21/10/2025

Crítica do filme: '27 Noites'


Chegou esta semana à Netflix um filme argentino que apresenta, de forma bem-humorada, um drama sobre internação não voluntária – questão que teve mudança na legislação argentina anos atrás. Dirigido e protagonizado pelo uruguaio Daniel Hendler, o projeto, baseado na obra Veintisiete Noches, escrita por Natalia Zito, busca, sem se prolongar, ampliar os debates sobre o bem-estar psicológico.

Buscando, em uma fórmula que combina ponderação e sutileza, alguns caminhos para boas reflexões, um dos méritos desse filme é suavizar o ‘pé da letra’ sem se reduzir a uma obra simplória. Entre, emoções, comportamentos e uma passada rápida nas burocracias jurídicas, o tema da saúde mental vira um elemento crucial - e nada maçante - que circula durante toda a trama. 

Leandro (Daniel Hendler) é um perito designado por um tribunal para avaliar Martha (Marilú Marini), uma mulher octagenária, depois que suas filhas a internam, de forma involuntária, em uma clínica, com a justificativa que sofre com demência frontotemporal e vem tomando atitudes suspeitas. Conforme vai se aproximando da mulher, ele acaba entendendo melhor todo o contexto, passando também por uma enorme transformação em sua própria vida.  

O conflito geracional e as formas de compreender a vida são alguns dos assuntos que permeiam os personagens, sempre tendo uma direção rumo ao lado humano e suas contradições. Mesmo com coadjuvantes colocados em segundo plano, a troca de perspectiva entre Leandro e Martha funciona muito bem, garantindo um alicerce para o ritmo não se perder.    

A simpática narrativa molda seu desenrolar equilibrada entre o presente - ambientado algumas décadas atrás – e os flashbacks, ajudando a contar essa história. Sob o ponto de vista do protagonista – um personagem longe do carisma - chegamos até as poucas camadas que se abrem. Nada é muito profundo por aqui, mas a obra não deixa de ser relevante, principalmente por explorar com eficácia e leveza pontos de vistas, descontruindo assim o tema cisudo.

 

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19/10/2025

Crítica do filme: 'Zoe, minha amiga Morta'


Totalmente focado em detalhar os caminhos de aflição de uma pessoa com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), o projeto Zoe, minha amiga Morta, que chegou recentemente ao catálogo do Prime Video, nos mostra uma jovem ex-militar perturbada pelo fantasma de uma amiga falecida. A partir do trauma de uma situação, percorremos os choques emocionais promovendo bons debates sobre saúde mental.

Dirigido por Kyle Hausmann-Stokes, em seu primeiro longa-metragem, o filme busca, por meio de seu roteiro, conectar todos os pontos de um diagnóstico que atinge milhares de pessoas ao redor do mundo. Do psicológico ao social, passando pelas fragilidades do estado de bem-estar até os sinais de alerta quando o descontrole se manifesta, o abismo profundo sobre o assunto é colocado para reflexões.

Merit (Sonequa Martin-Green) trabalhou durante muitos anos como mecânica em unidades militares. Durante o tempo que serviu ao exército, desenvolveu uma amizade profunda com Zoe (Natalie Morales). No presente, Merit enfrenta inúmeros conflitos provocados por situações que lhe causaram forte estresse. Buscando encontrar soluções para sua saúde mental e se reaproximando do avô – em fase inicial de Alzheimer – ela embarca em uma jornada de descobertas e enfrentamento dos medos.

O projeto busca realizar algo que pode ser bem complicado quando pensamos em narrativa: ligar um acontecimento trágico do passado – sem revelações iniciais, apenas sugestões - a questões incômodas do presente. Essa junção de elementos ganha força a partir de lembranças vívidas, em forma de flashbacks, mas que estacionam em muitos momentos na melancolia da introspecção, mesmo fazendo sentido pela culpa e o medo que destroem qualquer fortaleza.

Preparando o terreno para o seu iminente clímax, o filme segue em um ritmo dosado, através de um humor triste – entre o doloroso e o cômico -  percorrendo detalhes da intimidade de uma forte amizade, ponto inicial para o desenvolvimentos dos personagens. Falando em personagens, além das duas boas atuações das protagonistas, em papéis complexos e executados com interpretações comoventes e sólidas, os dois coadjuvantes interpretados pelos experientes Morgan Freeman e Ed Harris também chamam a atenção.

