13/10/2025

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Crítica do filme: 'Brasa' [Festival do Rio 2025]


Com um tema central, importante e atual, colocado para debate e desenvolvido com sensibilidade ao longo de sua breve, porém bem distribuída duração, o curta-metragem Brasa nos leva até um recorte profundo sobre uma questão alarmante que choca pelas estatísticas em nosso país: a gravidez na adolescência.

Com ótimas artistas em cena - Bárbara Colen e Mel Faria em destaque - que transmitem toda a aflição e tensão dos conflitos que se seguem, o projeto dirigido por Diane Maia, em sua primeira direção, com roteiro assinado pela mesma e Ana Alkimin, teve sua primeira exibição no Festival do Rio 2025, onde integrou a potente lista da Première Brasil.

Analu (Mel Faria) é uma jovem estudante de 16 anos, apaixonada por um rapaz que trabalha como motoboy no Hortifruti de sua mãe (Bárbara Colen). Moradora de uma cidadezinha no interior do país, busca a realização dos seus sonhos mesmo com as limitações do cotidiano. Quando descobre que está grávida do rapaz, Analu comunica o rapaz na esperança de um final feliz, mas logo é abandonada e precisará enfrentar a situação com a ajuda da mãe.

O filme deixa, nas entrelinhas, questões que circulam o tema principal, abrindo camadas. Um dos que mais chama a atenção é a desinformação e a falta de diálogo quando o assunto é sexualidade. O Brasil é um dos líderes no ranking de gravidez na adolescência, e uma das causas é o silêncio das emoções no âmbito familiar - algo explorado com sensibilidade por essa obra, que apresenta um retrato comovente de conflitos vividos por mãe e filha.

Brasa também apresenta reserva surpresas, com uma revelação no seu desfecho que se soma à toda carga de intensidade sobre o que se sente e não é revelado, chegando até um sentido amplo sobre os assuntos que surgem. O título do filme – certeiro e alinhado ao discurso - pode ser interpretado no sentido figurado como uma situação intensa que persiste mesmo com as revelações, simbolizando um primeiro passo de uma chama que não se apaga.

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Crítica do filme: 'As Dores do Mundo: Hyldon' [Festival do Rio 2025]


O cineasta e antropólogo Emílio Domingos vem enriquecendo nossas reflexões com projetos interessantes, bem amarrados e com recortes profundos ligados à nossa cultura. Foi assim em Black Rio! Black Power!, documentário sobre o movimento Black Rio, e em Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinicius, obra que destrincha detalhes de um disco de Vinicius de Moraes e Baden Powell, lançado em meados da década de 1960. A cada novo registro, uma página da nossa música e sua relação com a sociedade se revela atemporal.

Seu novo trabalho, que dirige ao lado de Felipe David Rodrigues, lançado no Festival do Rio 2025, chega para colocar no centro da tela um nome que você talvez não conheça, mas já escutou alguma canção dele. As Dores do Mundo: Hyldon conta a trajetória de Hyldon de Souza Silva, conhecido apenas pelo primeiro nome: guitarrista e produtor, fã de Marvin Gaye, que logo virou artista. Além de tudo, um observador atento de muito momentos da música popular brasileira.

Desde a infância na Bahia até a chegada ao Rio de Janeiro, passando pelos primeiros acordes e as oportunidades que apareciam, ele sempre se manteve fiel a seu modo de pensar e viver a vida. Desconhecido por muitos, possui em seu acervo criativo canções emblemáticas cantadas até hoje. Vendo a Jovem guarda acontecer e com as influências do amigo Tim Maia, entre músicas rápidas e lentas, mostrou versatilidade e um estilo próprio, causando um forte impacto em toda uma geração.

O documentário, modelado por imagens de arquivos, vídeos de apresentações e reportagens de época, além de maravilhosas entrevistas com nomes como: Liniker, Mano Brown, Seu Jorge, Sandra de Sá, parte dos 50 anos de seu primeiro álbum – um estrondoso sucesso – e ajuda a revelar um pouco dos seus pensamentos ao longo dessas décadas, enquanto sobreviveu ao tumultuado mercado fonográfico brasileiro. O projeto sugere também paralelos reflexivos que dialogam com uma sociedade marcada por acontecimentos que influenciaram o nosso país.

