27/10/2025

Crítica do filme: 'Delírio'


Selecionado para a Mostra de SP, Delírio é um filme pra lá de insólito – no sentido de estranhamento - que congela algumas tentativas de criar tensão, sem elementos convincentes de construção de uma narrativa que parece não sair do lugar. Jogando todas suas fichas nos detalhes e no silêncio – que não soa ensurdecedor-, e com poucos personagens, o longa-metragem vai sugerindo conflitos de forma lenta, deixando o público abraçado – ou não – pela paciência.

A partir do olhar sobre três gerações de mulheres da mesma família - com relações deterioradas ao longo do tempo e marcas do passado acompanhando suas trajetórias -, somos testemunhas de uma curiosa adição do sobrenatural em meio a conflitos mundanos. As sensações e os medos buscam ganhar forma e movimento, numa imersão com muitas pontas soltas. Ao sugerir mais do que explicar, o trabalho escrito e dirigido por Alexandra Latishev Salazar vira uma missão para pessoas com grande paciência.

A médica Elisa (Liliana Biamonte) precisa passar um tempo com a mãe já debilitada, Dinia (Anabelle Ulloa), e leva consigo Masha (Helena Calderón), sua filha. Após algumas noites com sensações estranhas e barulhos esquisitos pela casa, Elisa percebe que algo está estranho naquele lugar, tomando algumas atitudes para entender o que acontece e proteger a filha.

A princípio parece que há uma história interessante - o roteiro tem questões importantes para reflexões, como a falha parental, mais ligada ao afeto. Mas é impressionante como, ao tentar contá-la, tudo fica muito confuso, em uma simplicidade que até confunde. Um exemplo é quando observamos mais de perto os conflitos entre as gerações, principalmente entre Elisa e Dinia: percebemos uma mágoa profunda, algo nada detalhado expressando-se através de um discurso indireto, quase disfarçado.

Mas o ponto que mais pega é a relação da filha mais nova com um provável fantasma - uma figura representativa no âmbito familiar, marcada pela violência. Uma situação que, bem desenvolvida, poderia elevar a obra de patamar, abrindo inclusive camadas importantes que não são encontradas pela narrativa.

Em resumo, Delírio, ao abraçar a sensação, esquece-se de apresentar questões de forma mais clara e convincente, conduzindo o público para uma jornada na qual olhar o relógio é a única certeza.

 

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Pausa para uma série: 'Maguila - Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome'


Um ano após a morte de um dos maiores e mais carismáticos atletas brasileiros da nossa história, chega ao Globoplay uma série documental que busca apresentar a uma nova geração - e boas lembranças pra quem o conheceu – o pugilista Maguila. Dividido em quatro episódios, onde se distribui contextos que vão da vida pessoal a carreira vitoriosa, esse projeto apresenta, em sua essência, o ser humano José Adilson Rodrigues dos Santos: um homem batalhador, sem papas na língua e com um carisma único.

Nascido em Aracajú, chegou até São Paulo no início da década de 1970, onde trabalhou em construções. Quando viu a primeira oportunidade para treinar boxe, procurou uma academia e lá começou seus primeiros - de muitos - passos na nova profissão. De origem humilde e fã de Muhammad Ali, ao longo da carreira mostrou mais força do que técnica, além de uma identificação impressionante com os brasileiros, logo virando uma verdadeira celebridade.

Os altos e baixos da carreira não deixam de ser apresentados nessa obra, dentro de um contexto amplo que começa com a descoberta de Maguila por um grupo que amava esse esporte - fato bem distribuído ao longo dos episódios centrais. O boxe como um produto e a chegada de eventos transmitidos por um famoso canal de televisão, transformou o esporte em um evento grandioso. Maguila, o maior peso-pesado da história desse esporte no Brasil, tornou-se o rosto à frente do projeto.

Com ricas imagens e vídeos de arquivo, a narrativa logo alcança os detalhes através de curiosidades, além de trazer depoimentos inéditos de nomes como Serginho Groisman, Elia Junior, Datena, entre outros. A série documental também apresenta grandes momentos de sua carreira, como os duelos contra Evander Holyfield e George Foreman.

Assim, a narrativa busca, a partir da carreira profissional do pugilista – contada por quem conviveu com ele na época - mostrar questões pessoais, os deslizes com a chegada da fama e o diagnóstico de Encefalopatia Traumática Crônica (conhecida como demência pugilística). Entrevistas com os familiares, que ganham mais força no episódio final, enriquecem ainda mais esse abrangente recorte.

