09/11/2025

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Pausa para uma série: 'O Naufrágio do Heweliusz'


Era o início do ano de 1993, na Polônia. O enorme cargueiro MS Jan Heweliusz, construído no final da década de 1970, se preparava para mais uma jornada atravessando o Mar Báltico. A bordo, mais de 60 pessoas – entre passageiros e tripulantes. Durante uma manobra arriscada – mas necessária diante das condições que se estabeleceram –, a embarcação começou rapidamente a afundar, se tornando um dos maiores desastre marítimos europeus.

O Naufrágio do Heweliusz, nova minissérie da Netflix, dirigido por Jan Holoubek e roteiro assinado por Kasper Bajon, chega para jogar luz sobre essa tragédia, mostrando de forma detalhada o antes, o durante e o depois, reunindo fatos que se juntam para uma explicação complexa sobre o que realmente aconteceu em uma madrugada que ficaria marcada na história.

Desde os problemas estruturais de um navio que precisava de manutenção constante e o atraso na partida, até uma corrente de situações que se somaram para se chegar à catástrofe, essa ficção retrata de forma impressionante questões que se desenrolaram na realidade. A dor das famílias, a luta pela sobrevivência em águas geladas atingidas por uma tempestade violenta, as questões políticas e militares que estavam presentes e um polêmico julgamento compõem uma história cheia de conflitos e emoções.

O que mais chama a atenção nessa produção é o equilíbrio entre seus cinco episódios, que vão da terra ao mar caminhando por uma porção de tensões. Você se vê preso nessa história do início ao fim, com poucas pontas soltas - fruto de um roteiro muito bem construído, que conduz o público por diversas perspectivas, e seus dilemas morais, sem perder o ritmo.

A narrativa dilacera as emoções através das histórias que correm em paralelo dos muitos personagens. É tudo muito angustiante! As cenas no navio são impressionantes, somado a atuações maravilhosas de um talentoso elenco que enriquece a obra. Vale o destaque também para o competente departamento de arte, trazendo concepções visuais impactantes, e para a fotografia assinada por Bartlomiej Kaczmarek, que constrói sua identidade através do luto, do desespero, da indignação e de emoções conflitantes.

O Naufrágio do Heweliusz chegou à líder dos streamings nesse início de novembro e logo alcançou ao Top 10 de séries da plataforma. É uma megaprodução, com roteiro preciso e diálogos incisivos e marcantes, que contou com mais de 3.000 figurantes. Vai por mim: você vai querer maratonar!

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08/11/2025

Crítica do filme: 'Manga'


Sem pretensões de ser algo além de uma simpática comédia romântica que vai de encontro a uma ingenuidade da previsibilidade, chegou à Netflix, nesse início de novembro, uma produção dinamarquesa que busca no superficial reflexões sobre o lado existencial de dois personagens em conflito. Manga, dirigido por Mehdi Avaz, segue uma receita de bolo – como tantas outras produções – virando um passatempo sem ambições maiores, mesmo com personagens carismáticos.

Lærke (Josephine Park) é uma mulher que busca os próximos passos no ramo hoteleiro. Mãe da jovem Agnes (Josephine Højbjerg), ela nunca consegue arrumar tempo para a filha. Focada em uma nova missão determinada pela chefe, Joan (Paprika Steen), ela parte para Málaga com o objetivo de convencer o viúvo Alex (Dar Salim) a vender suas valiosas terras, que abrigam uma enorme plantação de mangas. Tudo que ela não esperava era se apaixonar por ele.

A narrativa busca nas surpresas do destino seu fôlego, construindo contrastes que vão da alegria aos dilemas, das dores do passado às incertezas do futuro – norteada por um positivismo, traço marcante de muitas produções românticas. Com um cenário deslumbrante de pano de fundo, amplificações de emoções são vistas com uma composição de cores que expressam o desejo e a paixão, também por diálogos que expõem os clichês.  

Mesmo sendo superficial e não rompendo camadas, o roteiro busca alguns caminhos para mostrar as aflições e correr desesperadamente para o intenso de um amor avassalador. Dois personagens de meia-idade enfrentam os conflitos de suas trajetórias até ali: uma mãe workholic e um empreendedor se enrolando em dívidas. O amor surge como uma oportunidade de entender o mundo de outra forma - dentro de um sentido existencialista, onde a responsabilidade e a angústia vem antes de qualquer construção de quem são como seres humanos.

Não sei se há alguma metáfora no sabor doce e no aroma intenso da conhecida fruta tropical que dá título à obra. Talvez seja uma possibilidade de refletir sobre o amadurecimento. Nesse caso, realmente se encontra conexões para se pensar sobre o tempo como um elemento importante para os próximos passos que todos nós, algum dia, temos que dar.  