Nessa narrativa deliciosa – Domingos sabe como contar uma história, e isso não é de hoje – extrai-se o suco de um Soul Man também por meio de duas das suas mais simbólicas canções. Da resposta a Schopenhauer na canção As Dores do Mundo até o clássico Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha de Sapê), escrita em cinco minutos após uma viagem a uma praia do espírito Santo, vamos decifrando um artista com ‘A’ maiúsculo, que escolheu mostrar a vida real por meio de sua obra, conquistando corações e contemplando a pura essência do viver: não querendo saber quem foi, mas sim quem é.

 

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Crítica do filme: 'Pequenas Criaturas' [Festival do Rio 2025]


Costurando a sensibilidade humana de forma poética – mastigando a imaginação e a expressividade –, chegou, em um dos últimos dias de Festival do Rio, a sessão do longa-metragem brasileiro Pequenas Criaturas: um filme que você assiste e não esquece. Escrito e dirigido por Anne Pinheiro Guimarães, esse projeto encantador busca a comunicação com o público através de um roteiro envolvente, com personagens complexos e fascinantes, reunindo fragmentos de uma família dentro de recortes geracionais que se entrelaçam pelas amarguras do presente.

Ambientada numa Brasília de quase quarenta anos atrás, conhecemos Helena (Carolina Dieckmann) e seus dois filhos – uma criança e um adolescente – que chegam à capital do Brasil e se mudam para um prédio numa região central. Frustrada pela partida do marido, que logo viaja a negócios, ela se vê perdida e aflita, enquanto marcas do passado e inesperadas aventuras do presente se chocam, nos levando a um recorte cheio de conflitos, não só pra ela, mas para seus dois filhos.

Sob os três olhares desse núcleo familiar, as amarguras do presente logo se chocam com o acaso e o inusitado. Algumas vezes a bordo de uma Brasília amarela - símbolo interpretativo dentro da trama – percebemos a profundidade dos relacionamentos interpessoais sendo tratada com sutileza, fugindo da melancolia, mas sem deixar de ser incisivo nas provocações de reflexões. 

Um dos grandes desafios do filme era deixar atual um retrato familiar de quatro décadas atrás – e ele consegue. A construção dos personagens é envolvente, vai do riso à emoção, um dos trunfos de uma obra que contextualiza os primeiros anos de uma nova democracia – após a Ditadura Militar –, tendo como ambiente justamente a capital do Brasil. Assim, o roteiro parece se dividir em parábolas, que não fogem das lições morais, mas as tornam complementares. Uma mãe em um casamento infeliz, as descobertas da adolescência, até os amigos imaginários - cada peça desse quebra-cabeça emocional se encaixa para um norte de chegadas e partidas.

A solidão, as perdas, os medos, os perigos, as travessuras, o cuidar, a vida e a morte, se tornam elementos jogados em uma tempestade de sensações que nos entrega uma obra atemporal, vibrante e capaz de deixar marcas em nossos corações. Um dos melhores filmes exibidos no Festival do Rio 2025.

 

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Crítica do filme: 'Final 99' [Festival do Rio 2025]


O estado de ser num mundo de reinvenções do próprio pertencimento. Em uma trama bem bolada, que aborda a palavra 'identidade' em muitas facetas, o curta-metragem gaúcho Final 99, escrito e dirigido por Frederico Ruas, nos leva até um drama existencial - com flerte no suspense – em que, a partir da perda de um objeto, um possível encontro desperta reflexões sobre questões contemporâneas e existenciais. O filme foi selecionado para a Première Brasil de Curtas do Festival do Rio 2025.

Um segurança noturno (Bruno Fernandes) de um lugar cercado de tecnologia, mas também de um silêncio ensurdecedor, perde sua identidade - possivelmente vítima de algum furto. O documento é encontrado por uma imigrante estrangeira (Mbyá Guarani Luicina Duarte), que propõe um encontro.

Rodado logo após o caótico estado de emergência que atingiu o Rio Grande do Sul recentemente, o projeto apresenta rapidamente sua trama conseguindo alcançar camadas dentro do discurso proposto - um mérito de uma obra que não alonga e, ainda assim, preenche nosso refletir com suposições.

Interpretativo em alguns momentos, usa da casualidade e até mesmo uma indecifrável distopia para explorar a nossa capacidade de autoexistência - o nosso lugar em um mundo de oportunidades, mas também solidão. Estar em um lugar que não sente como seu, os desvios da solitude e o instante que a ficha cai - a partir dos acontecimentos acompanhamos a jornada melancólica de um protagonista que vai decifrando seu próprio estado de ser.