Zoe, minha amiga Morta através de uma história que pode encontrar paralelos com muitas outras, de forma envolvente, nos leva para reflexões sobre o universo muitas vezes silencioso da saúde mental.

 

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Crítica do filme: 'Stans'


Chegou de mansinho ao catálogo da Paramount Plus um documentário interessante que parte de uma relação entre um dos maiores rappers da história - ícone de uma geração dos anos 1990/2000 - e seu fandom, abrindo um leque de camadas originais e cheias de intensidade, que vão de encontro a momentos marcantes de sua carreira. Stans é muito mais que um olhar sobre o vínculo entre fã e artista: é uma imersão em sentimentos reais expressos em canções que atingiram em cheio corações pelo mundo – e que, logo, viraram arte.

No ano 2000, Marshall Bruce Mathers III, mais conhecido como Eminem, já no topo das paradas de sucessos com suas letras provocantes - que retratavam alguns pontos de vistos bem pessoais sobre recortes de sua vida - lançou uma música chamada Stan, que se tornaria um de seus maiores sucessos, sobre um fã devoto, andando na linha tênue entre admiração e obsessão. A palavra (e seu significado), 17 anos depois, foi reconhecida pelo Oxford English Dictionary. Esse é o gancho para chegarmos a este instigante documentário dirigido por Steven Leckart.

A partir de depoimentos de fãs fanáticos - em algumas escalas de intensidades – por seu ídolo, incluindo Ed Sheeran, chegamos em um produtivo e fascinante debate sobre a relação de identificação e admiração por um artista. Mas a obra não estaciona nessa questão, usando esse gancho para explorar outras camadas que jogam na tela recortes da vida profissional e pessoal de um exímio contador de histórias: um rapper que apresenta músicas bastante pessoais, com letras provocantes e videoclipes criativos, que algumas vezes partem para o confronto com a hipocrisia.

O interessante é que não se trata necessariamente de um documentário sobre toda a vida do Eminem. São duas correntes - fã e ídolo - que encontram-se para conversar sobre questões influenciadas pela trajetória do músico, em ambas perspectivas. Com uma edição inventiva – um dos grandes méritos dessa produção -, a narrativa percorre pontos importantes da carreira (mesmo não desenvolvendo além da superfície a questão do legado), além de abordar o processo criativo e a influência na vida de pessoas de um artista que teve como válvula de escape criar forças na vulnerabilidade, abrindo o livro de suas experiências.

Seja você é fã ou não de Eminem, pode ter certeza: essa é uma obra para se conferir. Stans se consolida como um documentário criativo e magnético, que insere questões sociais dentro de um universo bem particular - o de uma relação unidirecional que se amplia até as influências culturais.  

  

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17/10/2025

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Crítica do filme: 'A Vizinha Perfeita'


Com uma narrativa brilhante, que encontra enorme coesão na sua montagem, o novo documentário da Netflix, A Vizinha Perfeita, detalha uma tragédia real e chocante que atingiu em cheio a cidade de Ocala, no Condado de Marion (Flórida). Dirigido pela cineasta Geeta Gandbhir, o projeto – que prende a atenção desde seu início até o sufocante desfecho - levanta questões importantes sobre preconceito racial, leis de legítima defesa e o papel da polícia, chegando em um recorte profundo sobre a sociedade norte-americana.

A partir de desentendimentos – que já duravam semanas – entre vizinhos e uma específica moradora da região, acontece um fato mortal. Tendo esse episódio como pontapé inicial, acompanhamos uma cronologia de acontecimentos bem detalhada, apresentada sob diversos pontos de vistas. Aos poucos, sem perder o ritmo e tensão, somos guiados até os horrores de um caso que chocou os Estados Unidos alguns anos atrás.

O antes, o ocorrido e o depois. Exibido no Festival de Sundance deste ano, esse True Crime apresenta seus personagens reais e conflitos através de uma criativa narrativa que utiliza apenas gravações feitas por câmeras – muitas delas corporais, daquelas que policiais usam. Assim, vamos descobrindo a origem dos fatos que nos conduzem até o final nada feliz dessa história – vou logo falando, os minutos finais são de partir o coração.

Na composição dessa tragédia real, chegamos a alguns pontos de argumentação, o principal deles é sobre a Lei Stand Your Ground. Por conta dessa polêmica lei de defesa pessoal – em vigor em alguns estados norte-americanos, como a Flórida, desde 2005 -, que permite o uso de força letal caso se sinta em risco de morte e autoriza uma reação imediata ao que julgar ser uma ameaça, uma das personagens envolvidas demorou para ser presa, gerando uma série de protestos.