Lançado um ano após sua partida, Maguila - Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome chega como um contundente registro de um homem amado pelo nosso país e sua trajetória de luta, dentro e fora dos ringues.

 

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Pausa para uma série: 'Ninguém nos Viu Partir'


Inspirado em uma história real relatada no livro Nadie nos vio partir, de Tamara Trottner – uma das personagens da obra –, a nova série da Netflix, Ninguém nos Viu Partir, que alcançou o Top 1 da plataforma, é um projeto mexicano que relata um sequestro parental e, a partir de camadas, chega nos conflitos emocionais que atingem uma mulher em uma época marcada pelo preconceito, pelas tradições e pela desigualdade de gênero.

Ambientado na década de 1960, em Ninguém nos Viu Partir, conhecemos Valeria (Tessa Ia), uma jovem que largou o mestrado e foi obrigada a se casar com o arquiteto Leo (Emiliano Zurita), em um acordo entre as famílias judias que residem no México. O casal tem dois filhos. O tempo passa e Valeria se apaixona pelo cunhado do marido, Carlos (Gustavo Bassani). Após descobrir a traição, Leo, com a ajuda do pai, Samuel (Juan Manuel Bernal), sequestra as crianças e foge para a Europa. Durante muitos meses, Valeria se vê em uma busca cheia de reviravoltas, movida pelo sonho de voltar a ver as crianças.

Direto para sua premissa, em um primeiro episódio que apresenta seu ponto de partida através de um homem impulsivo e facilmente influenciável pelo pai – um poderoso empresário judeu – que, em um ato desumano e criminoso, sequestra os filhos para longe da esposa.  Passo a passo, vamos entendendo melhor essa história por meio de flashbacks que mostram alguns dos motivos para tal ato de crueldade, além dos conflitos ao redor da família, ampliando o contexto.

A narrativa utiliza o ‘antes e depois’ para nos situar nos acontecimentos, não encostando no suspense, seguindo sua estrada pelo forte drama vivido pela protagonista. O que é sugerido logo é mostrado, compondo cinco episódios sem perder o ritmo, com a carga dramática aumentando gradativamente, além de ótimas atuações.

O mais interessante desse projeto é que ele aborda a imaturidade em algumas vertentes, sendo a principal deles os olhares não óbvios que chegam através de uma traição. Parece algo meio contraditório, mas, se formos analisar com uma lupa percebemos o desenvolvimento emocional dos personagens – até mesmo sua desconstrução - nessa linha tênue entre a moral e a aceitação.

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Crítica do filme: 'Um Fantasma na Batalha'


Inspirado em fatos reais ocorridos na Europa, mais precisamente entre a Espanha e a França, a partir das ações terroristas de um grupo separatista que logo chegou à luta armada cometendo atentados em diversos lugares, o longa-metragem Um Fantasma na Batalha, recém-adicionado à Netflix, é um thriller político com pitadas generosas de espionagem, que joga nossos olhares para o lado sombrio do ser humano, onde a inconsequência é rompida.

Escrito e dirigido por Agustín Díaz Yanes – vencedor do Goya de direção e roteiro em 1996, pelo filme Ninguém Falará de Nós Quando Estivermos Mortos – a obra retrata o caótico momento político de um período onde o medo podia estar em qualquer esquina, em uma Europa turbulenta. Para entendermos melhor o contexto, algo apresentando apenas brevemente pelo filme com inserções via legendas no início, é preciso algum conhecimento sobre o ETA.

Nascido nos tempos de ditadura e o regime autoritário e centralizador de Francisco Franco, o ETA (sigla traduzida para ‘Pátria Basca e Liberdade’) buscava, nos seus primórdios, a independência para o País Basco – iniciada no final de 1950, a partir de um movimento estudantil. Ao longo do tempo, células desse grupo tornaram as ações mais violentas e atentados se tornaram constantes, resultando em um banho de sangue que marcou as páginas europeias. Um Fantasma na Batalha é situada já na fase de declínio do ETA.

Ambientado em meados da década de 1990, acompanhamos a história de Amaia (Susana Abaitua), uma jovem oficial da guarda civil espanhola que se infiltra em uma célula do grupo separatista ETA, com o objetivo de localizar alvos e prevenir futuros atos terroristas praticados pelo grupo. Durante quase uma década, ela se vê em vários dilemas, descartando a vida pessoal e se jogando numa estrada marcada por tensão e violência.

Com imagens da época e reportagens sobre alguns dos atentados mostrados, inseridas em uma narrativa ficcional que atinge a tensão durante boa parte da projeção, este longa-metragem consegue apresentar um amplo recorte de um panorama político de uma época, ao mesmo tempo que chega em camadas através do desenvolvimento de seus personagens - guiados para dilemas morais a partir de uma protagonista sob constante atenção.