Em 14 minutos, percebemos um uso afiado da linguagem - de forma criativa e que prende a atenção, aliado a uma direção de arte chamativa e uma direção competente, em uma tentativa inabalável de explorar caminhos para uma comunicação com o espectador. Do concreto do tempo aos simbolismos do existir, elementos saltam aos olhos, compondo uma parábola (no sentido figurativo) cheia de lições que entrelaça o pertencimento com um olhar empático voltado à imigração.

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11/10/2025

Crítica do filme: 'O Último Episódio'


O que se aprende, o que dói, o que nos deixa vivo: o sonhar! Você também adorava assistir ao desenho Caverna do Dragão? Então, acho que você vai gostar desse filme que vamos citar agora! Chega aos cinemas brasileiros nesse início de outubro uma produção que utiliza a nostalgia com muita delicadeza e simpatia para retratar realidades de um Brasil que, mesmo enfrentando dificuldades, nunca deixa de sonhar.

Trazendo para o centro do discurso a cultura pop, os dramas familiares, e aquele olhar carinhoso sobre a juventude, O Último Episódio - primeiro longa-metragem solo do mineiro Maurilio Martins - é um projeto que liga a dor da perda às surpresas de quem curte se deixar envolver por boas histórias.

Ambientado em Laguna, um bairro de Contagem, em Minas Gerais, no início da década de 1990, acompanhamos a história de um jovem que está à beira de momentos importantes de sua vida. Um dia, resolve espalhar uma notícia inusitada: afirma ter o último episódio do seriado Caverna do Dragão - algo que o coloca de frente com situações inusitadas.

A dor da falta leva a simpática comédia a um mergulho nas camadas dramáticas. O pai, recorrente na trama, tem papel preponderante no campo emocional, um alicerce que ajuda a contar essa história. O alvo do discurso busca um Brasil próximo de muitos de nós – trabalhadores, sonhadores –, que se mostra valente em torno dos obstáculos cotidianos.

Assim, em um roteiro que funciona na sua simplicidade e pelo tom da nostalgia, caminhamos pelas suas dificuldades cotidianas do protagonista ao lado da mãe, o flerte com o primeiro amor, as responsabilidades que chegam ao lado da imaturidade, além da construção, tijolo por tijolo, das grandes amizades. Lições não faltam nesse simpático longa-metragem que, mesmo não conseguindo chegar em camadas muito profundas com uma direção que não se arrisca, convence pela poesia honesta – e pés no chão - que propõe.

 

 

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Crítica do filme: 'Viva um Pouco' [Festival do Rio 2025]


Uma suposição indigesta que leva a um caminho de descobertas. Durante o Festival do Rio 2025, em meio a tantos filmes badalados, fomos conferir uma obra que se revelou intrigante partindo de uma situação alarmante e abrindo-se em camadas de revelações. Tendo como vetor principal um psicológico abalado - uma protagonista mergulhada em conflitos -, esse filme sueco aposta num destrinchar de uma suposição fazendo uma ponte com um despertar para a vida.  

Laura (Embla Ingelman-Sundberg) viaja com sua amiga Alex (Aviva Wrede) pela Europa, uma ideia que vem sendo planejada há anos. Em um dos países que desembarcam, Laura acorda certa manhã numa cama, com indícios de que passou a noite com alguém. Em conflito com a situação e sem saber ao certo o que aconteceu – tendo apenas leves lembranças -, a protagonista passa por uma jornada de descobertas, na qual o medo do que pode ter acontecido se torna cada vez mais sufocante.

Esse é um filme que aborda o despertar, mas também a linha tênue com a autodestruição e a inconsequência. Com boas atuações de um jovem grupo de artistas escandinavos, chegamos até o dilacerante universo da dúvida, centrado em uma personagem principal sempre fiel a seus princípios que se vê arrastada para uma corrente de liberdade que nunca tinha vivido. Esse contraste entre o se lançar ao mundo e as responsabilidades morais torna-se uma gangorra sufocante, transformando a diversão em autoavaliação. O filme explora esse conflito muito bem e com grande sensibilidade.

Um dos méritos do roteiro é sustentar um clímax constante a partir de seu acontecimento principal, compondo cenas de impacto. A narrativa guia nos olhares constantemente para o psicológico, onde o ambiente – o fora de casa – acaba sendo uma variável importante que se soma ao medo de não saber lidar com uma situação embaçada nas memórias. Como é um filme que navega pela visão unilateral de uma situação, o olhar de terceiros surge aos poucos, revelando-se pelas camadas que começam a se formar ao longo da trama.  