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06/11/2025

Crítica do filme: 'A Mulher da Fila'


Apresentando um recorte sobre a relação de fora para dentro - focado nos familiares de condenados por delitos que cumprem pena em regime fechado em uma prisão da Argentina - o longa-metragem argentino A Mulher da Fila costura sua ficção a partir de uma base inspirada em fatos reais, ocorridos há duas décadas, sobre uma mulher que viu seu mundo desabar com a prisão do filho mais velho e precisou se adaptar à situação.   

Em uma narrativa densa, que explora questões sociais e também morais em um núcleo familiar marcado por perdas, o projeto confronta a dor e o choque emocional para uma desconstrução, sendo pouco efetivo na amplitude que propunha a perspectiva do discurso. Não há camadas para o reeducar e o reinserir; prefere-se o olhar para a decepção, além de um contexto amoroso que, no desfecho, percebemos ser o principal objetivo da trama.   

Andrea (Natalia Oreiro) é uma mulher batalhadora e viúva, uma mãe carinhosa que vive em um bairro de classe média com os três filhos. Um dia, é surpreendida com a prisão do filho mais velho, Gustavo (Federico Heinrich). Tendo que se adaptar a essa situação, ela passa a visitá-lo sempre que pode na prisão, onde acaba conhecendo outras mulheres em situação semelhante e também um outro detento, Alejo (Alberto Ammann), de quem se aproxima cada dia mais.

As burocracias do sistema judiciário, aqui com o olhar para as leis argentinas, ganham um bom espaço, principalmente quando pensamos no processo e sua efetividade. Sem adoção do jurisdiquês e com o olhar quase sempre na protagonista, caminhamos por dilemas de uma mãe que precisa acessar a ruptura dos seus valores chegando até uma crítica institucional – mesmo em camadas superficiais. Vale dizer que esse olhar também é expandido com breves retratos de outras mulheres que frequentam a mesma fila.

Uma questão que pode gerar debates é a romantização de uma situação – neste caso, o crime cometido pelo filho - algo que pode chegar na conclusão de muitas pessoas. Há uma linha tênue entre o emocionalmente envolvente e o moralmente questionável: o roteiro adiciona ficção a um fato que pode deixar essa linha balançada. Na vida real, o filho de Andrea foi totalmente inocentado, sem nenhuma participação no crime do qual foi acusado, diferente do que acontece no filme. Esse detalhe abre margens para algumas interpretações.    

Dirigido por Benjamín Ávila, A Mulher da Fila conta com uma atuação visceral da atriz uruguaia Natalia Oreiro. Disponível na Netflix, o filme busca nas dores de uma forte protagonista apresentar a resiliência materna e as novas forma de enxergar o mundo ao seu redor, a partir de um choque de realidade.

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05/11/2025

Crítica do filme: 'Balada de um Jogador'


Chegou à Netflix uma obra desafiadora, que não é uma narrativa de compreensão trivial, buscando associar a conturbada instabilidade emocional de um protagonista em processo de autodestruição a elementos que desafiam a lógica de tempo e espaço. Dirigido pelo excelente cineasta suíço Edward Berger – indicado ao Oscar e que já apresentou ao público os ótimos Conclave e Nada de Novo no Front -, Balada de um Jogador é um projeto ‘fora da caixa’, ousado e, ao mesmo tempo, criativo que desafia o público ao longo dos 100 minutos de projeção.

Se você curte filmes de fácil assimilação, essa é uma obra que você pode não gostar – mas vale o desafio. Dentro de um enredo algumas vezes desconexo caminhando ao imprevisível, com cores vibrantes acenando à sensação de delírio, segue a desorientação de um personagem central apresentando seu estado de espírito e reagindo ao que acontece ao seu redor. O projeto, que teve exibições no Festival do Rio antes de chegar à líder dos streamings, conta com uma ótima atuação de Colin Farrell.

Lord Doyle (Colin Farrell) é um apostador completamente impulsivo que está em Macau –região com impulsos econômicos ligados aos jogos de azar, também conhecida como Las Vegas da Ásia -, passando os dias jogando bacará sem parar e se afundando na própria ruína. Quando percebe que seu passado o alcançou por conta das inúmeras dívidas que possui em outros cantos do mundo, ele conhece Dao Ming (Fala Chen), uma mulher misteriosa que pode ter algumas soluções para seus problemas.

Baseado na obra The Ballad of a Small Player, do autor britânico Lawrence Osborne, esse longa-metragem se decifra de inúmeras formas tendo um ‘start’ quando se percebe uma junção de lições morais por meio de parábolas sobre uma difícil redenção. Dentro dessa questão existencial, se desenrola uma trama cheia de sugestões que se confundem entre sonho e realidade. Esse é um filme para estar aberto a possibilidades - bem longe do convencional.