Os debates em torno dessa questão apresentada acima é um dos ótimos tópicos que o documentário levanta para reflexões sociais sobre alguns dos caminhos que levam à violência. Da cultura da impunidade ao preconceito racial, A Vizinha Perfeita apresenta essa história forte e real, que dilacerou uma família e colocou em evidência - mais uma vez - as leis mais permissivas de uso e porte de armas, fator preponderante para a crueldade ocorrida.   

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Crítica do filme: 'O Ônibus Perdido'


Cinco anos após seu último trabalho, Relatos do Mundo, o experiente cineasta britânico Paul Greengrass volta ao universo cinematográfico para comandar mais um projeto que aborda tragédias da vida real – como foi o caso de Capitão Phillips, 22 de Julho e outros filmes de sua carreira. Produzido pela Apple, O Ônibus Perdido nos leva até anos atrás, no norte da Califórnia, onde ocorreu o incêndio mais mortal da história desse estado americano.

Kevin (Matthew McConaughey) é um motorista de ônibus escolar, perto dos 40 anos, que voltou para a cidade onde nasceu e tenta se entender com o único filho. Um dia, após um incêndio florestal com alta taxa de propagação, ele fica com a missão de resgatar um grupo de crianças e a professora Mary (America Ferrera), no colégio onde estavam.

Inspirado em acontecimentos reais e na obra Paradise: One Town's Struggle to Survive an American Wildfire, escrita pela jornalista Lizzie Johnson, o foco da narrativa é levar até o público os momentos de tensão a partir de dois pontos de vista, o de quem estava no ônibus cercado pelo fogo e o das autoridades que pensavam em soluções para combater o avanço do incêndio.   

A construção para se chegar à ação desenfreada – uma reprodução bem chocante dos acontecimentos – começa com as aflições no laço paternal. A relação entre pais e filhos é algo que está bem próximo de tudo que acompanhamos, funcionando como um combustível para entendermos ações e consequências.

Dentro desse desenvolvimento, com o lado humano em evidência - uma marca do cinema de Greengrass, com conexões entre pessoas em muitos tipos de situação emocional -, O Ônibus Perdido foge do sensacionalismo e chega até as críticas importantes de uma situação trágica que deixou bilhões em danos materiais, mais de 70 vidas perdidas e marcou para sempre pessoas unidas por coragem, compaixão, responsabilidade e exemplo.

 

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16/10/2025

Crítica do filme: 'Limpa'


Há filmes que começamos a assistir e parecem não levar a lugar nenhum. Por isso, é sempre  importante ter paciência - pode ser que grandes surpresas nos aguardem. É exatamente isso que acontece com o longa-metragem chileno Limpa. Com camadas profundas que se abrem distantes do seu início, o projeto nos leva a uma imersão na dinâmica familiar repleta de reflexões, tendo como ponto central uma protagonista que se vê em um labirinto em busca de momentos felizes.

Estela (María Paz Grandjean) é uma jovem que deixa o interior do Chile para trabalhar como empregada doméstica na casa de um casal rico, na cidade de Santiago. Ela passa grande parte do tempo ao lado da filha deles, uma garotinha escanteada pelos pais que encontra em Estela uma grande amiga. Quando algumas situações acontecem, Estela começa a perceber que sua presença no lugar está chegando ao fim, culminando numa série de ações rumo às tragédias. 

Uma caixinha de surpresas quando uma avalanche de conflitos se sucedem. Lançado há poucos dias na Netflix - onde logo alcançou o Top 10 da plataforma - Limpa pode ser definido assim. Dirigido por Dominga Sotomayor e roteirizado por ela em parceria com Gabriela Larralde e Alia Trabucco Zerán, chegamos de forma lenta em um retrato na vida de uma jovem cheia de desilusões, que confronta seu momento conturbado segurando um fio de resiliência que sobrou nas suas marcas da vida.

Não é fácil chegar até suas descobertas, que se revelam aos poucos. Até o minuto 40, um mar estático de ações isoladas parece construir uma história sem grande capacidade reflexiva. Mas as camadas se abrem, ressuscitando a narrativa. A partir de um estopim, o choque social ganha muitos contornos - exemplificado mais com olhares que palavras - onde o ambiente, a mansão bem estruturada dos chefes, vira um elemento importante, quase um personagem ativo para nos guiar pelas emoções que transbordam.   