Selecionado para a Mostra Expectativa do Festival do Rio 2025, e ainda sem previsão para chegar no circuito brasileiro de exibição, Viva um Pouco, escrito e dirigido por Fanny Ovesen, é um filme que se revela aos poucos, levando nossos olhares por muitos lugares – das ponderações existenciais às percepções sobre relacionamentos, do entusiasmo de um despertar ao total desalento de memórias que não se apresentam.

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10/10/2025

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Crítica do filme: 'Honestino' [Festival do Rio 2025]


Qualquer filme que aborde os horrores do período de ditadura no Brasil já é, por si só, chocante. Tendo isso em mente, iniciamos as reflexões sobre mais uma obra que volta ao tema e, de maneira inquietante, nos leva até a história de um pai e líder estudantil que desapareceu nas mãos dos militares. Honestino, novo trabalho do cineasta amazonense Aurélio Michiles, mistura documentário e ficção em uma obra visceral que escancara verdades de quem sempre esteve do lado certo da história.

Com uma prévia contextualização de um dos momentos mais tristes da história brasileira – a ditadura militar – por meio de poemas, depoimentos, imagens de arquivos, chegamos até o início da década de 1970, quando o líder estudantil Honestino Guimarães desapareceu.

Valente na sua luta em busca da restauração da democracia, o estudante de geologia goiano viveu anos complicados, sendo alvo frequente de perseguição militar e chegando a ser preso diversas vezes na década anterior ao seu desaparecimento. Por necessidade de viver escondido, longe dos holofotes e da família, mudou para alguns estados vivendo em meio a solidão. Nesse documentário, vemos um recorte dessa trajetória ser contada, algo que vai de encontro a momentos de ebulição em nosso país.

Muito próximo do personagem-título – de quem era grande amigo – Michiles costura sua narrativa documental com o impulso da ficção, na qual encontramos uma atuação pulsante de Bruno Gagliasso, representando Honestino em momentos-chaves de reflexão e agonia vividos naquele período. Esse híbrido entre depoimentos de conhecidos e representações de momentos – da luta ao legado - coloca esse projeto em um outro patamar, causando um verdadeiro impacto de emoções.  

A estética do filme chama a atenção do público em muitos momentos: do preto e branco ao colorido, das sombras à esperança, somos atingidos por uma onda de reflexões por meio de uma pessoa que nunca será esquecida. A narrativa é de fácil entendimento, pulsa e emociona, apresentando um desfile de imagens e movimentos que realmente comovem, ressaltando a importância desse personagem - tanto como figura importante política e presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) quanto como pai amoroso que viveu pouco tempo perto da filha.  

Selecionado para o Festival do Rio 2025, exibido na noite do último dia 09 de outubro – uma data emblemática, já que no dia seguinte (momento em que escrevo estas palavras) completam-se 52 anos do sequestro de Honestino Guimarães – esse documentário é muito mais que um registro importante de uma página sombria de nosso Brasil, é uma enorme exclamação de resistência e memória: Honestino Vive!

 

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Crítica do filme: 'Dolores' [Festival do Rio 2025]


Em mais um dia de Festival do Rio 2025, encontramos com um filme brasileiro bem peculiar e a mesmo tempo interessante, que revela suas camadas através do desenrolar dos conflitos de três gerações de mulheres de uma mesma família. Dolores, dirigido por Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar, investe numa narrativa contemplativa que mergulha nos pensamentos e os sonhos dos personagens, nos levando a sentir os dramas de personagens à beira de mais um importante passo na vida.

Dolores (Carla Ribas) é uma mulher solteira, já sexagenária, com marcas no passado. Perto de completar mais um aniversário, tem um sonho revelador. Mantém uma relação conflituosa com a filha Deborah (Naruna Costa), que aguarda a libertação do grande amor de sua vida para, enfim, ser feliz. Em contrapartida, Dolores possui uma ótima relação com a neta Duda (Ariane Aparecida), que trabalha numa espécie de clube de tiro e recebe uma oferta de emprego fora do país. Essas três mulheres vão se jogar em uma jornada em busca da realização de seus sonhos. 

Esse é um filme de fácil identificação, com temas amplamente debatidos na atualidade e personagens que ilustram realidades vividas por muitas pessoas, especialmente quando pensamos no como lidar com as adversidades. A obra encaixa reflexões imaginativas pelas entrelinhas mas também é possível se guiar pelo concreto da realidade nua e crua que se apresenta.