Muito parecido com a premissa de filmes como Despedida em Las Vegas, que usam a autodestruição como escudo para mensagens diretas e indiretas, Balada de um Jogador é um projeto arriscado - daqueles de dividir opiniões. Instiga o público a sair de zonas de conforto, mas se confunde nas suas próprias estranhezas.

 

 

 

 

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Pausa para uma série: 'A Agente'


Muito bem amarrada em episódios bem distribuídos, dentro de uma narrativa repleta de inquietações e provocações, chegou sem muito alarde à Netflix uma série que caminha a passos largos pela mente da polícia e criminosos em um confronto pelas perdas emocionais. A produção dinamarquesa A Agente é muito mais que uma obra que rompe camadas para apresentar um iminente confronto - dilacera os dilemas sobre o certo e o errado de forma contundente, deixando reflexões por todos os lados.

Tea (Clara Dessau) é uma jovem solitária que, após um passado cheio de questões, resolve ingressar na academia de polícia. Pouco tempo depois, é chamada para um operação secreta em que precisa se infiltrar na rotina do líder criminoso Miran (Afshin Firouzi) através da esposa dele, Ashley (Maria Cordsen). Correndo contra o tempo em busca de informações, aos poucos vai encontrando dilemas pelo caminho.

O enredo, com seu clima emocional sem excessos, busca o sentimento predominante de tensão através de histórias que se interligam em dois lados apostos da lei. Do drama ao suspense, essa costura em forma de narrativa é sustentada por uma série de personagens com intenções incertas, e suas dificuldades de se firmar valores morais. Tudo isso é mostrado de forma equilibrada dentro das ações e consequências - mérito de um roteiro que sugere muitos olhares para reflexões.

Nessa montanha-russa de emoções, as oscilações de sentimentos acabam sendo um elo que interliga os personagens, formando um triângulo de diferentes pontos de vistas. Um criminoso, ao ver o cerco se fechar, justifica somente para si suas ações até ali, num egoísmo que resvala na família que construiu. Sua esposa, descompromissada com as verdades que rondam sua rotina. passa por uma processo de desconstrução em tudo que acredita. Já a policial protagonista enxerga além da justiça, colocando nas justificativas de suas ações um caráter ético-filosófico, avaliando a culpa de forma proporcional.

Em seis episódios, essa minissérie – que, a princípio, tem começo, meio e fim mas quem abe não ganha uma segunda temporada - fica longe das pontas soltas e apresenta alguns olhares para uma situação que envolve família, escolhas e culpabilidade. A partir do foco na protagonista, acessamos camadas familiares por meio de uma esposa que se vê perdida entre os laços familiares e um novo despertar para sua vida até aquele ponto. Esse é um projeto que utiliza de forma eficiente o Cliffhanger, despertando o desejo de uma maratona ininterrupta como a escolha certa do público.

 

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04/11/2025

Crítica do filme: 'O Amigo'


Percorrendo os caminhos lacrimosos da melancolia, chegou sem muito oba oba no Prime Video um filme que toca profundamente nossos corações. Através do luto e das surpresas que a vida apresenta, O Amigo consegue ampliar horizontes das razões existenciais em uma narrativa que combina a solidão dos momentos difíceis com a abertura de uma nova porta de oportunidade: a de viver sem esquecer.

Dirigido por Scott McGehee e David Siegel, o projeto também abre espaço para um olhar familiar nas relações interpessoais e sobre a maneira como enxergamos a compaixão dentro de um existencialismo construído de forma única por cada ser humano. Mas o ponto principal é a relação entre uma protagonista em crise e um cachorro apaixonante que só tem tamanho - o elo que move as correntes para as emoções. 

Baseado em um livro homônimo da escritora nova-iorquina Sigrid Nunez, nessa obra acompanhamos a história de Iris (Naomi Watts), uma escritora que acaba de perder seu amigo e mentor, o professor Walter (Bill Murray). Para sua surpresa, logo após o funeral, descobre um desejo dele: que ela ficasse com seu cachorro, Apolo – algo que vira sua vida do avesso.

Do luto aos seus desenrolares, sem se desprender de um estado de tristeza contemplativa – expressa em gestos, atitudes e palavras -, esse é um filme que diz muito sobre nós, seres humanos: as prioridades, os erros, os acertos, as diversas formas de dizer adeus. Com esse roteiro cheio de camadas profundas, a narrativa encontra ritmo em meio à melancolia, conduzida por ótimos personagens em total harmonia.