Cada vez mais próxima da menina que cuida – uma relação maternal, incompreendida pela mesma –, a protagonista também se apaixona por um frentista, enquanto vê o passado mandar mensagens por lembranças ligadas a um cachorro. Sempre na corda bamba quando almeja planos para um futuro, as limitações da vida viram um banho de água fria. Não deixa de ser um reflexo de tantas pessoas espalhadas pelo mundo, à espera de alguma oportunidade para sentir a felicidade.

No desfecho emblemático, percebemos que, mesmo a construção tendo questões que atrapalham o andamento dessa história, chegamos num poderoso recorte – potente, dilacerante e capaz de neutralizar toda nossa atenção. Dê uma chance a esse filme.

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14/10/2025

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Crítica do filme: 'Ruas da Glória' [Festival do Rio 2025]


A vida como ela é. Percorrendo um relacionamento destrutivo e contrapondo o fascínio de um novo lugar e suas tragédias que logo se mostram presentes, o longa-metragem Ruas da Glória, escrito e dirigido por Felipe Sholl, apresenta um certo lirismo - uma metáfora que percorre emoções e sensações ligadas ao desespero, alcançando as dores quando o caos da existência se mostra angustiante.

Sempre envolta no tema, a narrativa cumpre seu propósito ao maximizar a ebulição dos sentimentos, com cenas carnais bem dirigidas - mais explícitas que sugeridas – atingindo a essência humana e seus impulsos em meio a uma tensão sexual sufocante. O desejo se alia ao desespero, elementos emocionais fundamentais para os pilares dos complexos personagens, muito bem interpretados por Caio Macedo e Alejandro Claveaux.

Gabriel (Caio Macedo) é um jovem professor de literatura que acaba de chegar ao Rio de Janeiro, após um falecimento e um conflito com parte da família, experiências que mexeram com suas emoções. Fascinado pela cidade maravilhosa, muda-se para o bairro da Glória e, numa noite em um badalado clube, acaba conhecendo o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux), que vive da prostituição. Completamente obcecado por Adriano, Gabriel se entrega de corpo e alma em um complexo relacionamento. Quando Adriano desaparece, o protagonista, buscando um drible na solidão, vai conhecendo novos personagens pelo caminho e encontra significativas reflexões sobre a vida.

O roteiro percorre um recorte complexo da autodestruição, onde o desejar se torna uma importante parte das reflexões. Podemos nos perguntar: estamos vendo o amor, a obsessão ou ambas as coisas? Essa fuga de paradigmas, dentro da explosão de infelicidade proposta, nos leva a pensar sobre os obstáculos que, cada um de sua forma, passam alguma vez (ou várias) na vida - um dos méritos da obra. Contudo, há um calcanhar de aquiles (não comprometedor): a falta de respiro dentro desse recorte extenuante flerta com avanços pouco significativos, beirando ao repetitivo, o que, de certa forma, atrapalha o andamento. 

O desespero, o sufocar, as dores de um momento repleto de portas fechadas. Ruas da Glória apresenta uma estrada destrutiva, marcada por altos e baixos, descobertas e revelações, com a esperança surgindo como um trunfo quando a maré vira – algo mundano, humano e capaz de fazer refletir. 

 

 

 

 

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Pausa para uma série: 'Animal'


O amor pelos animais e a lições do dia a dia. Em apenas nove episódios – deliciosos - que você maratona rapidamente na Netflix, a série Animal chegou sem muito alarde para conquistar através da rabugentice carismática de um protagonista com o mundo virado de cabeça pra baixo, que encontra em um novo trabalho lições para sua jornada. Essa é uma obra que busca, na simplicidade de seu desenvolvimento, colocar à mesa reflexões sobre o trato social – um tema mais atual, impossível.

Criada por Víctor García León, o projeto propõe um olhar gentil – ainda que, por vezes, ácido – sobre um conflito geracional que atinge um homem que acredita no amor pelos animais, mas demonstra rejeição em compreender o próximo. Um conflito existencial que adiciona combustível nas novas relações que aparecem. Esse recorte sociológico utiliza o humor e bons diálogos para preencher a tela com uma narrativa leve e com ótimas atuações.