Ambientado na periferia de São Paulo, a história gira em torno da protagonista que dá nome ao filme – Dolores – uma mulher que encontra no contraditório e na inconsequência um combustível para os próximos passos. Personagem fascinante, ela se torna o elo que conecta  com todas as subtramas. Entre elas está Deborah e sua dor pelo amor, que desperta para novas jornadas, levando consigo um conflito não mostrado com a mãe. No outro vértice desse triângulo familiar, Duda representa o novo pensar de uma geração que não quer deixar oportunidades passarem. Sob esses pontos de vistas, percorremos as dificuldades que se mostram presente, a sorte, os sonhos e também as consequências da confiança.

Do literal ao simbólico, o recorte do sonhar permeia a trajetória das personagens, um alvo do discurso que sustenta tudo que acompanhamos. A narrativa, detalhista e de ritmo dosado,  busca um ar poético nos dilemas humanos. Assim, o filme se desenvolve através das três realidades que se entrelaçam com questões existenciais - do vício em jogos ao desejo de uma vida melhor. Marcelo Gomes e Maria Clara Escobar desenvolvem um trabalho competente na condução dessa história.

Essa obra é o ponto final de um roteiro deixado pelo cineasta Chico Teixeira, falecido seis anos atrás. Se fecha em Dolores a sua Trilogia dos Afetos, composta por A Casa de Alice (2007) e Ausência (2014).

Exibido na 73a edição do San Sebastian Festival e selecionado para a Première Brasil do Festival do Rio 2025, Dolores deixa marcas profundas em nossa reflexão sobre a existência. Pelos caminhos árduo que percorremos, entre as dores e também os recomeços, é importante não perder de vista as possibilidades de sonhar. É sempre levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima.

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Crítica do filme: 'Cheiro de Diesel' [Festival do Rio 2025]


Selecionado para a mostra Première Brasil de Documentários do Festival do Rio 2025, o impactante projeto Cheiro de Diesel é um profundo e inquietante recorte sociológico da cidade conhecida como ‘maravilhosa’. Buscando em seus intensos 80 minutos de projeção ampliar o debate sobre as intervenções militares nas favelas cariocas - mais precisamente quando o exército brasileiro ocupou o complexo da Maré durante a Copa do Mundo de 2014 -, chegamos num retrato comovente e avassalador pela visão da própria comunidade, de seus trabalhadores e moradores da região.

Muito bem montado, o longa-metragem costura com precisão seus pontos a partir de um discurso irrepreensível, onde caminhamos pela luta da jornalista, comunicadora comunitária e ativista social Gizele Martins em sua busca para dar voz ao que de fato aconteceu em uma região tomada por perigos de todos os lados – uma realidade que afetou em cheio o direito de ir e vir de 140.000 moradores.

A contextualização é bem feita e se insere naturalmente na narrativa, através das histórias que são contadas. Quando eventos de grande projeção passaram a ter o Rio de Janeiro como sede, o governo resolveu enviar o exército para um complexo de favelas - fato que gerou situações alarmantes, pouco divulgadas nas mídias tradicionais. A herança disso? As sequelas na vida de inúmeras pessoas que sofreram na pele os horrores dessa chamada ‘paz armada’.  

Indo à raiz dos problemas que se acumulam – que servem como um importante registro através do cinema –, chegamos aos medos constantes e às facetas de uma suposta proteção que, na verdade, revelou-se uma despreparada empreitada assinada pelo alto escalão da república.  Com o jornalismo também em pauta, o documentário exemplifica a tragédia e as marcas da violência por meio dos depoimentos de algumas vítimas, mas sem deixar de criar a ponte com o agora.

Cheiro de Diesel é um soco no estômago, um projeto valente que joga seus holofotes para as verdades muitas vezes não ditas – caladas pelos anos - e que precisam de uma vez por todas reflexões de todos nós.

 

  

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Crítica do filme: 'Sonhos' [Festival do Rio 2025]


Trazendo à reflexão as muitas faces extremas do sentimento mais poderoso que existe – o amor - Sonhos, escrito e dirigido pelo cineasta mexicano Michel Franco é um filme sensível e atual, ao mesmo tempo carnal e desconfortante. Fruto de atuações impressionantes e um jogo de cena que nos conduz da euforia à destruição - chegando até o rompimento com o psicológico e o bom senso -, a obra se destaca por seu silêncio revelador, algo que chama a atenção nessa narrativa. Uma fórmula que convence - desde o início - onde se potencializa a tensão e um silêncio incisivo que entra como um elemento complementar.