Um Fantasma na Batalha é uma produção muito bem feita, com ótimas atuações e uma direção de arte coerente, capaz de alcançar a atmosfera de tensão e conflituosas emoções. Esse clima pesado que o filme apresenta é exatamente o sentimento daquela época. Mesmo o sugerido prevalecendo sobre o descritivo – algo que atinge a compreensão de um contexto mais amplo – esse é um filme interessante que merece reflexões e debates.  

 

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Crítica do filme: 'Presente Maldito'


Com pouco se faz muito. Acontece uma situação peculiar com esse novo filme protagonizado por Dakota Fanning – muito bem no papel, por sinal. Limitado a uma premissa que não se expande tanto e fortemente ligado a uma possível maldição, esse longa se passa, em grande parte dentro de uma casa propícia para filmes que assustam, dentro do sentido de refúgio e uma prisão. Presente Maldito consegue, por meio da imersão na tensão constante desenvolver uma trama imprevisível, que sempre progride, não caindo em redundância – mesmo diante das limitações da história.

Polly (Dakota Fanning) é uma jovem buscando se encontrar na vida e vive sozinha na casa que aluga da irmã. Em uma noite, abre a porta da casa para uma senhora que lhe entrega uma caixa misteriosa. A partir desse momento, suas próximas horas serão de total medo e tensão, precisando executar algumas tarefas ingratas.

Nesse suspense psicológico que logo invade o terror, escrito e dirigido pelo cineasta norte-americano Bryan Bertino, usa-se bem os poucos elementos em cena, prendendo a atenção do público através de dramas pessoais que se encontram com o sobrenatural – algo que poderia ter sido melhor explorado no roteiro. Espelhos, efeitos na voz, ligações aterrorizantes, a televisão que liga sozinha, mutilações - cada elemento se torna parte importante para chegarmos na sensação de estar em um labirinto, que nem a protagonista.

O que você ama? O que importa para você? Essas razões existenciais que contornam qualquer tajetória vão direto na raiz da essência humana e os dilemas que todos enfrentam pelo caminho. A questão era como transformar esses pontos de reflexões existenciais em tensão. Com tons frios e uma personagem buscando um vínculo com as emoções - sensações ampliadas no espaço em que se desenvolve a narrativa -, outro ponto interessante e bastante nítido aos nossos olhos é a fotografia, assinada por Tristan Nyby.

Da a impressão de que Presente Maldito entrega tudo que pode em termos técnicos, além da Ótima atuação de Fanning em um papel muito difícil - sempre em cena, cercada de variáveis e ações que se desenrolam ao seu redor. A questão que pesa nessa obra é a limitação de uma história tão simples que deixa a impressão de que, com maior desenvolvimento nas camadas que se abrem, poderia alcançar voos mais altos.

 

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Crítica do filme: 'Eden'


O que fazer para ser forte e sobreviver numa utopia? Trazendo ao epicentro dos conflitos personificações filosóficas e correntes que se cruzam em busca do novo, o novo trabalho do vencedor do Oscar Ron Howard volta até o início dos anos 1930, apresentando uma história - inspirada em relatos reais de quem sobreviveu – na qual as virtudes e os deslizes andam lado a lado, se entrelaçando as razões da existência.

Entre as estações do ano, a narrativa, bem construída e com poucas pontas soltas, apresenta uma legenda inicial suficiente para entendermos todo o contexto que se destrincha no recorte existencial. Vai da selvageria, nada distante da moral, à esperança - um choque entre o ideal e a realidade que se apresenta nua e crua, com respingos da crueldade humana.

Com a primeira guerra mundial destruindo economias em toda Europa, o casal Heinz (Daniel Brühl) e Marget (Sydney Sweeney) resolve abandonar tudo e se mudar para uma ilha distante no arquipélago de Galápagos, um lugar quase inabitável. Eles chegaram até ali a partir de relatos e ideias do médico Ritter (Jude Law), que vive no local com a esposa Dore (Vanessa Kirby). Ao longo dos meses, passarão por situações alarmantes, nas quais o respeito e a interpessoalidade são dribladas pelos instintos e seus propósitos (essência humana corrompida), principalmente após a chegada de uma baronesa (Ana de Armas), que deseja construir um hotel no lugar.