Pelos olhos de uma protagonista muito bem interpretada pela excelente atriz Naomi Watts, entramos numa jornada que vai do lembrar ao sentir, colocando pedaços a serem construídos de um futuro que passa por um presente com definições importantes. Alguns diálogos da protagonista são memoráveis, com grande impacto em cena, o principal deles, já no desfecho ao lado de Bill Murray – cirúrgico no papel, com pouquíssimo tempo de tela – provocam contrastes que se completam numa dicotomia entre a morte a vida, fechando uma história pra guardar no coração.  

 

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30/10/2025

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Pausa para uma série: 'Chad Powers'


Nascido de uma pegadinha feita anos atrás pelo ex-jogador da NFL Eli Manning – vencedor de dois super bowls – para uma série documental da ESPN, o personagem fictício Chad Powers ganhou uma inesperada série – e muito interessante, por sinal. No papel principal, o ator Glen Powell – em ótima atuação - dá vida a um homem frustrado em busca do recomeçar. Com seis episódios em sua primeira temporada, a série convence ao transformar uma fórmula batida - que tinha tudo pra dar errado - em um verdadeiro touchdown!

Russ Holliday (Glen Powell) era uma polêmica estrela do futebol americano universitário quando, em um jogo decisivo, comete uma gafe - pior que um gol contra - ficando marcado nos anos seguintes pela jogada bizarra. Sem conseguir alcançar seus objetivos e completamente perdido na vida, ele resolve apostar todas suas fichas ao se disfarçar de Chad Powers: um jovem tímido e um jogador brilhante, conseguindo uma vaga em um time que só acumulava derrota antes de sua chegada. Para manter o disfarce, conta com a ajuda do novo amigo Danny (Frankie A. Rodriguez).

Com um episódio melhor que o outro – com um total de seis nesta primeira temporada – Chad Powers parte dos absurdos de uma ideia para construir ótimas reflexões sociais. O caminho que liga esses pontos é a vida conturbada de seu protagonista: um egocêntrico com problemas de relacionamento com o pai, um canastrão que chama a atenção por onde passa por suas atitudes inconsequentes. Um prato cheio para a narrativa se aprofundar e abrir diversas camadas, driblando uma possível complexidade emotiva com um humor bem particular – às vezes provocativo - expondo verdades incômodas.

O renascimento emocional do personagem é um enorme trunfo. É nesse ponto que a comédia estaciona e abre espaço para profundas camadas de emoção – sem resoluções triviais, onde a inconsequência encontra o abismo conflitante das lições. Mesmo com apenas poucos episódios na sua temporada inaugural, escancarasse portas para um longo desenvolvimento desse personagem, que bebe da fonte de ‘Uma Babá quase Perfeita’, mas segue por outros caminhos.

Um fator que pode ajudar essa produção a se tornar o novo queridinho do público é a carona que se pega no sucesso do principal esportes dos norte-americanos: o Futebol Americano. O crescimento da NFL – nome da liga profissional desse esporte nos Estados Unidos – é capaz de ser acompanhado em todo o mundo, especialmente no Brasil, um dos maiores mercados, com transmissões semanais na própria Disney +. Não é à toa que depois de dois anos consecutivos com jogos do campeonato em São Paulo, ano que vem haverá uma partida no maior palco da bola redonda: o Maracanã!

Chad Powers cumpre mais do que promete, mesmo não sendo tão brilhante na sua primeira jornada quanto Ted Lasso – outra série que, a partir de um esporte, chega-se em camadas profundas. Liderado por uma atuação marcante de Glen Powell, essa série dribla alguns lapsos de baboseira e transforma uma situação bizarra em algo realmente marcante. 

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Crítica do filme: 'A Memória do Cheiro das Coisas'


Impressionante como algumas obras conseguem, a partir de um olhar existencial, criar camadas profundas sobre o cedo ou tarde para dizer adeus. Exibido na Mostra de Cinema de São Paulo – sua estreia no Brasil -, o longa-metragem A Memória do Cheiro das Coisas, uma co-produção Brasil e Portugal, retrata de forma profunda sentimentos conflitantes de um homem de idade avançada que precisa enfrentar as dores que sente na alma quando começa a compreender os erros do passado.

Dirigido pelo cineasta português António Ferreira, a obra consegue, em cerca de 90 minutos de projeção, traduzir o que é difícil revelar em um filme: o sentir. Os desabafos e pesadelos que acompanhamos logo viram elementos construídos em cima de marcas invisíveis – sentidas somente por quem viveu. A partir desse ponto, o filme se expande para um retrato que alcança também a sociedade e suas questões. Não é somente sobre um homem e suas feridas, mas também sobre um mundo e o seu caminhar – que, muitas vezes, pode ser doloroso.