Uma mulher da alta sociedade norte-americana (Jessica Chastain), diretora de uma fundação de renome, se apaixona perdidamente por um bailarino mexicano (Isaac Hernández) que está ilegalmente nos Estados Unidos. Ao longo desse relacionamento que se mostra conflituoso, situações vão colocando os personagens em dilemas, até o último suspiro dessa relação.

O roteiro se projeta através de um contraponto dentro desse recorte sobre os relacionamentos – um discurso afiado e, ao mesmo tempo, desafiador. O real valor de quando se perde encontra as barreiras dos dilemas; o sonho de uma carreira vira um duelo com o sonho de um grande amor. Nessa gangorra existencial, percorremos as faces dessa intensidade, sempre no extremo, onde a tensão e o constrangimento maximiza esse choque entre os ‘sonhos’ – título mais que certeiro do projeto. 

O sugestivo encontra espaço, deixando a trama cada vez mais interessante. Partimos do ponto onde os personagens já se conhecem, onde o passado também é contado pelas entrelinhas. Impressiona como o roteiro instiga o público a querer descobrir como essa história vai terminar. Uma aula de como contar uma história usando elementos em cena e buscando na força das atuações construir grandes momentos. O projeto não perde fôlego; os minutos vão se passando e a tensão só aumenta, culminando em um final emblemático e surpreendente.

Há tempo também para uma crítica social contundente em relação ao tratamento aos imigrantes ilegais na maior potência do mundo - assunto que se tornou cada vez mais atual com a chegada do governo em vigor.   

Selecionado para o Festival do Rio 2025, a obra conta com atuações brilhantes de seus protagonistas, principalmente Jessica Chastain. Esse é um filme que busca no visceral de suas intensas cenas, um olhar profundo para retratos sociais e as incongruências que podem evoluir dentro de um relacionamento.

 

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Crítica do filme: 'Massa Funkeira' [Festival do Rio 2025]


Abrindo espaço para vários olhares sobre o movimento funkeiro - um dos grandes expoentes da cultura brasileira quando pensamos em representações artísticas, sobretudo no Rio de Janeiro -, o documentário Massa Funkeira, novo trabalho da cineasta Ana Rieper, reúne um interessante retrato social a partir de uma série de registros e depoimentos de Mc’s, dançarinos e produtores, revelando novos olhares para essa arte musical que conquista atenção e aborda, sem papas na línguas, temas considerados tabus na sociedade.

A montagem desse filme é a chave do sucesso. Ao criar um ritmo intenso e envolvente, esse retrato social coloca em evidência - sem moralismos e julgamentos - as letras ligadas as relações íntimas, especialmente o sexo. Assim, percorremos o por trás da fama de artistas desse segmento que alcançaram sucesso em vários períodos dos últimos anos, chegando também às mudanças e reflexões por trás das canções que embalaram bailes funks pelo Brasil – e pelo mundo.

Com uma mescla de batidas eletrônicas e letras imponentes – que chamam a atenção logo de cara -, o funk traduz as expressões e realidades do cotidiano, representando a força da periferia brasileira. Desmistificando esse gênero musical que ainda hoje é alvo de preconceitos por alguns olhares da sociedade, o projeto apresenta uma recorte sociológico profundo, divertido e, até mesmo, emocionante, capaz de fazer o público enxergar de outras formas para esse movimento musical por novas perspectivas. 

Massa Funkeira, selecionado para o Festival do Rio 2025, é um dos grandes documentários exibidos na edição deste ano do evento carioca. Ana Rieper mais uma vez consegue, com seu cinema documental de primeira linha, trazer olhares, relflexões e registros importantes da nossa sociedade.

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Crítica do filme: '#SalveRosa' [Festival do Rio 2025]


Uma mãe cruel, controladora e egoísta que expõe sua filha na internet. É a partir dessa premissa - que atravessa os muitos olhares sobre uma trágica relação familiar – que o novo trabalho da ótima cineasta Susanna Lira apresenta, de forma reta e contundente, um assunto que vem ganhando cada vez mais atenção na sociedade contemporânea: a exposição infantil nas redes sociais. #salverosa é um grito de socorro que pode abrir os olhos de muitas pessoas.

Aos 13 anos, Rosa (Klara Castanho) é uma jovem introspectiva que virou uma celebridade na internet com um canal que reúne milhões de assinantes. Ela vive sob o olhar atento da mãe (Karine Teles), uma mulher controladora, enigmática e que esconde segredos. Nessa relação que vai se mostrando cada vez mais conflituosa, acompanhamos os desenrolares desse chocante retrato quando Rosa começa a descobrir verdades da sua própria história. 