Há muitos pontos interessantes para analisar nesta obra. Da filosofia radical à reflexão da humanidade e seus propósitos -  dentro de um contexto sobre a essência humana corrompida – caminhamos por um olhar sociológico sobre a interpersonalidade. Princípios criados e corrompidos, inseridos em um ideal distante que sugere a possível harmonia e pureza de um novo Eden, constituem a força de um roteiro que bate na tecla do valor e significado da vida.

A maldade, a ingenuidade, o ser humano e o egoísmo, são quatro elementos que se juntam em perspectivas divididas entre personagens que, de alguma forma, representam um ideal. Independentemente do olhar com que observamos, o outro se transforma em uma incógnita, guiado pelo espírito de sobrevivência na iminência das ações, e ambos chegam ao mesmo desfecho: uma dita ‘democracia’ com as mãos sujas de sangue – nada muito diferente do mundo que os protagonistas buscavam fugir.

Com ótimas atuações de um elenco estelar, Eden traz diversas reflexões sobre o ser humano em um cenário inusitado, que foi o palco real de uma história comovente.

 

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Crítica do filme: 'O Elixir'


Os filmes de Zumbis – inclusive os com seres mortos que voltam à vida corredores, como é o caso – existem aos montes por aí. A questão está sempre em como vai ser desenvolvido o contexto, que pode (ou não) ajudar a contar uma história fugindo da mesmice. O novo filme da Netflix, O Elixir, que logo alcançou o Top 10 da plataforma aqui no Brasil, parte de uma dinâmica familiar com atritos, no estilo ‘novelão’ - tudo se desenrolando em torno de um conflito central – para então chegar à sua ação sangrenta, com os iminentes sacrifícios e dilemas, dentro de uma fórmula que segue à risca a cartilha dos filmes de sobrevivência.

Com uma boa direção de Kimo Stamboel – que vem de uma longa leva de filmes de terror no currículo –, esta produção indonésia não apresenta nada revolucionário em sua construção narrativa. Mesmo com certa criatividade, parte logo para uma ação desenfreada, que se passa em alguns ambientes, trazendo perspectivas variadas. Como já mencionado, a modalidade zumbi aplicada aqui é a dos ‘corredores’ – e, no centro dos holofotes, estão os figurantes, em atuações que devem ter sido bem divertidas serem gravadas.

Um bem-sucedido empresário do ramo de produtos de origem vegetais (Donny Damara) se vê em uma tempestade de conflitos na sua família após se casar com a melhor amiga da filha (Eva Celia Latjuba). Além disso, está disposto a continuar com a sua empresa, mesmo com ofertas generosas de terceiros, fato que não é bem aceito por outros integrantes. Durante uma reunião familiar, ele toma um novo composto que o faz rejuvenescer quase instantaneamente, mas logo acaba vindo os efeitos colaterais, propagando um surto zumbi na região onde mora.  

A trama busca até se desprender do ‘mais do mesmo’ trazendo a busca pela juventude como uma rasa crítica social – algo que encosta, em escalas bem menores, na premissa de A Substância. Mas o desenvolvimento dos personagens logo se perde no espaçamento do núcleo. Com sangue pra todo lado, acompanhamos uma mãe em busca de encontrar o filho, a redenção de uma amizade, um jovem casal que está prestes a oficializar uma união e o filho deixado de lado por conta da imaturidade com que enxerga a vida. É como se estivéssemos jogando um videogame, onde temos que escolher nosso herói ou heroína e seguindo o seu ponto de vista.    

O Elixir não perde tempo em apresentar o caótico quando se propaga uma substância transformando humanos em zumbis. A tensão é alcançada, trazendo o medo como uma ferramenta de confronto. Nessa sucessão caótica de eventos, prazeroso pra quem curte filmes do gênero, mas nada além de um entretenimento raso, provocando poucas reflexões.

 

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21/10/2025

Crítica do filme: '27 Noites'


Chegou esta semana à Netflix um filme argentino que apresenta, de forma bem-humorada, um drama sobre internação não voluntária – questão que teve mudança na legislação argentina anos atrás. Dirigido e protagonizado pelo uruguaio Daniel Hendler, o projeto, baseado na obra Veintisiete Noches, escrita por Natalia Zito, busca, sem se prolongar, ampliar os debates sobre o bem-estar psicológico.

Buscando, em uma fórmula que combina ponderação e sutileza, alguns caminhos para boas reflexões, um dos méritos desse filme é suavizar o ‘pé da letra’ sem se reduzir a uma obra simplória. Entre, emoções, comportamentos e uma passada rápida nas burocracias jurídicas, o tema da saúde mental vira um elemento crucial - e nada maçante - que circula durante toda a trama. 