Perto de completar 80 anos, o ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa (Também conhecida como Guerra do Ultramar), Arménio (José Martins) é colocado em um lar de idosos, já que não consegue mais se aproximar da autonomia de outrora. Com marcas de um passado que não consegue esquecer, além da distância dos filhos – principalmente as relações cortadas com a filha – busca se adaptar à nova rotina. Com a chegada enfermeira Herminia (Mina Andala), o destino lhe trará novas oportunidades para rever questões que giram ao seu redor.

O ambiente é muito bem explorado pela narrativa. O asilo, de limitadas dimensões, contrasta com a cidade em movimento – vista por uma janela - sem deixar de trazer lembranças dentro de um, por vezes, introspectivo protagonista que se abre para novas interpretações sobre assuntos que sempre tratou com descaso. Lá fora, lembranças nada distantes. Ali dentro, no novo espaço controlado, a angústia abre espaço para aprendizados. A partir da sua nova rotina, Arménio conhece as histórias de outras pessoas – pacientes, enfermeiros –, trazendo a partir de sua perspectiva temas como o preconceito, os traumas, o racismo, família, o perdoar.

Um outro ponto importante é sobre o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), uma peça-chave que ganha movimentos de aflições ao longo de tudo que acompanhamos. O reviver o trauma através de pesadelos, em uma gangorra emocional marcada pela vergonha e culpa, revela as mãos dadas com a depressão – algo que está presente e ganha luz de reflexões.

Cheio de méritos em sua narrativa intimista, A Memória do Cheiro das Coisas parte do indivíduo para se alcançar o todo. Uma produção de forte impacto que busca nas suas traduções dos sentimentos abrir as portas para conhecermos e nos entendermos como seres humanos em um mesmo espaço - a partir das feridas abertas de uma sociedade que ainda tem muito a aprender.

 

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28/10/2025

Crítica do filme: 'Ataque 13'


Apresentando um terror que abre espaço para reflexões sobre os tratos sociais, chegou na Netflix um longa-metragem tailandês que coloca o bullying no centro de uma trama onde pesadelos, assombrações e rituais ligados ao sobrenatural ganham forma através de jovens personagens em conflito, explorando também o anti-heroísmo. Nem tudo funciona com consistência – há pontas soltas no roteiro -, mas um plot twist totalmente inesperado na sua parte final entrega novos sentidos às ações e consequências.

Dirigido por Taweewat Wantha, com roteiro assinado por Thammanan Chulaboriruk, Ataque 13 busca romper camadas que, em um primeiro momento, parecem adormecidas na superfície, mas que logo se apresentam como boas críticas sociais - mesmo com o foco em ir de encontro com a tensão a todo instante, através do macabro, das invocações de espíritos e possessões.

Jin (Korranid Laosubinprasoet) chega a um novo colégio, onde Bussaba (Nichapalak Thongkham) toca o terror, fazendo bullying com outras meninas. Dividindo a quadra nos treinos de vôlei, as duas logo se tornam inimigas juradas. Após uma série de conflitos, Bussaba é encontrada morta na quadra do colégio. Dias depois, seu espírito retorna para aterrorizar Jin e suas amigas.

A dificuldade de socialização e a baixa autoestima - consequências do bullying - são bem explorada pela narrativa, talvez o ponto de maior relevância da obra. Como esse é um assunto de muitos cotidianos, a premissa funciona, nos levando para a gangorra entre o drama e o terror. Nesse segundo momento, com ajuda dos efeitos especiais e um uso excessivo de ‘jump scares’, nos deparamos com o sombrio e o inexplicável, através de uma trama que vai se revelando aos poucos.

Para você que gosta de levar uns bons sustos, Ataque 13 vai cumprir esse papel. No entanto, para análises mais amplas e reflexões profundas, o filme deixa um pouco a desejar, por mais que encoste muitas vezes em dramas sociais que vão do assédio à violência psicológica.

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27/10/2025

Crítica do filme: 'Delírio'


Selecionado para a Mostra de SP, Delírio é um filme pra lá de insólito – no sentido de estranhamento - que congela algumas tentativas de criar tensão, sem elementos convincentes de construção de uma narrativa que parece não sair do lugar. Jogando todas suas fichas nos detalhes e no silêncio – que não soa ensurdecedor-, e com poucos personagens, o longa-metragem vai sugerindo conflitos de forma lenta, deixando o público abraçado – ou não – pela paciência.