Antón (Luis Zahera) é um experiente veterinário de uma zona rural no noroeste da Espanha que está passando por uma tempestade de conflitos. Seus clientes de toda uma vida estão sem dinheiro, as dívidas só acumulam e a tentação de uma assinatura que vai contra seus princípios bate à sua porta a todo instante. Um dia, recebe uma oportunidade de recomeço: trabalhar em uma enorme loja de pets gerenciada pela sobrinha Uxía (Lucía Caraballo). Nesse novo emprego, precisa lidar com detalhes que o incomodam, mas aprende novas lições nessa parte avançada da vida.

Desde o primeiro episódio – acelerado, mas sem deixar de preencher com elementos importantes futuros - até o desfecho aberto e cheio de lições, nessa primeira jornada dessa obra, que pode muito bem ter uma continuação, somos conquistados por personagens que, à primeira vista, parecem presos nas suas características principais, mas logo se revelam para conquistar nossa atenção. Luis Zahera dá vida a um clássico rabugento engraçado, enquanto Lucía Caraballo interpreta uma sonhadora que adora relacionamentos com pessoas complicadas. Dois artistas que encontram um norte interessante de harmonia e identificação com o público.

Sem perder o fôlego e eficiente no seu desenvolvimento, em uma trama que distribui seu discurso por ações e consequências ligadas ao comportamento humano, Animal conecta a ternura da compaixão com os animais às amarras de uma figura central cisuda. Essa mistura vira uma fórmula de sucesso, atingindo mais o humor, sem deixar de encostar em profundas camadas, que relacionam o fator existencial às necessidades de mudanças.

 

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13/10/2025

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Crítica do filme: 'Brasa' [Festival do Rio 2025]


Com um tema central, importante e atual, colocado para debate e desenvolvido com sensibilidade ao longo de sua breve, porém bem distribuída duração, o curta-metragem Brasa nos leva até um recorte profundo sobre uma questão alarmante que choca pelas estatísticas em nosso país: a gravidez na adolescência.

Com ótimas artistas em cena - Bárbara Colen e Mel Faria em destaque - que transmitem toda a aflição e tensão dos conflitos que se seguem, o projeto dirigido por Diane Maia, em sua primeira direção, com roteiro assinado pela mesma e Ana Alkimin, teve sua primeira exibição no Festival do Rio 2025, onde integrou a potente lista da Première Brasil.

Analu (Mel Faria) é uma jovem estudante de 16 anos, apaixonada por um rapaz que trabalha como motoboy no Hortifruti de sua mãe (Bárbara Colen). Moradora de uma cidadezinha no interior do país, busca a realização dos seus sonhos mesmo com as limitações do cotidiano. Quando descobre que está grávida do rapaz, Analu comunica o rapaz na esperança de um final feliz, mas logo é abandonada e precisará enfrentar a situação com a ajuda da mãe.

O filme deixa, nas entrelinhas, questões que circulam o tema principal, abrindo camadas. Um dos que mais chama a atenção é a desinformação e a falta de diálogo quando o assunto é sexualidade. O Brasil é um dos líderes no ranking de gravidez na adolescência, e uma das causas é o silêncio das emoções no âmbito familiar - algo explorado com sensibilidade por essa obra, que apresenta um retrato comovente de conflitos vividos por mãe e filha.

Brasa também apresenta reserva surpresas, com uma revelação no seu desfecho que se soma à toda carga de intensidade sobre o que se sente e não é revelado, chegando até um sentido amplo sobre os assuntos que surgem. O título do filme – certeiro e alinhado ao discurso - pode ser interpretado no sentido figurado como uma situação intensa que persiste mesmo com as revelações, simbolizando um primeiro passo de uma chama que não se apaga.

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Crítica do filme: 'As Dores do Mundo: Hyldon' [Festival do Rio 2025]


O cineasta e antropólogo Emílio Domingos vem enriquecendo nossas reflexões com projetos interessantes, bem amarrados e com recortes profundos ligados à nossa cultura. Foi assim em Black Rio! Black Power!, documentário sobre o movimento Black Rio, e em Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinicius, obra que destrincha detalhes de um disco de Vinicius de Moraes e Baden Powell, lançado em meados da década de 1960. A cada novo registro, uma página da nossa música e sua relação com a sociedade se revela atemporal.

Seu novo trabalho, que dirige ao lado de Felipe David Rodrigues, lançado no Festival do Rio 2025, chega para colocar no centro da tela um nome que você talvez não conheça, mas já escutou alguma canção dele. As Dores do Mundo: Hyldon conta a trajetória de Hyldon de Souza Silva, conhecido apenas pelo primeiro nome: guitarrista e produtor, fã de Marvin Gaye, que logo virou artista. Além de tudo, um observador atento de muito momentos da música popular brasileira.