O tom colorido do projeto – com cores pulsantes, fruto de uma direção de arte que dialoga com o campo emocional a todo instante -, ajuda a potencializar as camadas emocionais dos personagens. Sob alguns pontos de vistas – fato que ajuda a narrativa a ganhar ritmo conduzindo à tensão – acompanhamos as ações e consequências quando um castelo de cartas macabro começa a desmoronar. De dentro pra fora – do íntimo familiar até os olhares de terceiro –, o roteiro busca os conflitos dentro de uma estrutural tradicional: sem se arriscar mas conseguindo evidenciar o impacto do chocar.

Uma vilã clássica - daquelas de despertar o ódio, debochada e atrevida - dita o ritmo em muitos momentos, mais uma atuação competente da atriz Karine Teles. A partir dessa figura emblemática na história que é contada, o projeto foca em trazer para debate o caótico retrato da inconsequência da exposição. À medida que a tecnologia é inserida de forma desenfreada através dos meios de comunicação que surgem a toda hora, a obsessão pela fama e sucesso coloca a moral escanteada. Um dos méritos desse filme é justamente lançar luz sobre essa questão.  

Prendendo a atenção em muitos momentos, o drama logo vira um suspense, com uma imprevisibilidade em seu final.  #salverosa cumpre o que promete: vai das relações tóxicas – que acontecem em muito lares – até as camadas da exposição em mundo cheio de perigos, distantes ou próximos de cada um de nós.

 

 

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06/10/2025

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Crítica do filme: 'Alice' [Festival do Rio 2025]


Já dizia alguém: é nos pequenos frascos que estão os melhores perfumes! Com uma composição visual deslumbrante, criando significados a partir do desbravar da linguagem, quase um chamado para a imersão de sentimentos que pulsam na tela, o curta-metragem Alice, dirigido por Gabriel Novis é um retrato comovente e profundo de uma mulher trans nascida em Maceió. Embarcando em uma reinvenção de sua própria trajetória, Alice Barbosa apresenta ao público a sua história, que teve estreia nacional no Festival do Rio 2025.

É impressionante como, em apenas 17 minutos, nossos pensamentos se veem mergulhados em reflexões constantes de um retrato muito bem construído e sensível. Tocante e contornando o terror do preconceito, a narrativa nos projeta para conhecer uma história que fala muito sobre família, despertar para suas verdades, o luto, os prazeres através do esporte e também as mudanças com as despedidas. Com uma narração da própria personagem-título, somos conquistados do primeiro ao último minuto.

Contextualizando de forma certeira a violência, o preconceito, a misoginia e a transfobia - traços de uma sociedade em constante medo, e, muitas vezes, incapaz de enxergar a realidade do próximo - Alice apresenta sua protagonista: uma jovem artista trans que desperta para algumas questões de sua vida após a perda, muito sentida, do pai. Esse luto, é uma variável que se torna constante, ganha simbolismo em tela, um elemento que cruza a trajetória que acompanhamos – das memórias da infância ao presente - de maneira acachapante.  

Esse é um filme para ser sentido, debatido, e embarcar na criatividade com que se modela a linguagem. Tudo o que aparece em tela parece dialogar com o discurso e com os pontos que se ligam à emoção. Esse curta-metragem alagoano foi o vencedor de um dos maiores festivais de documentários do planeta, o Hot Docs, no Canadá – feito que o posiciona como uma obra qualificável para a disputa do próximo Oscar. Tomara! Que filmaço!

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Crítica do filme: 'Sobre Tornar-se uma Galinha d'Angola' [Festival do Rio 2025]


Uma das maiores alegrias de qualquer amante da sétima arte é se deparar com uma obra surpreendente e avassaladora durante um evento de cinema. No terceiro dia de exibições do Festival do Rio 2025 nos deparamos com um longa-metragem impressionante que, de forma criativa e envolvente – utilizando a comédia em muitos momentos para nos guiar por assuntos espinhosos ligados a uma família - nos leva até um recorte sobre a violência, crueldade e tradições, ambientada num país africano.

Escrito e dirigido pela cineasta zambiana Rungano Nyoni, esse projeto nos conduz até o ensurdecedor silêncio de verdades escondidas, ao conflito geracional, à desigualdade de gênero e ao caos do patriarcado – elos de uma corrente que insere-se na violência sem punição, na dor e sofrimento capazes de transformar olhares e redefinições de trajetórias.