Leandro (Daniel Hendler) é um perito designado por um tribunal para avaliar Martha (Marilú Marini), uma mulher octagenária, depois que suas filhas a internam, de forma involuntária, em uma clínica, com a justificativa que sofre com demência frontotemporal e vem tomando atitudes suspeitas. Conforme vai se aproximando da mulher, ele acaba entendendo melhor todo o contexto, passando também por uma enorme transformação em sua própria vida.  

O conflito geracional e as formas de compreender a vida são alguns dos assuntos que permeiam os personagens, sempre tendo uma direção rumo ao lado humano e suas contradições. Mesmo com coadjuvantes colocados em segundo plano, a troca de perspectiva entre Leandro e Martha funciona muito bem, garantindo um alicerce para o ritmo não se perder.    

A simpática narrativa molda seu desenrolar equilibrada entre o presente - ambientado algumas décadas atrás – e os flashbacks, ajudando a contar essa história. Sob o ponto de vista do protagonista – um personagem longe do carisma - chegamos até as poucas camadas que se abrem. Nada é muito profundo por aqui, mas a obra não deixa de ser relevante, principalmente por explorar com eficácia e leveza pontos de vistas, descontruindo assim o tema cisudo.

 

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19/10/2025

Crítica do filme: 'Zoe, minha amiga Morta'


Totalmente focado em detalhar os caminhos de aflição de uma pessoa com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), o projeto Zoe, minha amiga Morta, que chegou recentemente ao catálogo do Prime Video, nos mostra uma jovem ex-militar perturbada pelo fantasma de uma amiga falecida. A partir do trauma de uma situação, percorremos os choques emocionais promovendo bons debates sobre saúde mental.

Dirigido por Kyle Hausmann-Stokes, em seu primeiro longa-metragem, o filme busca, por meio de seu roteiro, conectar todos os pontos de um diagnóstico que atinge milhares de pessoas ao redor do mundo. Do psicológico ao social, passando pelas fragilidades do estado de bem-estar até os sinais de alerta quando o descontrole se manifesta, o abismo profundo sobre o assunto é colocado para reflexões.

Merit (Sonequa Martin-Green) trabalhou durante muitos anos como mecânica em unidades militares. Durante o tempo que serviu ao exército, desenvolveu uma amizade profunda com Zoe (Natalie Morales). No presente, Merit enfrenta inúmeros conflitos provocados por situações que lhe causaram forte estresse. Buscando encontrar soluções para sua saúde mental e se reaproximando do avô – em fase inicial de Alzheimer – ela embarca em uma jornada de descobertas e enfrentamento dos medos.

O projeto busca realizar algo que pode ser bem complicado quando pensamos em narrativa: ligar um acontecimento trágico do passado – sem revelações iniciais, apenas sugestões - a questões incômodas do presente. Essa junção de elementos ganha força a partir de lembranças vívidas, em forma de flashbacks, mas que estacionam em muitos momentos na melancolia da introspecção, mesmo fazendo sentido pela culpa e o medo que destroem qualquer fortaleza.

Preparando o terreno para o seu iminente clímax, o filme segue em um ritmo dosado, através de um humor triste – entre o doloroso e o cômico -  percorrendo detalhes da intimidade de uma forte amizade, ponto inicial para o desenvolvimentos dos personagens. Falando em personagens, além das duas boas atuações das protagonistas, em papéis complexos e executados com interpretações comoventes e sólidas, os dois coadjuvantes interpretados pelos experientes Morgan Freeman e Ed Harris também chamam a atenção.

Zoe, minha amiga Morta através de uma história que pode encontrar paralelos com muitas outras, de forma envolvente, nos leva para reflexões sobre o universo muitas vezes silencioso da saúde mental.

 

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Crítica do filme: 'Stans'


Chegou de mansinho ao catálogo da Paramount Plus um documentário interessante que parte de uma relação entre um dos maiores rappers da história - ícone de uma geração dos anos 1990/2000 - e seu fandom, abrindo um leque de camadas originais e cheias de intensidade, que vão de encontro a momentos marcantes de sua carreira. Stans é muito mais que um olhar sobre o vínculo entre fã e artista: é uma imersão em sentimentos reais expressos em canções que atingiram em cheio corações pelo mundo – e que, logo, viraram arte.

No ano 2000, Marshall Bruce Mathers III, mais conhecido como Eminem, já no topo das paradas de sucessos com suas letras provocantes - que retratavam alguns pontos de vistos bem pessoais sobre recortes de sua vida - lançou uma música chamada Stan, que se tornaria um de seus maiores sucessos, sobre um fã devoto, andando na linha tênue entre admiração e obsessão. A palavra (e seu significado), 17 anos depois, foi reconhecida pelo Oxford English Dictionary. Esse é o gancho para chegarmos a este instigante documentário dirigido por Steven Leckart.