Desde a infância na Bahia até a chegada ao Rio de Janeiro, passando pelos primeiros acordes e as oportunidades que apareciam, ele sempre se manteve fiel a seu modo de pensar e viver a vida. Desconhecido por muitos, possui em seu acervo criativo canções emblemáticas cantadas até hoje. Vendo a Jovem guarda acontecer e com as influências do amigo Tim Maia, entre músicas rápidas e lentas, mostrou versatilidade e um estilo próprio, causando um forte impacto em toda uma geração.

O documentário, modelado por imagens de arquivos, vídeos de apresentações e reportagens de época, além de maravilhosas entrevistas com nomes como: Liniker, Mano Brown, Seu Jorge, Sandra de Sá, parte dos 50 anos de seu primeiro álbum – um estrondoso sucesso – e ajuda a revelar um pouco dos seus pensamentos ao longo dessas décadas, enquanto sobreviveu ao tumultuado mercado fonográfico brasileiro. O projeto sugere também paralelos reflexivos que dialogam com uma sociedade marcada por acontecimentos que influenciaram o nosso país.

Nessa narrativa deliciosa – Domingos sabe como contar uma história, e isso não é de hoje – extrai-se o suco de um Soul Man também por meio de duas das suas mais simbólicas canções. Da resposta a Schopenhauer na canção As Dores do Mundo até o clássico Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha de Sapê), escrita em cinco minutos após uma viagem a uma praia do espírito Santo, vamos decifrando um artista com ‘A’ maiúsculo, que escolheu mostrar a vida real por meio de sua obra, conquistando corações e contemplando a pura essência do viver: não querendo saber quem foi, mas sim quem é.

 

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Crítica do filme: 'Pequenas Criaturas' [Festival do Rio 2025]


Costurando a sensibilidade humana de forma poética – mastigando a imaginação e a expressividade –, chegou, em um dos últimos dias de Festival do Rio, a sessão do longa-metragem brasileiro Pequenas Criaturas: um filme que você assiste e não esquece. Escrito e dirigido por Anne Pinheiro Guimarães, esse projeto encantador busca a comunicação com o público através de um roteiro envolvente, com personagens complexos e fascinantes, reunindo fragmentos de uma família dentro de recortes geracionais que se entrelaçam pelas amarguras do presente.

Ambientada numa Brasília de quase quarenta anos atrás, conhecemos Helena (Carolina Dieckmann) e seus dois filhos – uma criança e um adolescente – que chegam à capital do Brasil e se mudam para um prédio numa região central. Frustrada pela partida do marido, que logo viaja a negócios, ela se vê perdida e aflita, enquanto marcas do passado e inesperadas aventuras do presente se chocam, nos levando a um recorte cheio de conflitos, não só pra ela, mas para seus dois filhos.

Sob os três olhares desse núcleo familiar, as amarguras do presente logo se chocam com o acaso e o inusitado. Algumas vezes a bordo de uma Brasília amarela - símbolo interpretativo dentro da trama – percebemos a profundidade dos relacionamentos interpessoais sendo tratada com sutileza, fugindo da melancolia, mas sem deixar de ser incisivo nas provocações de reflexões. 

Um dos grandes desafios do filme era deixar atual um retrato familiar de quatro décadas atrás – e ele consegue. A construção dos personagens é envolvente, vai do riso à emoção, um dos trunfos de uma obra que contextualiza os primeiros anos de uma nova democracia – após a Ditadura Militar –, tendo como ambiente justamente a capital do Brasil. Assim, o roteiro parece se dividir em parábolas, que não fogem das lições morais, mas as tornam complementares. Uma mãe em um casamento infeliz, as descobertas da adolescência, até os amigos imaginários - cada peça desse quebra-cabeça emocional se encaixa para um norte de chegadas e partidas.

A solidão, as perdas, os medos, os perigos, as travessuras, o cuidar, a vida e a morte, se tornam elementos jogados em uma tempestade de sensações que nos entrega uma obra atemporal, vibrante e capaz de deixar marcas em nossos corações. Um dos melhores filmes exibidos no Festival do Rio 2025.

