embora apresente momentos que beiram clichês já conhecidos, a história se mantém firme graças às atuações sólidas e a um roteiro habilidoso na dosagem dos mistérios.

Perdido no catálogo do Prime Video, esse longa-metragem de 2013 é atemporal! Vale a pena dar uma conferida!

 

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09/08/2025

Crítica do filme: 'A Mistake'


A exposição e a culpa. Chegou ao catálogo do Prime Video um filme profundo que aborda, com sensibilidade, um tema delicado que envolve medicina, ética e opinião pública. A partir de uma operação que se complica após um erro, somos conduzidos por uma narrativa densa que revela uma profissional brilhante vivendo no fio que separa o pragmatismo das emoções. A Mistake, dirigido pela cineasta neozelandesa Christine Jeffs, também encara de frente o sexismo, trazendo reflexões potentes sobre um ponto crucial: o desafio enfrentado por mulheres em ambientes machistas.

Elizabeth (Elizabeth Banks) é uma experiente cirurgiã em um hospital de alta demanda nos Estados Unidos. Durante uma cirurgia de rotina, seu residente, Richard (Richard Crouchley), comete um grave erro sob sua supervisão. No dia seguinte, a paciente morre, e Elizabeth passa a enfrentar embates com a administração do hospital, o machismo escancarado, o sexismo e o peso da opinião pública.

Baseado no romance homônimo de Carl Shuker, o filme coloca em evidência o erro - e, inevitavelmente, a culpa - para explorar as raízes complexas de nossa sociedade. Em uma descida por camadas cada vez mais profundas, acompanhamos os conflitos que se desdobram entre os personagens e os absurdos que, infelizmente, também encontramos na vida real, revelados em comportamentos egoístas que ferem princípios éticos e morais.

Em uma análise densa, que cruza a ética na medicina com as emoções humanas, acompanhamos uma protagonista cuja vida é virada de cabeça para baixo após uma mancha em seu brilhante currículo. O roteiro consegue expandir os debates que surgem, lançando luz sobre uma profissão tão essencial quanto desafiadora: a medicina. Em meio à exposição dos procedimentos cirúrgicos — sustentada pelo ideal de transparência pública, mas incapaz de revelar as complexas variáveis e imprevistos que moldam cada cirurgia —, a narrativa mergulha nas tensões entre dever e julgamento social.

A Mistake também enfrenta de forma direta a questão do sexismo — o preconceito baseado no gênero — no ambiente profissional, trazendo reflexões relevantes e precisas sobre o tema. A habilidade do roteiro em ampliar seu epicentro narrativo para discutir problemas que atravessam nossa sociedade diariamente é um dos grandes méritos desse filme, que merece ser descoberto.

 

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