A partir de depoimentos de fãs fanáticos - em algumas escalas de intensidades – por seu ídolo, incluindo Ed Sheeran, chegamos em um produtivo e fascinante debate sobre a relação de identificação e admiração por um artista. Mas a obra não estaciona nessa questão, usando esse gancho para explorar outras camadas que jogam na tela recortes da vida profissional e pessoal de um exímio contador de histórias: um rapper que apresenta músicas bastante pessoais, com letras provocantes e videoclipes criativos, que algumas vezes partem para o confronto com a hipocrisia.

O interessante é que não se trata necessariamente de um documentário sobre toda a vida do Eminem. São duas correntes - fã e ídolo - que encontram-se para conversar sobre questões influenciadas pela trajetória do músico, em ambas perspectivas. Com uma edição inventiva – um dos grandes méritos dessa produção -, a narrativa percorre pontos importantes da carreira (mesmo não desenvolvendo além da superfície a questão do legado), além de abordar o processo criativo e a influência na vida de pessoas de um artista que teve como válvula de escape criar forças na vulnerabilidade, abrindo o livro de suas experiências.

Seja você é fã ou não de Eminem, pode ter certeza: essa é uma obra para se conferir. Stans se consolida como um documentário criativo e magnético, que insere questões sociais dentro de um universo bem particular - o de uma relação unidirecional que se amplia até as influências culturais.  

  

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17/10/2025

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Crítica do filme: 'A Vizinha Perfeita'


Com uma narrativa brilhante, que encontra enorme coesão na sua montagem, o novo documentário da Netflix, A Vizinha Perfeita, detalha uma tragédia real e chocante que atingiu em cheio a cidade de Ocala, no Condado de Marion (Flórida). Dirigido pela cineasta Geeta Gandbhir, o projeto – que prende a atenção desde seu início até o sufocante desfecho - levanta questões importantes sobre preconceito racial, leis de legítima defesa e o papel da polícia, chegando em um recorte profundo sobre a sociedade norte-americana.

A partir de desentendimentos – que já duravam semanas – entre vizinhos e uma específica moradora da região, acontece um fato mortal. Tendo esse episódio como pontapé inicial, acompanhamos uma cronologia de acontecimentos bem detalhada, apresentada sob diversos pontos de vistas. Aos poucos, sem perder o ritmo e tensão, somos guiados até os horrores de um caso que chocou os Estados Unidos alguns anos atrás.

O antes, o ocorrido e o depois. Exibido no Festival de Sundance deste ano, esse True Crime apresenta seus personagens reais e conflitos através de uma criativa narrativa que utiliza apenas gravações feitas por câmeras – muitas delas corporais, daquelas que policiais usam. Assim, vamos descobrindo a origem dos fatos que nos conduzem até o final nada feliz dessa história – vou logo falando, os minutos finais são de partir o coração.

Na composição dessa tragédia real, chegamos a alguns pontos de argumentação, o principal deles é sobre a Lei Stand Your Ground. Por conta dessa polêmica lei de defesa pessoal – em vigor em alguns estados norte-americanos, como a Flórida, desde 2005 -, que permite o uso de força letal caso se sinta em risco de morte e autoriza uma reação imediata ao que julgar ser uma ameaça, uma das personagens envolvidas demorou para ser presa, gerando uma série de protestos.

Os debates em torno dessa questão apresentada acima é um dos ótimos tópicos que o documentário levanta para reflexões sociais sobre alguns dos caminhos que levam à violência. Da cultura da impunidade ao preconceito racial, A Vizinha Perfeita apresenta essa história forte e real, que dilacerou uma família e colocou em evidência - mais uma vez - as leis mais permissivas de uso e porte de armas, fator preponderante para a crueldade ocorrida.   

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Crítica do filme: 'O Ônibus Perdido'


Cinco anos após seu último trabalho, Relatos do Mundo, o experiente cineasta britânico Paul Greengrass volta ao universo cinematográfico para comandar mais um projeto que aborda tragédias da vida real – como foi o caso de Capitão Phillips, 22 de Julho e outros filmes de sua carreira. Produzido pela Apple, O Ônibus Perdido nos leva até anos atrás, no norte da Califórnia, onde ocorreu o incêndio mais mortal da história desse estado americano.