 

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Crítica do filme: 'Final 99' [Festival do Rio 2025]


O estado de ser num mundo de reinvenções do próprio pertencimento. Em uma trama bem bolada, que aborda a palavra 'identidade' em muitas facetas, o curta-metragem gaúcho Final 99, escrito e dirigido por Frederico Ruas, nos leva até um drama existencial - com flerte no suspense – em que, a partir da perda de um objeto, um possível encontro desperta reflexões sobre questões contemporâneas e existenciais. O filme foi selecionado para a Première Brasil de Curtas do Festival do Rio 2025.

Um segurança noturno (Bruno Fernandes) de um lugar cercado de tecnologia, mas também de um silêncio ensurdecedor, perde sua identidade - possivelmente vítima de algum furto. O documento é encontrado por uma imigrante estrangeira (Mbyá Guarani Luicina Duarte), que propõe um encontro.

Rodado logo após o caótico estado de emergência que atingiu o Rio Grande do Sul recentemente, o projeto apresenta rapidamente sua trama conseguindo alcançar camadas dentro do discurso proposto - um mérito de uma obra que não alonga e, ainda assim, preenche nosso refletir com suposições.

Interpretativo em alguns momentos, usa da casualidade e até mesmo uma indecifrável distopia para explorar a nossa capacidade de autoexistência - o nosso lugar em um mundo de oportunidades, mas também solidão. Estar em um lugar que não sente como seu, os desvios da solitude e o instante que a ficha cai - a partir dos acontecimentos acompanhamos a jornada melancólica de um protagonista que vai decifrando seu próprio estado de ser.

Em 14 minutos, percebemos um uso afiado da linguagem - de forma criativa e que prende a atenção, aliado a uma direção de arte chamativa e uma direção competente, em uma tentativa inabalável de explorar caminhos para uma comunicação com o espectador. Do concreto do tempo aos simbolismos do existir, elementos saltam aos olhos, compondo uma parábola (no sentido figurativo) cheia de lições que entrelaça o pertencimento com um olhar empático voltado à imigração.

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11/10/2025

Crítica do filme: 'O Último Episódio'


O que se aprende, o que dói, o que nos deixa vivo: o sonhar! Você também adorava assistir ao desenho Caverna do Dragão? Então, acho que você vai gostar desse filme que vamos citar agora! Chega aos cinemas brasileiros nesse início de outubro uma produção que utiliza a nostalgia com muita delicadeza e simpatia para retratar realidades de um Brasil que, mesmo enfrentando dificuldades, nunca deixa de sonhar.

Trazendo para o centro do discurso a cultura pop, os dramas familiares, e aquele olhar carinhoso sobre a juventude, O Último Episódio - primeiro longa-metragem solo do mineiro Maurilio Martins - é um projeto que liga a dor da perda às surpresas de quem curte se deixar envolver por boas histórias.

Ambientado em Laguna, um bairro de Contagem, em Minas Gerais, no início da década de 1990, acompanhamos a história de um jovem que está à beira de momentos importantes de sua vida. Um dia, resolve espalhar uma notícia inusitada: afirma ter o último episódio do seriado Caverna do Dragão - algo que o coloca de frente com situações inusitadas.

A dor da falta leva a simpática comédia a um mergulho nas camadas dramáticas. O pai, recorrente na trama, tem papel preponderante no campo emocional, um alicerce que ajuda a contar essa história. O alvo do discurso busca um Brasil próximo de muitos de nós – trabalhadores, sonhadores –, que se mostra valente em torno dos obstáculos cotidianos.

Assim, em um roteiro que funciona na sua simplicidade e pelo tom da nostalgia, caminhamos pelas suas dificuldades cotidianas do protagonista ao lado da mãe, o flerte com o primeiro amor, as responsabilidades que chegam ao lado da imaturidade, além da construção, tijolo por tijolo, das grandes amizades. Lições não faltam nesse simpático longa-metragem que, mesmo não conseguindo chegar em camadas muito profundas com uma direção que não se arrisca, convence pela poesia honesta – e pés no chão - que propõe.

 

 

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Crítica do filme: 'Viva um Pouco' [Festival do Rio 2025]


Uma suposição indigesta que leva a um caminho de descobertas. Durante o Festival do Rio 2025, em meio a tantos filmes badalados, fomos conferir uma obra que se revelou intrigante partindo de uma situação alarmante e abrindo-se em camadas de revelações. Tendo como vetor principal um psicológico abalado - uma protagonista mergulhada em conflitos -, esse filme sueco aposta num destrinchar de uma suposição fazendo uma ponte com um despertar para a vida.  