Shula (Susan Chardy) está dirigindo seu carro quando, de repente, percebe um corpo estirado no meio da estrada – e logo percebe que se trata de seu tio. Quando a família toma conhecimento do ocorrido, os procedimentos para o funeral se iniciam e, a partir disso, começamos a entender quem era a pessoa que morreu - além de segredos chocantes que são aos poucos revelados.

Nessa construção narrativa, executada de forma cirúrgica, as camadas se abrem também por uma estética cinematográfica inteligente, em que o diálogo sobre os temas se amplia através do que vemos e ouvimos – uma verdadeira bomba de emoções que sufoca o coração mais gelado. Sempre pelo olhar de uma protagonista com marcas no seu passado, o ápice do discurso vai sendo aos poucos revelado, com um desenvolvimento eficiente de leves subtramas que rompem a superfície dos assuntos que se apresentam.

Do riso inesperado ao desconforto que choca, tudo é exposto - e ainda há resquícios pelas entrelinhas. É impressionante como cada peça se encaixa de forma harmônica para se chegar a erupção de um grito guardado. Andamos pela corda bamba das emoções reprimidas sem conseguir tirar os olhos da tela. É muito difícil conseguir um resultado como este, construído através da sutileza e de um humor que vai direto ao desconforto diante de questões difíceis de discorrer.

Com seu enigmático e peculiar título, Sobre Tornar-se uma Galinha d'Angola – que pode até afastar os que não estão abertos a descobertas ou mesmo não fazem questão de refletir sobre os assuntos que os espera -, esta obra não deixa nossas memórias tão cedo, preenchendo nosso pensar com um leque de reflexões sociais que alcançam a universalidade das várias formas de violência presentes em muitos lares. Um dos melhores filmes do Festival do Rio 2025.

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04/10/2025

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Crítica do filme: 'Depois da Caçada' [Festival do Rio 2025]


O italiano Luca Guadagnino é um dos mais interessantes cineastas da atualidade - e isso não vai mudar. Seu cinema busca reflexões sociais atuais, dialogando com o público a cada ponto de suas narrativas, como já se viu na maioria dos seus filmes. Em seu novo trabalho, Depois da Caçada, exibido pela primeira vez no prestigiado Festival de Veneza – e filme de Abertura do Festival do Rio 2025 -, ele volta a recortes sociais importantes e, dessa vez, convida o público a embarcar em um elevador para camadas de assuntos que vão se amontoando, sem respiro para reflexões.

Pra embarcar nesse longa-metragem, é preciso atenção. Pelas entrelinhas de diálogos bem construídos, a filosofia surge como base – o principal ingrediente desse molho que busca, no conflito, as pausas necessárias pra expor a ética e a moral em uma sociedade cada vez mais egoísta. Foucault, Locke são citados e servem de gancho para camadas que exploram desde a necessidade de controle e o cancelamento até as relações interpessoais e as linhas tênues que se apresentam no caminho para pensar a existência.

Alma (Julia Roberts) é uma professora renomada da prestigiada universidade de Yale. Casada com Frederick (Michael Stuhlbarg), ela trabalha há anos para ganhar a titularidade e reconhecimento do seu trabalho. Quando Maggie (Ayo Edebiri), uma aluna de doutorado, faz uma acusação contra Hank (Andrew Garfield), outro professor da instituição, Alma se vê perdida em dilemas trazendo à tona um segredo do passado que transforma seu presente num mar de instabilidades emocionais.  

Com uma trilha sonora muitas vezes incessante – um elemento complementar a composição da ebulição das emoções que se apresentam –, somos colocados no papel de observadores de um castelo de cartas que se constrói e descontrói. Tudo funciona em cena para potencializar o caos interno dos personagens a partir dos assuntos que surgem, elevado por um elenco primoroso que sustenta um roteiro denso com o foco nas perspectivas desses personagens.   

O cancelamento e os caminhos para lidar com isso – tanto dos envolvidos quanto por quem está ao redor – é um dos temas que mais se projetam, onde realmente há uma construção mais constante, um assunto que busca lapidar as camadas que se expandem. A questão é que essas muitas camadas que se abrem, deixam o respiro em segundo plano, alongando o tempo de projeção – mesmo que sem redundância. É maçante em muitos momentos, pois enquanto estamos pensando sobre um ponto, logo outro se apresenta, e costurar isso tudo quando se chega ao fim é uma tarefa árdua – talvez até um convite para assistir ao filme de novo.

A partir também da moral e da ética, o roteiro busca com seu discurso cheio de significados pensar o hoje sob muitos olhares. Provavelmente vai dividir opiniões, mas tem méritos que são facilmente absorvidos.  

 

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