Kevin (Matthew McConaughey) é um motorista de ônibus escolar, perto dos 40 anos, que voltou para a cidade onde nasceu e tenta se entender com o único filho. Um dia, após um incêndio florestal com alta taxa de propagação, ele fica com a missão de resgatar um grupo de crianças e a professora Mary (America Ferrera), no colégio onde estavam.

Inspirado em acontecimentos reais e na obra Paradise: One Town's Struggle to Survive an American Wildfire, escrita pela jornalista Lizzie Johnson, o foco da narrativa é levar até o público os momentos de tensão a partir de dois pontos de vista, o de quem estava no ônibus cercado pelo fogo e o das autoridades que pensavam em soluções para combater o avanço do incêndio.   

A construção para se chegar à ação desenfreada – uma reprodução bem chocante dos acontecimentos – começa com as aflições no laço paternal. A relação entre pais e filhos é algo que está bem próximo de tudo que acompanhamos, funcionando como um combustível para entendermos ações e consequências.

Dentro desse desenvolvimento, com o lado humano em evidência - uma marca do cinema de Greengrass, com conexões entre pessoas em muitos tipos de situação emocional -, O Ônibus Perdido foge do sensacionalismo e chega até as críticas importantes de uma situação trágica que deixou bilhões em danos materiais, mais de 70 vidas perdidas e marcou para sempre pessoas unidas por coragem, compaixão, responsabilidade e exemplo.

 

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16/10/2025

Crítica do filme: 'Limpa'


Há filmes que começamos a assistir e parecem não levar a lugar nenhum. Por isso, é sempre  importante ter paciência - pode ser que grandes surpresas nos aguardem. É exatamente isso que acontece com o longa-metragem chileno Limpa. Com camadas profundas que se abrem distantes do seu início, o projeto nos leva a uma imersão na dinâmica familiar repleta de reflexões, tendo como ponto central uma protagonista que se vê em um labirinto em busca de momentos felizes.

Estela (María Paz Grandjean) é uma jovem que deixa o interior do Chile para trabalhar como empregada doméstica na casa de um casal rico, na cidade de Santiago. Ela passa grande parte do tempo ao lado da filha deles, uma garotinha escanteada pelos pais que encontra em Estela uma grande amiga. Quando algumas situações acontecem, Estela começa a perceber que sua presença no lugar está chegando ao fim, culminando numa série de ações rumo às tragédias. 

Uma caixinha de surpresas quando uma avalanche de conflitos se sucedem. Lançado há poucos dias na Netflix - onde logo alcançou o Top 10 da plataforma - Limpa pode ser definido assim. Dirigido por Dominga Sotomayor e roteirizado por ela em parceria com Gabriela Larralde e Alia Trabucco Zerán, chegamos de forma lenta em um retrato na vida de uma jovem cheia de desilusões, que confronta seu momento conturbado segurando um fio de resiliência que sobrou nas suas marcas da vida.

Não é fácil chegar até suas descobertas, que se revelam aos poucos. Até o minuto 40, um mar estático de ações isoladas parece construir uma história sem grande capacidade reflexiva. Mas as camadas se abrem, ressuscitando a narrativa. A partir de um estopim, o choque social ganha muitos contornos - exemplificado mais com olhares que palavras - onde o ambiente, a mansão bem estruturada dos chefes, vira um elemento importante, quase um personagem ativo para nos guiar pelas emoções que transbordam.   

Cada vez mais próxima da menina que cuida – uma relação maternal, incompreendida pela mesma –, a protagonista também se apaixona por um frentista, enquanto vê o passado mandar mensagens por lembranças ligadas a um cachorro. Sempre na corda bamba quando almeja planos para um futuro, as limitações da vida viram um banho de água fria. Não deixa de ser um reflexo de tantas pessoas espalhadas pelo mundo, à espera de alguma oportunidade para sentir a felicidade.

No desfecho emblemático, percebemos que, mesmo a construção tendo questões que atrapalham o andamento dessa história, chegamos num poderoso recorte – potente, dilacerante e capaz de neutralizar toda nossa atenção. Dê uma chance a esse filme.

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14/10/2025

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Crítica do filme: 'Ruas da Glória' [Festival do Rio 2025]


A vida como ela é. Percorrendo um relacionamento destrutivo e contrapondo o fascínio de um novo lugar e suas tragédias que logo se mostram presentes, o longa-metragem Ruas da Glória, escrito e dirigido por Felipe Sholl, apresenta um certo lirismo - uma metáfora que percorre emoções e sensações ligadas ao desespero, alcançando as dores quando o caos da existência se mostra angustiante.