Laura (Embla Ingelman-Sundberg) viaja com sua amiga Alex (Aviva Wrede) pela Europa, uma ideia que vem sendo planejada há anos. Em um dos países que desembarcam, Laura acorda certa manhã numa cama, com indícios de que passou a noite com alguém. Em conflito com a situação e sem saber ao certo o que aconteceu – tendo apenas leves lembranças -, a protagonista passa por uma jornada de descobertas, na qual o medo do que pode ter acontecido se torna cada vez mais sufocante.

Esse é um filme que aborda o despertar, mas também a linha tênue com a autodestruição e a inconsequência. Com boas atuações de um jovem grupo de artistas escandinavos, chegamos até o dilacerante universo da dúvida, centrado em uma personagem principal sempre fiel a seus princípios que se vê arrastada para uma corrente de liberdade que nunca tinha vivido. Esse contraste entre o se lançar ao mundo e as responsabilidades morais torna-se uma gangorra sufocante, transformando a diversão em autoavaliação. O filme explora esse conflito muito bem e com grande sensibilidade.

Um dos méritos do roteiro é sustentar um clímax constante a partir de seu acontecimento principal, compondo cenas de impacto. A narrativa guia nos olhares constantemente para o psicológico, onde o ambiente – o fora de casa – acaba sendo uma variável importante que se soma ao medo de não saber lidar com uma situação embaçada nas memórias. Como é um filme que navega pela visão unilateral de uma situação, o olhar de terceiros surge aos poucos, revelando-se pelas camadas que começam a se formar ao longo da trama.  

Selecionado para a Mostra Expectativa do Festival do Rio 2025, e ainda sem previsão para chegar no circuito brasileiro de exibição, Viva um Pouco, escrito e dirigido por Fanny Ovesen, é um filme que se revela aos poucos, levando nossos olhares por muitos lugares – das ponderações existenciais às percepções sobre relacionamentos, do entusiasmo de um despertar ao total desalento de memórias que não se apresentam.

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10/10/2025

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Crítica do filme: 'Honestino' [Festival do Rio 2025]


Qualquer filme que aborde os horrores do período de ditadura no Brasil já é, por si só, chocante. Tendo isso em mente, iniciamos as reflexões sobre mais uma obra que volta ao tema e, de maneira inquietante, nos leva até a história de um pai e líder estudantil que desapareceu nas mãos dos militares. Honestino, novo trabalho do cineasta amazonense Aurélio Michiles, mistura documentário e ficção em uma obra visceral que escancara verdades de quem sempre esteve do lado certo da história.

Com uma prévia contextualização de um dos momentos mais tristes da história brasileira – a ditadura militar – por meio de poemas, depoimentos, imagens de arquivos, chegamos até o início da década de 1970, quando o líder estudantil Honestino Guimarães desapareceu.

Valente na sua luta em busca da restauração da democracia, o estudante de geologia goiano viveu anos complicados, sendo alvo frequente de perseguição militar e chegando a ser preso diversas vezes na década anterior ao seu desaparecimento. Por necessidade de viver escondido, longe dos holofotes e da família, mudou para alguns estados vivendo em meio a solidão. Nesse documentário, vemos um recorte dessa trajetória ser contada, algo que vai de encontro a momentos de ebulição em nosso país.

Muito próximo do personagem-título – de quem era grande amigo – Michiles costura sua narrativa documental com o impulso da ficção, na qual encontramos uma atuação pulsante de Bruno Gagliasso, representando Honestino em momentos-chaves de reflexão e agonia vividos naquele período. Esse híbrido entre depoimentos de conhecidos e representações de momentos – da luta ao legado - coloca esse projeto em um outro patamar, causando um verdadeiro impacto de emoções.  

A estética do filme chama a atenção do público em muitos momentos: do preto e branco ao colorido, das sombras à esperança, somos atingidos por uma onda de reflexões por meio de uma pessoa que nunca será esquecida. A narrativa é de fácil entendimento, pulsa e emociona, apresentando um desfile de imagens e movimentos que realmente comovem, ressaltando a importância desse personagem - tanto como figura importante política e presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) quanto como pai amoroso que viveu pouco tempo perto da filha.  

Selecionado para o Festival do Rio 2025, exibido na noite do último dia 09 de outubro – uma data emblemática, já que no dia seguinte (momento em que escrevo estas palavras) completam-se 52 anos do sequestro de Honestino Guimarães – esse documentário é muito mais que um registro importante de uma página sombria de nosso Brasil, é uma enorme exclamação de resistência e memória: Honestino Vive!

 

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