A partir do olhar sobre três gerações de mulheres da mesma família - com relações deterioradas ao longo do tempo e marcas do passado acompanhando suas trajetórias -, somos testemunhas de uma curiosa adição do sobrenatural em meio a conflitos mundanos. As sensações e os medos buscam ganhar forma e movimento, numa imersão com muitas pontas soltas. Ao sugerir mais do que explicar, o trabalho escrito e dirigido por Alexandra Latishev Salazar vira uma missão para pessoas com grande paciência.

A médica Elisa (Liliana Biamonte) precisa passar um tempo com a mãe já debilitada, Dinia (Anabelle Ulloa), e leva consigo Masha (Helena Calderón), sua filha. Após algumas noites com sensações estranhas e barulhos esquisitos pela casa, Elisa percebe que algo está estranho naquele lugar, tomando algumas atitudes para entender o que acontece e proteger a filha.

A princípio parece que há uma história interessante - o roteiro tem questões importantes para reflexões, como a falha parental, mais ligada ao afeto. Mas é impressionante como, ao tentar contá-la, tudo fica muito confuso, em uma simplicidade que até confunde. Um exemplo é quando observamos mais de perto os conflitos entre as gerações, principalmente entre Elisa e Dinia: percebemos uma mágoa profunda, algo nada detalhado expressando-se através de um discurso indireto, quase disfarçado.

Mas o ponto que mais pega é a relação da filha mais nova com um provável fantasma - uma figura representativa no âmbito familiar, marcada pela violência. Uma situação que, bem desenvolvida, poderia elevar a obra de patamar, abrindo inclusive camadas importantes que não são encontradas pela narrativa.

Em resumo, Delírio, ao abraçar a sensação, esquece-se de apresentar questões de forma mais clara e convincente, conduzindo o público para uma jornada na qual olhar o relógio é a única certeza.

 

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Pausa para uma série: 'Maguila - Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome'


Um ano após a morte de um dos maiores e mais carismáticos atletas brasileiros da nossa história, chega ao Globoplay uma série documental que busca apresentar a uma nova geração - e boas lembranças pra quem o conheceu – o pugilista Maguila. Dividido em quatro episódios, onde se distribui contextos que vão da vida pessoal a carreira vitoriosa, esse projeto apresenta, em sua essência, o ser humano José Adilson Rodrigues dos Santos: um homem batalhador, sem papas na língua e com um carisma único.

Nascido em Aracajú, chegou até São Paulo no início da década de 1970, onde trabalhou em construções. Quando viu a primeira oportunidade para treinar boxe, procurou uma academia e lá começou seus primeiros - de muitos - passos na nova profissão. De origem humilde e fã de Muhammad Ali, ao longo da carreira mostrou mais força do que técnica, além de uma identificação impressionante com os brasileiros, logo virando uma verdadeira celebridade.

Os altos e baixos da carreira não deixam de ser apresentados nessa obra, dentro de um contexto amplo que começa com a descoberta de Maguila por um grupo que amava esse esporte - fato bem distribuído ao longo dos episódios centrais. O boxe como um produto e a chegada de eventos transmitidos por um famoso canal de televisão, transformou o esporte em um evento grandioso. Maguila, o maior peso-pesado da história desse esporte no Brasil, tornou-se o rosto à frente do projeto.

Com ricas imagens e vídeos de arquivo, a narrativa logo alcança os detalhes através de curiosidades, além de trazer depoimentos inéditos de nomes como Serginho Groisman, Elia Junior, Datena, entre outros. A série documental também apresenta grandes momentos de sua carreira, como os duelos contra Evander Holyfield e George Foreman.

Assim, a narrativa busca, a partir da carreira profissional do pugilista – contada por quem conviveu com ele na época - mostrar questões pessoais, os deslizes com a chegada da fama e o diagnóstico de Encefalopatia Traumática Crônica (conhecida como demência pugilística). Entrevistas com os familiares, que ganham mais força no episódio final, enriquecem ainda mais esse abrangente recorte.

Lançado um ano após sua partida, Maguila - Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome chega como um contundente registro de um homem amado pelo nosso país e sua trajetória de luta, dentro e fora dos ringues.

 

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Pausa para uma série: 'Ninguém nos Viu Partir'


Inspirado em uma história real relatada no livro Nadie nos vio partir, de Tamara Trottner – uma das personagens da obra –, a nova série da Netflix, Ninguém nos Viu Partir, que alcançou o Top 1 da plataforma, é um projeto mexicano que relata um sequestro parental e, a partir de camadas, chega nos conflitos emocionais que atingem uma mulher em uma época marcada pelo preconceito, pelas tradições e pela desigualdade de gênero.