Sempre envolta no tema, a narrativa cumpre seu propósito ao maximizar a ebulição dos sentimentos, com cenas carnais bem dirigidas - mais explícitas que sugeridas – atingindo a essência humana e seus impulsos em meio a uma tensão sexual sufocante. O desejo se alia ao desespero, elementos emocionais fundamentais para os pilares dos complexos personagens, muito bem interpretados por Caio Macedo e Alejandro Claveaux.

Gabriel (Caio Macedo) é um jovem professor de literatura que acaba de chegar ao Rio de Janeiro, após um falecimento e um conflito com parte da família, experiências que mexeram com suas emoções. Fascinado pela cidade maravilhosa, muda-se para o bairro da Glória e, numa noite em um badalado clube, acaba conhecendo o uruguaio Adriano (Alejandro Claveaux), que vive da prostituição. Completamente obcecado por Adriano, Gabriel se entrega de corpo e alma em um complexo relacionamento. Quando Adriano desaparece, o protagonista, buscando um drible na solidão, vai conhecendo novos personagens pelo caminho e encontra significativas reflexões sobre a vida.

O roteiro percorre um recorte complexo da autodestruição, onde o desejar se torna uma importante parte das reflexões. Podemos nos perguntar: estamos vendo o amor, a obsessão ou ambas as coisas? Essa fuga de paradigmas, dentro da explosão de infelicidade proposta, nos leva a pensar sobre os obstáculos que, cada um de sua forma, passam alguma vez (ou várias) na vida - um dos méritos da obra. Contudo, há um calcanhar de aquiles (não comprometedor): a falta de respiro dentro desse recorte extenuante flerta com avanços pouco significativos, beirando ao repetitivo, o que, de certa forma, atrapalha o andamento. 

O desespero, o sufocar, as dores de um momento repleto de portas fechadas. Ruas da Glória apresenta uma estrada destrutiva, marcada por altos e baixos, descobertas e revelações, com a esperança surgindo como um trunfo quando a maré vira – algo mundano, humano e capaz de fazer refletir. 

 

 

 

 

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Pausa para uma série: 'Animal'


O amor pelos animais e a lições do dia a dia. Em apenas nove episódios – deliciosos - que você maratona rapidamente na Netflix, a série Animal chegou sem muito alarde para conquistar através da rabugentice carismática de um protagonista com o mundo virado de cabeça pra baixo, que encontra em um novo trabalho lições para sua jornada. Essa é uma obra que busca, na simplicidade de seu desenvolvimento, colocar à mesa reflexões sobre o trato social – um tema mais atual, impossível.

Criada por Víctor García León, o projeto propõe um olhar gentil – ainda que, por vezes, ácido – sobre um conflito geracional que atinge um homem que acredita no amor pelos animais, mas demonstra rejeição em compreender o próximo. Um conflito existencial que adiciona combustível nas novas relações que aparecem. Esse recorte sociológico utiliza o humor e bons diálogos para preencher a tela com uma narrativa leve e com ótimas atuações.

Antón (Luis Zahera) é um experiente veterinário de uma zona rural no noroeste da Espanha que está passando por uma tempestade de conflitos. Seus clientes de toda uma vida estão sem dinheiro, as dívidas só acumulam e a tentação de uma assinatura que vai contra seus princípios bate à sua porta a todo instante. Um dia, recebe uma oportunidade de recomeço: trabalhar em uma enorme loja de pets gerenciada pela sobrinha Uxía (Lucía Caraballo). Nesse novo emprego, precisa lidar com detalhes que o incomodam, mas aprende novas lições nessa parte avançada da vida.

Desde o primeiro episódio – acelerado, mas sem deixar de preencher com elementos importantes futuros - até o desfecho aberto e cheio de lições, nessa primeira jornada dessa obra, que pode muito bem ter uma continuação, somos conquistados por personagens que, à primeira vista, parecem presos nas suas características principais, mas logo se revelam para conquistar nossa atenção. Luis Zahera dá vida a um clássico rabugento engraçado, enquanto Lucía Caraballo interpreta uma sonhadora que adora relacionamentos com pessoas complicadas. Dois artistas que encontram um norte interessante de harmonia e identificação com o público.

Sem perder o fôlego e eficiente no seu desenvolvimento, em uma trama que distribui seu discurso por ações e consequências ligadas ao comportamento humano, Animal conecta a ternura da compaixão com os animais às amarras de uma figura central cisuda. Essa mistura vira uma fórmula de sucesso, atingindo mais o humor, sem deixar de encostar em profundas camadas, que relacionam o fator existencial às necessidades de mudanças.

 

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