Ambientado na década de 1960, em Ninguém nos Viu Partir, conhecemos Valeria (Tessa Ia), uma jovem que largou o mestrado e foi obrigada a se casar com o arquiteto Leo (Emiliano Zurita), em um acordo entre as famílias judias que residem no México. O casal tem dois filhos. O tempo passa e Valeria se apaixona pelo cunhado do marido, Carlos (Gustavo Bassani). Após descobrir a traição, Leo, com a ajuda do pai, Samuel (Juan Manuel Bernal), sequestra as crianças e foge para a Europa. Durante muitos meses, Valeria se vê em uma busca cheia de reviravoltas, movida pelo sonho de voltar a ver as crianças.

Direto para sua premissa, em um primeiro episódio que apresenta seu ponto de partida através de um homem impulsivo e facilmente influenciável pelo pai – um poderoso empresário judeu – que, em um ato desumano e criminoso, sequestra os filhos para longe da esposa.  Passo a passo, vamos entendendo melhor essa história por meio de flashbacks que mostram alguns dos motivos para tal ato de crueldade, além dos conflitos ao redor da família, ampliando o contexto.

A narrativa utiliza o ‘antes e depois’ para nos situar nos acontecimentos, não encostando no suspense, seguindo sua estrada pelo forte drama vivido pela protagonista. O que é sugerido logo é mostrado, compondo cinco episódios sem perder o ritmo, com a carga dramática aumentando gradativamente, além de ótimas atuações.

O mais interessante desse projeto é que ele aborda a imaturidade em algumas vertentes, sendo a principal deles os olhares não óbvios que chegam através de uma traição. Parece algo meio contraditório, mas, se formos analisar com uma lupa percebemos o desenvolvimento emocional dos personagens – até mesmo sua desconstrução - nessa linha tênue entre a moral e a aceitação.

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Crítica do filme: 'Um Fantasma na Batalha'


Inspirado em fatos reais ocorridos na Europa, mais precisamente entre a Espanha e a França, a partir das ações terroristas de um grupo separatista que logo chegou à luta armada cometendo atentados em diversos lugares, o longa-metragem Um Fantasma na Batalha, recém-adicionado à Netflix, é um thriller político com pitadas generosas de espionagem, que joga nossos olhares para o lado sombrio do ser humano, onde a inconsequência é rompida.

Escrito e dirigido por Agustín Díaz Yanes – vencedor do Goya de direção e roteiro em 1996, pelo filme Ninguém Falará de Nós Quando Estivermos Mortos – a obra retrata o caótico momento político de um período onde o medo podia estar em qualquer esquina, em uma Europa turbulenta. Para entendermos melhor o contexto, algo apresentando apenas brevemente pelo filme com inserções via legendas no início, é preciso algum conhecimento sobre o ETA.

Nascido nos tempos de ditadura e o regime autoritário e centralizador de Francisco Franco, o ETA (sigla traduzida para ‘Pátria Basca e Liberdade’) buscava, nos seus primórdios, a independência para o País Basco – iniciada no final de 1950, a partir de um movimento estudantil. Ao longo do tempo, células desse grupo tornaram as ações mais violentas e atentados se tornaram constantes, resultando em um banho de sangue que marcou as páginas europeias. Um Fantasma na Batalha é situada já na fase de declínio do ETA.

Ambientado em meados da década de 1990, acompanhamos a história de Amaia (Susana Abaitua), uma jovem oficial da guarda civil espanhola que se infiltra em uma célula do grupo separatista ETA, com o objetivo de localizar alvos e prevenir futuros atos terroristas praticados pelo grupo. Durante quase uma década, ela se vê em vários dilemas, descartando a vida pessoal e se jogando numa estrada marcada por tensão e violência.

Com imagens da época e reportagens sobre alguns dos atentados mostrados, inseridas em uma narrativa ficcional que atinge a tensão durante boa parte da projeção, este longa-metragem consegue apresentar um amplo recorte de um panorama político de uma época, ao mesmo tempo que chega em camadas através do desenvolvimento de seus personagens - guiados para dilemas morais a partir de uma protagonista sob constante atenção.

Um Fantasma na Batalha é uma produção muito bem feita, com ótimas atuações e uma direção de arte coerente, capaz de alcançar a atmosfera de tensão e conflituosas emoções. Esse clima pesado que o filme apresenta é exatamente o sentimento daquela época. Mesmo o sugerido prevalecendo sobre o descritivo – algo que atinge a compreensão de um contexto mais amplo – esse é um filme interessante que merece reflexões e debates.  

 

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Crítica do filme: 'Presente Maldito'


Com pouco se faz muito. Acontece uma situação peculiar com esse novo filme protagonizado por Dakota Fanning – muito bem no papel, por sinal. Limitado a uma premissa que não se expande tanto e fortemente ligado a uma possível maldição, esse longa se passa, em grande parte dentro de uma casa propícia para filmes que assustam, dentro do sentido de refúgio e uma prisão. Presente Maldito consegue, por meio da imersão na tensão constante desenvolver uma trama imprevisível, que sempre progride, não caindo em redundância – mesmo diante das limitações da história.

Polly (Dakota Fanning) é uma jovem buscando se encontrar na vida e vive sozinha na casa que aluga da irmã. Em uma noite, abre a porta da casa para uma senhora que lhe entrega uma caixa misteriosa. A partir desse momento, suas próximas horas serão de total medo e tensão, precisando executar algumas tarefas ingratas.

Nesse suspense psicológico que logo invade o terror, escrito e dirigido pelo cineasta norte-americano Bryan Bertino, usa-se bem os poucos elementos em cena, prendendo a atenção do público através de dramas pessoais que se encontram com o sobrenatural – algo que poderia ter sido melhor explorado no roteiro. Espelhos, efeitos na voz, ligações aterrorizantes, a televisão que liga sozinha, mutilações - cada elemento se torna parte importante para chegarmos na sensação de estar em um labirinto, que nem a protagonista.

O que você ama? O que importa para você? Essas razões existenciais que contornam qualquer tajetória vão direto na raiz da essência humana e os dilemas que todos enfrentam pelo caminho. A questão era como transformar esses pontos de reflexões existenciais em tensão. Com tons frios e uma personagem buscando um vínculo com as emoções - sensações ampliadas no espaço em que se desenvolve a narrativa -, outro ponto interessante e bastante nítido aos nossos olhos é a fotografia, assinada por Tristan Nyby.

Da a impressão de que Presente Maldito entrega tudo que pode em termos técnicos, além da Ótima atuação de Fanning em um papel muito difícil - sempre em cena, cercada de variáveis e ações que se desenrolam ao seu redor. A questão que pesa nessa obra é a limitação de uma história tão simples que deixa a impressão de que, com maior desenvolvimento nas camadas que se abrem, poderia alcançar voos mais altos.

 

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Crítica do filme: 'Eden'


O que fazer para ser forte e sobreviver numa utopia? Trazendo ao epicentro dos conflitos personificações filosóficas e correntes que se cruzam em busca do novo, o novo trabalho do vencedor do Oscar Ron Howard volta até o início dos anos 1930, apresentando uma história - inspirada em relatos reais de quem sobreviveu – na qual as virtudes e os deslizes andam lado a lado, se entrelaçando as razões da existência.

Entre as estações do ano, a narrativa, bem construída e com poucas pontas soltas, apresenta uma legenda inicial suficiente para entendermos todo o contexto que se destrincha no recorte existencial. Vai da selvageria, nada distante da moral, à esperança - um choque entre o ideal e a realidade que se apresenta nua e crua, com respingos da crueldade humana.

Com a primeira guerra mundial destruindo economias em toda Europa, o casal Heinz (Daniel Brühl) e Marget (Sydney Sweeney) resolve abandonar tudo e se mudar para uma ilha distante no arquipélago de Galápagos, um lugar quase inabitável. Eles chegaram até ali a partir de relatos e ideias do médico Ritter (Jude Law), que vive no local com a esposa Dore (Vanessa Kirby). Ao longo dos meses, passarão por situações alarmantes, nas quais o respeito e a interpessoalidade são dribladas pelos instintos e seus propósitos (essência humana corrompida), principalmente após a chegada de uma baronesa (Ana de Armas), que deseja construir um hotel no lugar.

Há muitos pontos interessantes para analisar nesta obra. Da filosofia radical à reflexão da humanidade e seus propósitos -  dentro de um contexto sobre a essência humana corrompida – caminhamos por um olhar sociológico sobre a interpersonalidade. Princípios criados e corrompidos, inseridos em um ideal distante que sugere a possível harmonia e pureza de um novo Eden, constituem a força de um roteiro que bate na tecla do valor e significado da vida.

A maldade, a ingenuidade, o ser humano e o egoísmo, são quatro elementos que se juntam em perspectivas divididas entre personagens que, de alguma forma, representam um ideal. Independentemente do olhar com que observamos, o outro se transforma em uma incógnita, guiado pelo espírito de sobrevivência na iminência das ações, e ambos chegam ao mesmo desfecho: uma dita ‘democracia’ com as mãos sujas de sangue – nada muito diferente do mundo que os protagonistas buscavam fugir.

Com ótimas atuações de um elenco estelar, Eden traz diversas reflexões sobre o ser humano em um cenário inusitado, que foi o palco real de uma história comovente.

 

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